quarta-feira, 30 de setembro de 2015

CARTA DE POMBAL

Poetas, folheteiros, palestrantes, pesquisadores e organizadores 
da FEIRA DE CORDEL LEANDRO GOMES DE BARROS


Palestra LEANDRO GOMES DE BARROS, 150 ANOS

I FEIRA DE CORDEL LEANDRO GOMES DE BARROS
Em comemoração aos 150 anos do poeta
De 23 a 29 de setembro de 2015, em Pombal-PB


Leandro Gomes de Barros é o expoente máximo de um gênero literário que vem se consolidando a cada dia como uma das ferramentas mais eficazes na formação de leitores e construção textual no ambiente escolar: a LITERATURA DE CORDEL. Nascido na fazenda Melancia, município de Pombal-PB, aos 19 de novembro de 1865, o grande poeta paraibano é considerado o “Pai da Literatura de Cordel”, por ter sido um pioneiro do gênero e ser reconhecido, ainda hoje, um dos maiores expoentes da poesia brasileira.
O projeto FEIRA DE CORDEL POETA LEANDRO GOMES DE BARROS é uma homenagem a esse importante escritor brasileiro de Literatura de Cordel no ano de seu sesquicentenário. Além de ter sido um dos formatadores desse estilo poético, Leandro é autor de vários clássicos que ainda hoje são editados e lidos em todo o Brasil, perfazendo milhões de exemplares vendidos ao longo de mais de 100 anos.

Visita a Fazenda Melancia, local de nascimento do poeta

Uma casa sertaneja
De pé direito, alpendrada,
Uma cerca recuada
Mais adiante, uma igreja,
Foi cenário da peleja
 Traz histórias no regato
Fica no meio do mato
E todo universo cabe
Quem é sertanejo sabe
Quanto vale esse retrato.

As atividades propostas pelo projeto proporcionam o reconhecimento de Leandro Gomes de Barros em sua terra natal, a difusão de sua vida e obra, além de possibilitar um grande encontro de editores, poetas, folheteiros e pesquisadores oriundos de diversos estados da Federação, inclusive do eixo Rio-São Paulo, em atividade no momento.
A primeira edição da FEIRA DE CORDEL LEANDRO GOMES DE BARROS realizou-se no largo da Praça do Centenário, na cidade de Pombal; ministrando oficinas nas escolas, apresentação de repentistas e declamadores, lançamento de livros e folhetos, realização de debates e mesas redondas colocando em evidência a figura do poeta e a sua importância para a história cultural e literária da Paraíba, do Nordeste e de todo o Brasil.

Pátio da fazenda atual

Dois bezerrinhos deitados
Aproveitando a malhada
E a serrania encantada
Já se vê por outros lados
São os reinos encantados
Que Leandro fez relato
Pois ele viveu, de fato,
Neste cenário Moçárabe
Quem é sertanejo sabe
Quanto vale esse retrato.

Durante a visita ao sítio Melancia, onde ainda se encontram vestígios da casa onde nasceu o poeta, vários artistas envolvidos no projeto sugeriram a criação de um memorial e instalação de uma cordelteca, tornando aquele espaço mais atrativo, já que espontaneamente vem atraindo poetas, professores, estudantes, pesquisadores e admiradores da obra de Leandro. Outras deliberações importantes foram sugeridas ao longo da FEIRA, das quais destacamos as seguintes:

1 – Reconhecer a cidade de Pombal-PB, berço de Leandro, como a CAPITAL NACIONAL DA LITERATURA DE CORDEL;
2 – Dar continuidade a feira em edições anuais ou como bienal, atraindo sempre os maiores expoentes do gênero, além de editores, folheteiros, pesquisadores e amantes em geral da Literatura de Cordel;
3 – Envolver sempre o maior número possível de professores e alunos, sobretudo das escolas públicas das redes Estadual e Municipal, inclusive de outros municípios da Paraíba;
4 – Implantação de bibliotecas de cordel (cordeltecas) nas escolas, com realização de palestras e oficinas, para que as novas gerações conheçam, admirem e preservem a obra e a memória de Leandro e de outros grandes expoentes do cordel, do passado e do presente;
5 – Identificar e estimular o surgimento de novos valores da Literatura de Cordel, através da realização de concursos, palestras, recitais e oficinas;
6 – Seleção e publicação dos melhores trabalhos produzidos nas escolas locais a partir da FEIRA DO CORDEL e de seus desdobramentos;
7 – Estimular a adaptação da obra de LEANDRO GOMES DE BARROS e outros poetas para o teatro, cinema, quadrinhos, artes plásticas e outras manifestações artísticas.

Essa paisagem fica defronte as ruínas da casa onde o poeta nasceu

Tem cacimbas e lajedos
Algarobas,  juazeiros,
Teiús garbosos, ligeiros,
Cheios de manha e segredos...
Hoje, evocando os enredos,
Deste sertão tão pacato
Eu vi o fundo do prato...
Que o tesouro não se acabe!
Quem é sertanejo sabe
Quanto vale esse retrato.


Nós abaixo assinados, participantes deste evento como organizadores, convidados, palestrantes, professores, estudantes e observadores endossamos este documento e o encaminhamos às autoridades ligadas ao fomento da Cultura no Estado do Paraíba e no Brasil, para que sirva como testemunho do êxito e repercussão desta grande iniciativa.


Pombal, 29 de setembro de 2015

Jô Oliveira, autor do painel que homenageia Leandro, na 
foto com Arievaldo Vianna, Abraão Batista e Paiva Neves.

