terça-feira, 30 de maio de 2017

UMA FÁBULA


O JULGAMENTO DA OVELHA

Uma fábula de Monteiro Lobato

Um cachorro de maus bofes acusou uma pobre ovelhinha de lhe haver furtado um osso.
— Para que furtaria eu esse osso — alegou ela — se sou herbívora e um osso para mim vale tanto quanto um pedaço de pau?
Não quero saber de nada. Você furtou o osso e vou já levá-la aos tribunais.
E assim fez.
Queixou-se ao gavião penacho e pediu-lhe justiça. O gavião reuniu o tribunal para julgar a causa, sorteando para isso doze urubus de papo vazio.
Comparece a ovelha. Fala. Defende-se de forma cabal, com razões muito irmãs das do cordeirinho que o lobo em tempos comeu.
Mas o júri, composto de carnívoros gulosos, não quis saber de nada e deu a sentença:
— Ou entrega o osso já e já, ou condenamos você à morte!
A ré tremeu: não havia escapatória!… Osso não tinha e não podia, portanto, restituir; mas tinha a vida e ia entregá-la em pagamento do que não furtara.

Assim aconteceu. O cachorro sangrou-a, espostejou-a, reservou para si um quarto e dividiu o restante com os juízes famintos, a título de custas…

quarta-feira, 24 de maio de 2017

CAUSOS DO PAULIM - 2


DE COMO PAULIM FOI PARAR
NO SANTANTÕIM DO BURACO

Por José Augusto Moita

     Aos mais jovens e aos que não são de Fortaleza, devemos primeiro dizer que o Santantõim do Buraco era um local aqui próximo onde existia uma escola de correição para jovens delinquentes. E agora vocês, que conhecem bem de perto o Paulim, hão de perguntar de queixo caído como pôde isso acontecer, se ele foi um menino de conduta ilibada, de ótimos antecedentes, religioso ao extremo e que só vivia do colégio para o lar. E lhes responderei, antes que pairem dúvidas sobre a dignidade de tão querido personagem, que tudo não passou de uma sórdida campanha, liderado por um invejoso desafeto que não suportava ver Paulim como o melhor aluno da classe, líder estudantil e presidente do Grêmio Escolar.

   
 A calúnia que resultou na desventura do nosso herói se deu no dia do aniversário de Dona Mocinha, jovem e bonita mestra sobre a qual Paulim nutria uma homérica paixão infantil. Só que ele não era o único. Q'suco, um garoto sardento do cabelo vermelho, capeta em forma de guri, também estava platonicamente enamorado da professorinha. E resolveu destruir seu concorrente através de uma sórdida trama: embrulhou cuidadosamente para presente uma caixinha daquelas que trazem dentro jóias acolhidas por chumaços de algodão, e no lugar do conteúdo, cuidadosamente alojado colocou um retorcido pelo pubiano. Posicionou o artefacto estrategicamente na gaveta primeira a ser aberta pela mestra, junto com um bilhete apócrifo que dizia: uma prenda do aluno mais elegante e bonito da escola.
      A diretora, depois de conseguir fazer tornar do desmaio Dona Mocinha, exigiu uma apuração sumária para descobrir o executor do atentado terrorista. Não tinha como Paulim escapar, tudo compunha em seu desfavor. Além do peremptório "mais elegante e bonito", por essa época ele já dedilhava alguns acordes ao violão, cantando uma modinha muito em voga à época que falava de cabelos em forma de caracóis. Não deu outra, desceu para o submundo dos apenados juvenis.
     Como nesse mundo não há injustiça que perdure, sua redenção veio através de quem menos se podia esperar, Dedé Sonho de Valsa, o cidadão alegre encarregado da higiene pessoal dos garotos. Ao submeter Paulim ao primeiro banho, o diligente encarregado, com seus olhar cirúrgico, observou que além de um diminuto pingolim, nosso futuro Gogó de Ouro da Maraponga ainda estava com a genitália completamente desprovida de pelos, a não ser uma rala e insignificante penugem. E de imediato fez um ofício à diretora, relatando que o material encontrado no corpo do acusado era  incompatível com o objeto da acusação. Graças a essa alma caridosa se deu a absolvição do Paulim, que pode ir para o conforto do seu lar, mas antes passando pelo escritório do Dedé para ganhar um Sonho de Valsa.

terça-feira, 23 de maio de 2017

Histórias do PAULIM


AS PROEZAS DE PAULIM
NO SANTANTÕE DO BURACO

Meu amigo Paulo Renato da Silva Costa, músico talentoso, mais conhecido pelo codinome de Paulim, fez hoje uma postagem no facebook que me trouxe à mente algumas recordações dos meus tempos de menino. O Paulim tem umas tiradas engraçadas. De "pareia" com o José Augusto Moita ele faz a gente se "esqueixelar" de rir.
Nas décadas de 1960/70, todo menino danisco, levado da breca, fiote ou impossível era ameaçado de ser internado no Santo Antônio do Buraco (Instituto Carneiro de Mendonça), cujas instalações ficam depois de Maracanaú, num lugar chamado Olho D'água, onde moravam os irmãos de minha mãe. Atualmente o local se chama Olho D’água de Santo Antônio do Pitaguary.
No blog de Manoel Róseo Landim, encontramos a seguinte explicação para a origem do Santo Antônio do Buraco:

“Ninguém sabe, com certeza, a história de Santo Antônio do Buraco, mas de acordo com a lenda e a crendice popular, seu Antônio, chefe da Família Pitaguari, ardentemente devoto de santo Antônio,nutria um grande desejo: possuir a imagem do Santo, como as existentes nas igrejas. A sua casa só tinha estampas em papel. Certo dia, em suas constantes andanças pelas redondezas de sua moradia, viu um ponto luminoso como que emergindo de um buraco. Aproximou-se vagarosamente, pé-ante-pé e lá, refletindo à luz do sol, a cobiçada imagem de Santo Antônio. Estava num buraco estreito, mas muito fundo. Santo Antônio estava preso nas ramagens da borda do buraco. Logo uma fonte surgiu, perene, ao lado, com água milagrosa. Daí o lugar ter sido chamado, inicialmente Santo Antônio do Buraco.”

Crédito da imagem: Blog Manoel Róseo

Era próximo a esse recanto bucólico que funcionava O Instituto Carneiro de Mendonça ou Escola de Menores. O ‘Santantõe do Buraco’, juntamente com o Véi do Saco e o Chiqueirador, um relho de couro cru, bem comprido, amarrado na ponta de cacete de jucá (tipo aqueles chicotes de domadores de circo), foram o terror de muitas crianças da nossa geração. Na maioria das vezes eram só ameaças, para o pivete se aquietar, mas às vezes bem que rolava umas lapadas. A respeito desse instrumento de suplício, usado para tanger comboios de jumento, o gado e as cabras do chiqueiro, havia até um dito popular. Um grupo de adultos se reunia para jogar baralho ou dominó e os meninos ficavam rodeando a mesa de jogo e, de vez em quando, deixavam escapar um palpite, uma indiscrição, que era de pronto repreendida:

- Peru calado, ganha UM CRUZADO. Peru falador, ganha CHIQUEIRADOR.

No mesmo instante o menino se calava e parava de “aperuar” o jogo alheio.
Quanto ao 'Santantõe do Buraco', ouvi muito essa ameaça, porque na verdade não fui menino dos mais quietos.  Além das travessuras costumeiras eu era, no dizer dos adultos, fiote, letrado, cabido e conversador de arisia. Pelos idos de 1979/80 visitando uns tios que moravam por ali, perto do Horto Florestal, em Maracanaú, vi que as instalações da velha escola correcional estavam abandonadas. Que alívio. Mas, deixemos de coisa e cuidemos na vida, como disse o autor de Na hora do almoço, e passemos ao texto publicado pelo Paulim em suas redes sociais:

“Lembranças da minha infância, que me acompanham até hoje. Tinha um casal de idosos que saia pelas ruas do bairro onde eu morei até aos meus treze anos de idade, Jardim América. Eles fuçavam os sacos de lixo da vizinhança, para catar qualquer coisa que encontrasse. Ele, SEU CHICO MOCURA. Ela, JESSINA PAPEL CAGADO. Mas eles dois metiam um medo danado na gente. Pois os mesmos carregavam uns sacos pendurados que a mãe dizia que eles levavam crianças 'maluvidas' e malinas que não gostavam de rezar e estudar, lá para um tal de Santo Antônio do Buraco. Quando eu os avistava de longe, eu corria pra 'dendicasa' e ficava brechando pelo buraco das venezianas da janela, até eles sumirem, dobrando a esquina.
Este retrato foi tirado lá no Pan Filme, pertinho da praça do Jardim América. Espiem, o charme do garoto!”

Como se nota, Paulim não chegou a entrar no Buraco do Santantõe, a tal escola correcional para menores. Será que a cabecinha do Paulim não passou no buraco? O que se apreende, pelo texto que postou, é que foi constantemente ameaçado por sua genitora, que usava as figuras do casal de catadores de lixo - Chico Mocura e Jessina Papel Cagado para amedrontá-lo, causando profundos traumas na pobre criança. Daí essa carinha de tristeza que ele apresenta na sua foto de sete anos (brincadeira, Paulim, não me queira mal).
É oportuno registrar também o comentário do leitor Raimundo Cavalcante dos Santos, o popular Raimundão. Só faltou o José Augusto Moita, para também dar o seu palpite...

“ Instituto Carneiro de Mendonça "Santantõe do Buraco, Se eu não tivesse uma avó invocada, eu teria ido pra lá depois de quebrar o chifre de uma vaca da vacaria do seu Antonio Jovino, no Carlito Pamplona em 1959/1960.”