Poetas e palestrantes reunidos para a foto oficial, no painel de Jô Oliveira

Marco Haurélio discursa no local das ruínas da casa onde nasceu Leandro

Professora IONE SEVERO, idealizadora da Feira de Cordel



sexta-feira, 25 de setembro de 2015

CORDEL DO PIAUÍ

IMAGENS DA EXPEDIÇÃO AO PIAUÍ

CORDEL VIVO!

Salvaguarda e Registro da Literatura de Cordel, Cantoria, Xilogravura e Embolada como Patrimônio Imaterial do Povo Brasileiro pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). 

Agradecimentos a Raimundo Clementino Neto, Ricardo Pereira (do IPHAN), Rosilene Mello, Vandynha Viana, Pedro Costa, Joames, Chico dos Romances, Ilza Bezerra, Josefina Gomes, Marina Gomes e todos que colaboraram com esse trabalho, inclusive o professor Gilmar de Carvalho, que nos deu RÉGUA E COMPASSO com seus livros "Poetas do Povo do Piauí" volumes 1 e 2.


Poeta CHICO DOS ROMANCES, em Piripiri-PI 


Poeta Edivaldo Guerreiro - Teresina-PI

Poeta Pedro Costa - Teresina-PI

Entrevista na TV Assembléia do Piauí

Com Ilza Bezerra e Josefina Ferreira Gomes, na estátua de Torquato Neto, 
no Centro de Artesanato de Teresina-PI.


Próximas visitas: POMBAL-PB e SÃO LUÍS-MA.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

FEIRA DE CORDEL EM POMBAL-PB


Ilustração de Jô Oliveira, criada especialmente para a FEIRA DE CORDEL LEANDRO GOMES DE BARROS, que acontecerá em Pombal-PB, de 25 a 29 de setembro.



CLIQUE NAS IMAGENS PARA AMPLIAR

A Feira é coordenada pela Professora Ione Severo.


Na ocasião, o escritor Arievaldo Vianna vai ministrar palestra
sobre o sesquicentenário do "Pai da Literatura de Cordel"

Lançamento da biografia de Leandro em Pombal-PB

Ilustração de Jô Oliveira



104 ANOS DE NASCIMENTO DA ALZIRINHA


BREVE NOTÍCIA DE UMA MATRIARCA SERTANEJA

As avós sertanejas, matriarcas de clãs numerosos, eram, em geral, figuras sábias, conselheiras e presentes na tarefa de educar os descendentes. É o caso de minha avó paterna, Alzira de Sousa Lima, pessoa que exerceu grande influência sobre a minha formação cristã e intelectual. Hoje, 15 de junho de 2016, fazem 104 anos do seu nascimento. 
Vovó faleceu em 16 de setembro de 1994, lúcida e cercada por seus 9 filhos, tendo a oportunidade de despedir-se e abençoar cada um deles. Foi um ser humano iluminado, uma sertaneja plena de sabenças, inteligência e graça, que jamais será esquecida pelos que tiveram a honra de conhecê-la.



Esta fotografia, de 1990, foi tirada no dia 18 de setembro - dia do meu aniversário. Foi a última que tirei em companhia da minha avó paterna Alzira Viana de Sousa Lima. Na foto aparecem também os meus pais (Evaldo e Hathane), minha irmã Vandinha (de laço na cabeça) e esse bebezinho é a Ticiana, filha do meu primo Galileu Filho. Vovó faleceu quatro anos depois desta fotografia, no dia 16 de setembro de 1994. 

AVÓ CENTENÁRIA
(Crônica publicada em junho de 2012, no Jornal da Besta Fubana)

Há exatos cem anos, no dia 15 de junho de 1912, nascia em Fazenda Castro, município de Quixeramobim, Alzira Viana de Sousa, filha de Francisco de Assis de Sousa (Fitico) e Maria das Mercês Viana Sousa.
Falo de minha avó paterna, tantas vezes citada como a pessoa que mais contribuiu com a minha alfabetização e de quem herdei o gosto pela escrita e pela leitura. Numa época em que as mulheres sertanejas permaneciam analfabetas, vovó teve a sorte de frequentar escolas em Quixeramobim e Canindé, pois seu pai, um homem extremamente religioso e afeito à leitura, logo percebeu nela uma Inteligência extraordinária e queria educá-la para ser freira.

O tempo passou, ela tornou-se adulta e não realizou a expectativa paterna, retornando ao seio da família onde dedicava-se à costura, ao bordado e aos afazeres domésticos. Por essa época já era uma leitora assídua de vários tipos de leitura, mas, por desejo do pai, era quem tirava as novenas de santo (Mês de Maria, Santo Antônio etc), lia os testamentos de Judas e, sobretudo, os folhetos e romances de cordel que por lá apareciam.

Aos 24 anos enamorou-se de Manoel Barbosa Lima, possivelmente seu primeiro e único amor, com quem só pode casar-se depois de fugir de casa, como já foi narrado anteriormente no texto que escrevi sobre o centenário do meu avô. A partir daí, ela passou a assinar Alzira de Sousa Lima pelo resto da vida. O casal teve onze filhos, dos quais sobreviveram nove, apesar da pobreza e dificuldades que enfrentaram no início de sua vida a dois. Na década de 1950 as coisas melhoraram sensivelmente. Manoel ingressou com sucesso no ramo comercial, expandiu a suas relações, adquiriu terras, construiu casa de morada ampla e arejada, enfim, colheu os frutos de seu trabalho perseverante.

Manoel Barbosa Lima, meu avô paterno

Minha avó costumava dizer que quando Deus nos fecha uma porta, Nossa Senhora nos abre uma janela. Na sua visão simples de mulher sertaneja, temente à Deus e devota de Nossa Senhora (jamais deixou de rezar uma novena em devoção à Virgem Maria no mês de maio), vovó queria mostrar com isso que a Providência Divina jamais desampara aqueles que rezam com fé e confiam na graça de Deus. Sobretudo aqueles que sabem dar amor aos seus semelhantes e procuram, de alguma maneira, ajudar o seu próximo. Mas também sabia ser prática e não deixava tudo nas mãos de Deus, procurando fazer a sua parte. Era sempre requisitada quando algum dos netos adoecia, porque era eximia conhecedora do poder medicinal de algumas plantas e também, por experiência, sabia quais os remédios de farmácia poderiam ser úteis. Resultado, todos os netos sobreviveram e somam em torno de 40.
Uma das cenas que me traz a sua imediata recordação é a presença da lua, quando desponta no finalzinho da tarde e fica quase invisível, esperando a cortina da noite para mostrar o seu esplendor. Quando criança, eu sempre a acompanhava nas visitas que fazia aos filhos e vizinhos. Num dado momento, eu via minha avó tirar algum dinheiro do bolso do vestido, apontá-lo em direção à lua e pronunciar algumas palavras em voz baixa. Um dia ela me explicou o motivo. Era uma oração que aprendera quando criança, pedindo a influência benéfica do velho satélite às suas economias:


Deus vos salve, lua nova
Clara e resplandecente
Quando fores e vieres
Traga mais desta semente!

Coincidência ou não, nunca faltava dinheiro nos seus bolsos. Era uma verdadeira cacimba de areia, uma fonte quase inesgotável. Todos os anos, na Festa de São Francisco, em Canindé, era vítima dos amigos do alheio. Coitada, curta da vista, com dinheiro nos dois bolsos do vestido, era alvo fácil para os ladrões. Por outro lado, inventou um bolso interno, onde guardava as cédulas graúdas. Os filhos brincavam, sempre que ela chegava à Meca Franciscana:

A mamãe já veio deixar o dinheirinho dos ladrões!

Por falar em ladrão, ela tinha uma oração infalível para descobri-los, o “Responso de Santo Antônio”, que parece só funcionar depois do roubo efetuado, não serve para preveni-lo. Esta poderosa oração é muito conhecida em todo o Brasil e encontra-se num velho livro de orações chamado Escudo Admirável*:

RESPONSO DE SANTO ANTONIO

— Se milagres desejais,
Recorrei a Santo Antônio,
Vereis fugir o demônio
E as tentações infernais.

— Recupera-se o perdido.
Rompe-se a dura prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.

— Todos os males humanos
Se moderam, se retiram,
Digam-no aqueles que o viram,
E digam-no os paduanos.

— Recupera-se o perdido.
Rompe-se a prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.

- Pela sua intercessão
Foge a peste, o erro, a morte,
O fraco torna-se forte
E torna-se o enfermo são. (Rezar um Glória ao Pai).

- Recupera-se o perdido
Rompe-se a dura prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.

V. Rogai por nós, bem-aventurado Antônio.
R. Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

(Fonte: Escudo Admirável, pág. 451)

A religiosidade de minha avó estava presente em tudo o que fazia. Sempre se recomendava a Deus e aos santos de sua devoção antes de uma viagem ou de tomar alguma decisão importante. Nos momentos de aflição ou perigo, recorria ao “Lembrai-vos”, de São Bernardo e ao Ofício da Imaculada Conceição. Foi com sua fé e o poder das orações que combateu um incêndio decorrente de uma broca que meu avô estava queimando. Como é do conhecimento da maioria dos leitores, no Nordeste só temos duas estações climáticas: inverno e verão. Em julho as árvores da caatinga começam a amarelar suas folhas e em agosto começa a soprar uma canícula abrasadora que resseca todo o arvoredo, com exceção do juazeiro, da oiticica e de umas poucas árvores que aprofundam suas raízes em busca de um veio d’água. Em setembro os agricultores brocavam os seus roçados e depois de retirar a madeira melhor para construção da cerca tocavam fogo nas coivaras, tendo o cuidado de fazer um aceiro de mais ou menos um metro de largura para evitar que o incêndio se alastrasse pelo restante da propriedade. O dia de queimar o roçado era previamente estudado, conforme a direção dos ventos e a total ausência de nuvens, já que uma neblina poderia por tudo a perder.

Vovó e suas netinhas gêmeas: Gabrielly e Danielly, filhas da tia Heliodória

Foi numa ocasião como esta que meu avô resolveu atear fogo numa broca, coadjuvado pelos filhos e alguns trabalhadores. Por força de circunstâncias adversas perderam totalmente o controle da situação. Em pouco tempo, “o mundo estava se acabando em fogo”, dizia ele de maneira hiperbólica, dando uma viva idéia do que acontecera. O fogo avançava célere rumo ao pasto do gado e às capoeiras de algodão. Minha avó não se deixou abater pelo desespero. Ajoelhou-se diante do oratório da família e principiou a rezar o Ofício da Imaculada Conceição. O céu, como já foi dito, estava sem um fiapo de nuvem. Os ventos e o sol abrasador ajudavam a propagação do fogo. Enquanto vovô e seus auxiliares tentavam infrutiferamente debelar as labaredas, minha avó debulhava a sua reza de maneira contrita e fervorosa. Diversas testemunhas asseguram que em menos de cinco minutos começou a formar-se um nevoeiro, vindo das bandas do nascente e em dez minutos a chuva caía de maneira torrencial. Chuva curta, é verdade, mas suficiente para apagar completamente o fogo que havia se alastrado. Não questiono em absoluto a veracidade deste fato porque sei da honestidade de meus avós, Eles jamais inventariam uma história como esta. O poder da fé os salvou de uma grande aflição.
Na velhice vovó ficou praticamente cega e o que mais lamentava era não poder ler. Jamais ouvi ela se queixar de não poder ver a fisionomia dos entes queridos ou as belezas de um inverno farto. O que ela realmente lamentava era a impossibilidade de escrever cartas para os parentes distantes (fazia com certa dificuldade, sem acertar com as pautas do caderno) e praticar as suas leituras. Depois de uma bem sucedida cirurgia de catarata ela recuperou parte de sua visão e voltou a ler desembaraçadamente.
Alzira de Sousa Lima faleceu no dia 16 de setembro de 1994, após uma luta contra um câncer no esôfago. Ela tinha a garganta muito estreita e engasgava-se com muita facilidade. Certa feita, engasgou-se com um pedaço de galinha e isso deve ter deixado graves sequelas, possibilitando o desenvolvimento do câncer que a vitimou.
Para mim, Alzira representa um farol na minha formação religiosa e cultural. Sua religião era aquela que Ariano Suassuna costuma chamar de “Catolicismo Sertanejo”, bem identificada com os costumes da nossa região e um pouco distanciada da Igreja de Roma. Dentre os seus santos de devoção figuravam também o Padre Cícero, o Padre Ibiapina e outros pregadores nordestinos. E as festas religiosas nordestinas, como todos sabem, unem o sagrado e o profano, de forma indissociável. Era por isso que eu gostava de ir a Quixeramobim e Canindé em sua companhia, pois ela adorava andar pelas ruas apinhadas de gente, comprando brinquedos, frutas, utensílios domésticos e outras bugingangas. Na data de seu centenário de nascimento, é a singela homenagem que lhe presto, com todo amor e carinho.



* Sobre o ESCUDO ADMIRÁVEL - Escudo Admirável para os Males da Vida
Padre Manoel José - Editora: Casa de Cruz Coutinho, ano: 1863
Título completo: Escudo Admirável Para os Males da Vida: Torre fortíssima para o instante da morte e patrocínio efficaz no Divino Tribunal. Nova edição, accrescentada com muitas Novenas e outras devoções Pelo Padre J. R. C.  

terça-feira, 15 de setembro de 2015

SALVAGUARDA DO CORDEL

Poeta e folheteiro Gonzaga Vieira, em atividade há mais de 40 anos

IPHAN promove a salvaguarda e tombamento da Literatura de Cordel, Cantoria, Aboio, Coco, Embolada e Xilogravura como PATRIMÔNIO IMATERIAL DO POVO BRASILEIRO.

"Patrimônio é tudo o que criamos, valorizamos e queremos preservar: são os monumentos e obras de arte, e também as festas, músicas e danças, os folguedos e as comidas, os saberes, fazeres e falares. Tudo enfim que produzimos com as mãos, as idéias e a fantasia" (Cecília Londres)

Stélio Torquato, Lucas Evangelista, Arievaldo, Raimundo Cândido e Humberto Paz

Ao propor práticas e estratégias para a salvaguarda de bens culturais de natureza imaterial, o IPHAN enfrenta o desafio de trabalhar na perspectiva de reconhecimento e valorização das diversificadas e dinâmicas referencias culturais de diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.



LITERATURA DE CORDEL

Luzia Dias, Lucas Evangelista, Arievaldo Viana, Rouxinol do Rinaré e Evaristo Geraldo

O poeta "popular" ou de "bancada", mas conhecido hoje em dia como CORDELISTA está na mira do IPHAN. A Academia Brasileira de Literatura de Cordel - ABLC apresentou documento requerendo o tombamento do cordel e da cantoria como patrimônio imaterial do povo brasileiro. A pesquisadora Rosilene Melo, responsável pela regional Nordeste, incumbiu-me de entrevistar os poetas do Ceará, Piauí e Maranhão. Estarei viajando para Teresina no final deste mês de setembro e para São Luís no início de outubro. Iniciamos o trabalho na semana passada e já entrevistamos alguns poetas, dentre os quais Stélio Torquato, Paulo de Tarso e Lucarocas. Em seguida, foram entrevistados Arlene Holanda (poeta e ilustradora) e Eduardo Macedo (cordelista e xilogravador).
Muitos outros já estão agendados. Interessados em saber mais sobre essa pesquisa, podem entrar em contato comigo através deste e-mail: acordacordel@hotmail.com

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

DIFUSORA DRAGÃO DO MATO


(A voz de ouro das Capembas Rajadas)

(Do Livro das Crônicas)



A Difusora Dragão do Mato, ZYH 1967 operava num estudio feito de varas de marmeleiro, coberto de sacos plásticos e galhos de mofumbo, numa capoeira que principiava logo após o monturo da casa de meus avós. O microfone era uma lata de sardinha ligado por fios de arame a uma velha bacia de alumínio, colocada na extremidade de uma longa vara que servia de antena. Eu destruía velhos cadernos escolares para retirar o arame dos espirais e construir os equipamentos da minha emissora de brinquedo. Além de atuar como disk-jóquei e sonoplasta, eu também era o único cantor da emissora, intepretando desde os clássicos de Luiz Gonzaga, o nosso imortal Rei do Baião, às cantigas safadas de Genival Lacerda, João Gonçaves e Messias Holanda:
— Ô lapa de minhoca, eita que minhocão / com uma minhoca dessas se pesca até tubarãããããoooo!


A construção do estúdio da Difusora Dragão do Mato principiou meio às escondidas. Vovô não gostava que a gente andasse pelos matos armados de foices e facões derribando moitas de marmeleiro e cavando buracos com alavancas para instalação dos pilares (forquilhas) que sustinham o teto da construção. Para tarefas dessa natureza eu contava sempre com a colaboração dos primos Totonho e Oswaldo, mais velhos do que eu, que ajudavam a pegar as ferramentas no quarto da casa velha, quando vovô tirava uma sesta após o almoço. Com um machado conseguimos cortar quatro forquilhas mais grossas e o restante foi feito com barbante, prego, arame e varas de marmeleiro. Tábuas de velhos caixotes e engradados vazios serviram para montar os móveis do estúdio, um verdadeiro luxo para os meus olhos de criança.
Por trás da emissora ficava o meu curral de gado. Gadinho de osso, feito com as articulações do mocotó das reses e o osso do chambari. Mais adiante a minha olaria, onde eu fabricava tijolos um pouco maiores que uma caixa-de-fósforo, com a ajuda de uma pequena grade que eu mesmo havia construído. Chegamos mesmo a fazer caieiras e botar fogo nesses pequenos tijolos, com o risco de incendiar toda a capoeira. Um dia o Totonho chegou com um plano mirabolante:
— Vamos fazer um açude? Nunca vi fazenda sem açude.
— Um açude? Aonde?
— Nessa grota que passa aqui por trás da rádio. Dá um açude que é uma beleza!
Começamos no mesmo dia. Fizemos um barreiro que dava para nadar, quando muito, meia dúzia de patos. Vovô às vezes se incomodava com aquela movimentação, o sumiço de ferramentas que esquecíamos no lugar da “obra” e aquela brincadeira incessante que lhe parecia uma coisa inútil e ociosa. Naquele tempo, menino sertanejo tinha suas obrigações. Os meus primos, por exemplo, botavam água e lenha, cuidavam de animais e trabalhavam no roçado. Só me ajudavam nessas brincadeiras quando não tinham o que fazer. Eu me dedicava mais ao estudo e à leitura e às vezes ajudava na bodega ou dava água a algum animal. Raríssimas vezes fui recrutado para o roçado. Minha avó, principalmente, achava que meu futuro estava nos estudos e não no cabo de uma enxada. Por isso ria embevecida quando escutava meus programas radiofônicos na Difusora Dragão do Mato, ZYH 1967, a Voz de Ouro das Capembas Rajadas.



* * *

Desde menino eu sonhava em me tornar radialista. O velho rádio de casa era ligado direto, das cinco da manhã até a hora de dormir, sintonizado nas rádios mais populares da época: Difusora Cristal de Quixeramobim, Tupinambá de Sobral, Uirapuru, Assunção e Dragão do Mar, de Fortaleza. Eram todas AM, com repertório eclético e comunicadores que ficaram na história da radiofonia cearense. Aurélio Brasil, Wilson Machado, Guajará Cialdini, Cid Carvalho, Narcélio Limaverde, José Lisboa e Jurandi Mitoso estavam entre os mais populares.
Eu me inspirava, principalmente, no Guajará Cialdini, forrozeiro da melhor cepa, que gostava de intercalar a programação com anedotas, chistes e poemas matutos como A estátua do Jorge, de Alberto Porfírio, Confissão de Caboclo, de Zé da Luz e Mulher super-teimosa, de Jota Amaro. Além desses, eu sabia de cor A chegada de Lampião no Inferno, As proezas de João Grilo e outros cordéis que eu lera desde que me alfabetizara. Os deuses que regem o destino da humanidade prestam muita atenção no que faz uma criança, tanto é que me tornei radialista profissional (redator, produtor, comunicador e radioator) algum tempo depois. Tornei-me também publicitário, ilustrador, escritor, poeta popular e declamador, do jeitinho que havia sonhado quando criança. Mas até hoje, nenhum microfone me deu tanto prazer quanto a velha lata de sardinha da Difusora Dragão Mato de Ouro Preto.




Arievaldo Vianna (Memórias - Parte III - O Livro das Crônicas)

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O ano em que cururu pediu lençol...

1974: Final

FARTURA DE PREÁS




Uma fartura, um despotismo, a quantidade de preás que apareceu naquele ano. Depois dos meses de chuva rigorosa, em que até cururu pediu lençol, chegou o mês de junho, mês em que a vovó rezava sempre a Trezena de Santo Antônio de Pádua. Esse período, chamado antigamente pelos sertanejos de “fins d’água”, quando a rama das árvores e o capim começa a amarelar, propicia o surgimento de muita caça. É também o período em que as abelhas produzem mel com abundância e o sertanejo, roçando o algodão ou preparando novas brocas sempre voltava para casa com um favo de mel ou uma caça silvestre. O João, empregado de meu avô gostava de matar nambus. Não errava um tiro. Saia sempre ao meio-dia, depois do almoço e ia tocaiá-las na bebida ou nas camas de folha que faziam, debaixo das moitas de mofumbo, na hora mais quente do dia. Ele sempre voltava com o bisaco cheio delas. Naquele tempo não se falava em ecologia nem haviam criado o IBAMA. Eu tinha pena das nambus, tão bonitinhas e tão perseguidas, mas acabava fazendo igualzinho ao menino da música Fogo Pagou, de Luiz Gonzaga: “Teve pena da rolinha que o menino matou / mas depois que torrou a bichinha, comeu com farinha, gostou...”

Enquanto o João se exercitava na caça às nambus, o Gabriel armava fojos para pegar os preás. Na verdade ele chamava os pequenos roedores por outro nome: “mendengo”. Menino gosta de novidade. Eu dispensava a costela de carneiro mais apetitosa, a galinha mais suculenta, para misturar o meu almoço com nambu ou preá que vovó torrava especialmente para mim.
Gabriel otimizou a captura dos mendengos. Enquanto os outros pegavam de quixós ou fojos primitivos, compostos unicamente de uma tábua posta sobre um buraco, suspensa por duas pequenas traves de madeira e dois pregos servindo de pinos, ele os fazia com latas de querosene da marca Jacaré. Grandes, fornidos, bem feitos, de onde os pobrezinhos não conseguiam escapar. Nos fojos comuns, acontecia de cair um punaré ou um furão. Eles cavavam túneis e os preás se aproveitavam para fugir. Nesse sistema inventado pelo Gabriel nem tatu escapava. Os outros fojos também tinham o risco de cair uma cobra venenosa e picar a mão da pessoa quando fosse tentar resgatar os preás. Nesse fojo de latas, por ser mais profundo e espaçoso, era fácil verificar se havia algum perigo desse tipo, antes de pegar os roedores.
Esses fojos eram armados no meio das veredas dos preás, entre locas de pedras e meio ocultas pelo capinzal, num dos morros que sustentavam a parede do açude. Os bichinhos se alimentavam de uma plantação de batata-doce feita na vazante. A noite, quando adormecia, meus sonhos de menino era iguaizinhos aos da cachorra Baleia, do mestre Graciliano Ramos. De manhazinha cedo Gabriel já avisava:
— Vamos pro açude, buscar os mendengos. Leve um saco, para trazê-los, que de ontem para hoje devem ter caído de oito a dez.
Eu gostava dos preás torrados, mas desejava mesmo era mantê-los vivos, criados dentro de casa. Vovó dizia que não dava certo, pois os gatos iriam comê-los de qualquer jeito. Era mesmo um encanto aqueles olhinhos pretos e redondos, aquele focinho aceso e aquele andar inquieto dos bichinhos. Tanto que quando iam matá-los eu não gostava de ficar por perto e só retornava à cozinha quando diziam que já estavam torrados e postos à mesa. Aí quem ficava com os olhinhos pretos e brilhantes era o menino. Dois zoim de preá do reino e o apetite insaciável da cachorra Baleia!


A cachorra Baleia - Aldemir Martins



quarta-feira, 2 de setembro de 2015

DO LIVRO DAS CRÔNICAS - Parte V

1974: O ano em que me entendi por gente – Parte II
NO TEMPO EM QUE EU “GUEGUELAVA”

Minha tia Heliodória chegara do Rio Grande do Norte e trouxera um namorado. O fato causou certo espanto, pois ela havia saído de casa para um colégio de freiras, a fim de seguir a carreira religiosa. Quando todos pensavam que ela chegaria envergando o hábito de Carmelita descalça, eis que a “Dodóia” aparece com um noivo a tiracolo. O rapaz era o Gabriel. Gabriel Lopes da Silva, de São Paulo do Potengi, município do Rio Grande do Norte. Figura agradável, de prosa farta e fluente, conquistou a simpatia de todos (ou quase todos). Gostava de conversar com as crianças, propunha brincadeiras, era prestativo com os adultos, enfim, diziam que seu único defeito era mentir.
Eu, particularmente não acho que isso seja um defeito, conquanto não se utilize a mentira para prejudicar os outros. O Gabriel apenas enfeitava as histórias com muito engenho e arte. Seria um literato dos bons, caso tivesse se dedicado ao ofício. Como o Chicó, personagem de Ariano Suassuna, o Lopim mentia por amor a arte, sem o intuito de ofender ou prejudicar ninguém. As histórias contadas ao pé da letra, do jeito que realmente acontecem são tão enfadonhas. Nesse caso, a mentira é uma vara de condão que transforma uma abóbora chocha e acanhada numa linda e resplandecente carruagem e um punhado de camundongos fedorentos num séquito de elegantes cocheiros e lacaios, como na história da Gata Borralheira.
Nosso parente Raimundo Pereira Viana havia reinado absoluto no ofício, antes da chegada do Lopim. Em certos momentos, lembrava o Pantaleão, personagem do Chico Anysio, que por sua vez fora inspirado em Alexandre, de Graciliano Ramos, um potoqueiro de peso e medida. O Pereira era um profissional competente. Mesclava histórias reais e bem verossímeis com outras bem cabeludas. E se alguém duvidava ele se remexia na cadeira, temperava a garganta, batia nas pernas com as palmas da mão e dizia:
— Pois foi com toda real certeza!
Ninguém duvidava mais. Exceto minha avó, que fazia um leve ar de riso e balançava a cabeça de maneira quase imperceptível. Eu não perdia um detalhe dessas conversas e comecei a me especializar também na arte de enfeitar histórias. Havia um parente nosso, que não cheguei a conhecer, que era profissional dos mais gabaritados, o tio Miguel Viana, irmão de minha bisavó Mercês. Quando eu preguei as primeiras mentiras vovó arregalou os olhos e disse:
— Esse menino puxou à bênção do tio Miguel Viana. Esse negócio não foi desse jeito. Conte essa história direito, meu filho...


Lá se ia eu remendar a história e contar como realmente acontecera: insossa, desenxabida, medíocre e sem graça. Por que não me deixavam exercitar as artes de “literato”, como faziam livremente o Raimundo Viana e o Gabriel? Até o João da Graça, empregado do meu avô, podia contar suas meias verdades impunemente, a céu aberto. Com o passar do tempo, a referência ao tio Miguel Viana virou um verbo. O verbo Miguelar ou “gueguelar”, como preferia a Alzirinha, minha avó:
— Esse menino está “gueguelando”.
Eu ficava meio sem graça, mas não me emendava. E os outros pegavam carona no chiste criado pela vovó. Tudo que eu dizia era motivo para alguém retrucar:
— Tá gueguelando, hein?
Mesmo quando eu não estava. Mesmo quando a verdade saia pura e cristalina. Foi aí que minha avó me contou a fábula do pastorzinho mentiroso que gritava pelos companheiros:
— Acudam, acudam, tem um lobo atacando o rebanho!
Quando os outros chegavam, em seu socorro, o tal pastorzinho bolava de rir, pois não havia lobo nenhum. E isso se repetiu muitas vezes. Mas um dia o lobo veio mesmo e começou a devorar as melhores crias do rebanho. O pastorzinho apavorado gritava pelos companheiros, mas ninguém veio em seu socorro. Era o preço da mentira, dizia a vovó. A lição me serviu e passei a evitar a mentira. Em compensação passei a arremedar os outros. Nos gestos, na fala, nos tiques. Triste daquele que eu me punha a imitar. Eu copiava o que havia de mais desajeitado ou ridículo e elevava ao cubo. À quintessência. As pessoas morriam de rir e eu aproveitava a ocasião para fazer uma coleta de moedas para o meu cofrinho de lata.
Por esse tempo eu já beirava os sete anos e havia saído da barra das saias das matriarcas da família. A influência de minha avó, de mamãe e da tia Augediva, que cuidava de mim na maior parte do tempo, ia diminuindo a cada dia, sobretudo depois que tio Everardo me deu um trinchete de presente e me botava na garupa do cavalo ou na lua da sela, para incursões pelos arredores do Ouro Preto. Era nos balcões das bodegas que eu me abastecia de um repertório novinho em folha de boas histórias para contar. Contar causos arremedando os outros era a minha especialidade.

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Tudo corria mais ou menos nesse pé. O inverno tornava-se mais rigoroso a cada dia. O pessoal do Pau D’Arcal, cliente da bodega do vovô, queixava-se que a terra estava toda brejada e que teriam grande prejuízo, pois as plantações amofinavam por excesso de chuva. As mercadorias não chegavam para repor o estoque da bodega porque as estradas estavam todas cortadas. O paiol de rapadura virou um melaço, com a friagem. Caíram muitas pontes e as estradas carroçáveis se transformaram em terríveis atoleiros. Dona Clara, esposa do “seu” Zé Canhoto, morador de meu avô estava em dias de ganhar menino. Foi um sufoco danado. Parto difícil. A mulher estava às portas da morte por falta de socorro. Meu tio José Oswaldo passou a perna num cavalo e foi na Madalena buscar o velho Benoni, um dentista prático que também fazia vezes de parteiro. Foi uma novela para transpor o atoleiro dos “Sete Pecados” e a travessia do Rio Cacimbinha foi feita numa balsa. Em Macaóca ele teve que subir numa jangada improvisada: uma porta amarrada sobre a câmara de ar de um pneu de trator.
Já de volta, outro problema. Mestre Benoni ficou indeciso quando viu a cheia do rio e a fragilidade da embarcação. Foi preciso ministrar-lhe uma terça de cachaça da mais braba que havia e botá-lo quase a força em cima do pequeno transporte fluvial. Titio que gostava de botar uma pitada de humor em tudo que dizia, contava que o velho Benoni parecia um cururu tei-tei, encarapitado em cima da balsa. Quando chegou à casa da parturiente, o bebê já havia morrido no ventre da mãe e foi extraído a muito custo. Dona Clara sobreviveu, para alegria do marido e da filharada, que já passava de dez.


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terça-feira, 1 de setembro de 2015

DO LIVRO DAS CRÔNICAS - Parte IV



1974: O ANO EM QUE ME ENTENDI POR GENTE

O ano de 1974 foi atípico. A começar pela experiência do dia de Santa Luzia, realizada por minha avó na noite de 12 para 13 de dezembro do ano anterior, a primeira do gênero que testemunhei. Vovó pegou uma tábua de pinho, colocou seis pedrinhas de sal e escreveu a lápis os nomes dos seis primeiros meses do ano vindouro. Cheio de curiosidade, perguntei como funcionava aquela experiência e ela explicou-me pacientemente. No dia seguinte, as pedrinhas seriam examinadas e se estivessem úmidas haveria bom inverno. Se amanhecessem secas, contudo, seria justamente o contrário. Torci para que amanhecessem alagadas pois meu avô havia preparado um enorme terreno para o plantio de um roçado e vivia pedindo chuva todo santo dia. Acho que até novena fizeram, pedindo bom inverno, fartura de gêneros, muita água e pasto para o gado. Em seguida, vovó pôs a dita tábua no frechal da cozinha e fomos nos deitar. De manhãzinha acordei com suas exclamações de espanto:
— Manuel, venha cá! Veja isso... As pedrinhas derreteram todas. Vamos ter o maior inverno dos últimos tempos no ano que vem.
— Louvado seja Deus, minha velha! Estamos mesmo precisando de chuva...
Levantei-me às pressas, com os olhos ainda embaraçados pelo sono e dirigi-me à cozinha onde meus avós testemunhavam os efeitos da dita experiência. Seguindo a velha crença popular, seria inverno de cabo a rabo. Nos meses de março e abril as pedras haviam se dissolvido de tal maneira, que a salmoura escorria pelas bordas da tábua. A partir de então, todas as pessoas que chegavam eram convidadas a ver aquele pequeno fenômeno do misticismo sertanejo, sempre taxado de crendice e abusão pelos entendidos da Ciência. Religiosidade à parte, penso eu que as pedras de sal servem para medir a umidade relativa do ar no período que antecede a quadra invernosa.

Profetas da Chuva - evento promovido pela UNILAB

Naquele tempo vovô não andava bem de saúde. Padecia dos sintomas de uma gastrite renitente, fumava compulsivamente e zangava-se com facilidade. Vovó dizia que ele andava enfezado e impertinente e procurava tratá-lo com brandura, para não exasperá-lo. Eram sintomas de uma úlcera que quase o levou a morte, mas, felizmente, tudo foi superado. Falarei sobre isso mais adiante.
Eu já tinha seis anos de idade e começava a compreender melhor o ambiente que me cercava. Sempre fui observador e procurava me inteirar de tudo. Naquele tempo, minha maior preocupação era ajuntar moedas numa lata vazia de leite em pó, para gastar na noite de Natal, em Canindé. Eu sabia exatamente o que desejava comprar com aquele dinheiro, poupado ao longo dos meses. Ninguém escapava à minha coleta. Os namorados de minhas tias eram minhas vítimas preferidas quando se tratava de arranjar mais um níquel para o meu cofrinho improvisado.
Foi mais ou menos por esse tempo que começaram a me alfabetizar e o meu fetiche eram os versos e romances da maleta de minha avó. Até àquela época ninguém chamava folheto de feira de “cordel”. Foi um apelido bem tardio, posto por pesquisadores europeus que andaram por aqui procurando chifre em cabeça de cavalo. Eu queria adquirir novos títulos nos festejos de Canindé e, se possível, um brinquedo também, com aquelas moedas que vinha ajuntando pacientemente. Mal sabia eu que mamãe tinha outros projetos e praticamente obrigou-me a comprar um par de sapatos com as minhas moedas. Quando falei em brinquedo ela foi taxativa:
— Maaaaarrrrr menino!... Seu dinheiro acabou!
— Acabou? Como?
— Ora mais esta... Mal deu para comprar o seu par de sapatos. Deixe de aperrear senão da próxima vez não lhe trago mais para Canindé.
A revelação feita assim, a queima roupa, pareceu-me uma machadada no quengo de um bode magro. A sorte é que meu avô me deu mais uns trocados e pude, finalmente, adquirir os tão desejados folhetos de feira, que estavam espalhados sobre uma lona na Praça Thomaz Barbosa, centro de Canindé. Eram centenas de títulos, das duas editoras de Juazeiro e também de João José e Manoel Camilo dos Santos. O folheteiro era um profissional bem traquejado no ofício e cantava trechos dos romances. No ápice da leitura, fechava o folheto e dizia:
— Quem quiser saber o resto, vai ter que comprar o livrinho.
Quase todo mundo comprava. Eu me peguei com “O Príncipe do Barro Branco e a Princesa do Reino do Vai-não-torna”, de Severino Milanês da Silva e um exemplar de “O grande debate de Lampião com São Pedro”, do genial José Pacheco da Rocha. Ainda quis adquirir os dois volumes do Cancão de Fogo mas o dinheiro não deu. Ficou para outra ocasião. Lembro-me que algumas pessoas da família me criticavam dizendo que eu tinha mania de gente velha, que na minha idade seria normal adquirir um livro infantil, uma revista em quadrinhos e não aqueles romances com cheiro de coisa passado. Os matutos já procuravam se modernizar, renegando Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e a poesia popular, substituindo-os pelas canções da Jovem Guarda e até mesmo por estrelas da música internacional.


Eu já nasci teimoso. E autêntico. Eu gostava mesmo era de forró e não perdia uma audição do programa “Guajará no Varandão”, onde o apresentador (o saudoso Guajará Cialdini) costumava declamar poemas de Zé da Luz, Patativa do Assaré, Jotamaro e Alberto Porfírio. Por ali desfilavam as canções de Luiz Gonzaga, Marinês, Ary Lobo, Jackson do Pandeiro, Dominguinhos e Trio Nordestino. A linguagem do apresentador não tinha aqueles floreios urbanos que a gente escutava nos demais programas. Era uma prosa telúrica, com gosto de café torrado no caco.

Chegou o compadre Janeiro, como diziam os matutos e o inverno veio mesmo. Torrencial, abundante, desabusado como havia predito a experiência das pedrinhas de sal. O bom presságio fora também confirmado pela barra do alegre Natal. De repente as chuvas começaram a cair em excesso e as preocupações de meu avô foram aumentando a cada dia, agravando ainda mais o seu quadro de saúde. Foi no meio dessa invernada, com estradas encharcadas de lama, pontes quebradas, açudes arrombados, serras derretendo a olhos vistos, que meu avô caiu de cama gravemente enfermo. Com tanta coisa acontecendo ao meu redor comecei gradativamente a afastar-me das brincadeiras despreocupadas de criança e, pela primeira vez, pensei no futuro. O que seria de nós sem o vovô, mola mestra daquela família? Dizem que aos sete anos a criança começa a tomar consciência de seus atos... Antes disso as memórias que guardo da primeira infância são fragmentadas, encobertas por uma névoa difusa. Depois tudo ficou claro como uma pedra de malacacheta rebrilhando ao sol. Para mim, 1974 foi um ano que ficou na história.