* * *

Segundo Ailton Gomes, que mantém a página Maracanaú Antigo, no facebook, “Os menores que eram recolhidos ao Instituto Carneiro de Mendonça eram muito diferentes dos atuais, que estão em unidades da FEBEM. Naquela época, eram apenas crianças e adolescentes abandonados pelas famílias ou autores de pequenos delitos. Eles não causavam tumulto, nem fugiam. Vejam nas fotos das postagens anteriores (postadas na página Maracanaú Antigo), que o muro era muito baixo, da altura das crianças. Antigamente, os pais amedrontavam profundamente seus filhos, quando ameaçavam enviá-los para o “Santo Antônio do Buraco”, que era o nome popular dado ao Instituto Carneiro de Mendonça e eternamente conhecido por “Escola de Menores”.


Escola de Menores (Foto da Prefeitura Municipal de Maracanaú).


Crédito da imagem: Blog do Manoel Róseo.

TEXTO | PESQUISA: Arievaldo Vianna


Fontes: facebook do Paulo Renato Costa e http://manoelroseo.blogspot.com.br

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Um conto de Malba Tahan

AS MERCADORIAS DO DIABO

Conta-nos Malba Tahan, no interessante livro Maktub! (Estava escrito!) esse curioso episódio ocorrido há muitos anos, segundo o autor, na poderosa Babilônia, a cidade das Cem Portas...

Certa feita um grande sábio, tido e havido como um santo homem, deixava uma grande cidade quando  encontrou-se com o Diabo (que Deus o confunda!) que conduzia uma pequena caravana com seis camelos de raça carregados de estranha carga.
Perguntou o servo de Deus:
- Que levas aí ó Cheitã?*
Respondeu o demônio:
- Estas são as mercadorias que pretendo vender na cidade.
- Poderás dizer-me que mercadorias são essas, cujo peso parece cansar os teus possantes camelos?
- O primeiro camelo está carregado de injustiça; o segundo leva uma bela carga de avareza; trago no terceiro, mil arrobas de vaidade; o quarto está carregado de perfídia; o quinto de egoísmo e o último o mais forte de todos está carregado de ambição.
- Injustiça, avareza, vaidade, perfídia, egoísmo e ambição, repetiu o sábio cheio de espanto.
- E a quem pretende vender tais mercadorias?
- Venderei a injustiça aos magistrados, explicou o demônio. Os ricos de mim comprarão a avareza. A vaidade será adquirida pelas mulheres. A perfídia pelos políticos. O egoísmo será para os poderosos. A ambição será comprada pelos mercadores.
- Volta com sua tropa ó Cheitã! Bradou com veemência o sábio. - Não conseguirás um centavo. A tua mercadoria será repelida por todos!
Pouco tempo depois, repousava o santo homem sob a sombra de uma árvore, quando avistou de novo o demônio que regressava da cidade, trazendo em tranqüila marcha os seis camelos, desprovidos de suas cargas.
- A quem, ó maligno, vendestes a tua horrível mercadoria? Indagou o santo homem.
- Ao entrar na cidade, contou o demônio, encontrei um homem rico e poderoso. Interessou-se logo pelas mercadorias e quis arrematar tudo sem fazer questão de preço.
- E vendestes tudo a um só homem? Acudiu o santo assombrado.
- Sim. A um homem só. E creia-me, o exigente comprador achou pouco e queria mais. Mora num suntuoso palácio de belas colunas brancas, cercado por um lago artificial.
- Meu Deus! Quem mora ali é o nosso Governante. Se ele precisou de suas mercadorias, é porque pretende abolir as leis, esquecer o direito dos fracos, perseguir os humildes, e transformar-se enfim num tirano!
E concluiu desolado.
- Sim, aquele que abusa da força e do poder para negar o direito e exercer a tirania, tem por certo a alma repleta de todas as mercadorias do diabo.

(Livre adaptação de um conto de Malba Tahan, do livro Maktub! (Estava escrito!)


*Cheitã – Um dos nomes do diabo, segundo os mulçumanos

quarta-feira, 10 de maio de 2017

ANIVERSÁRIO DO LEOTA


Monumento em homenagem a Leonardo Mota, em Pedra Branca, sua terra natal, parcialmente destruído pela ação de vândalos.


Leonardo Mota, Jacó Passarinho e Cego Aderaldo

HÁ 126 ANOS NASCIA LEONARDO MOTA

Leonardo Mota (Leonardo Ferreira da Mota), jornalista e folclorista, nasceu em Pedra Branca CE, em 10/5/1891, e faleceu em Fortaleza CE, em 2/1/1948. Formou-se pela Faculdade de Direito do Ceará, em 1916.
Colaborou na imprensa cearense e do Sul do país. Publicou alguns volumes com farto documentário sobre o sertão nordestino, principalmente com referência à literatura oral — poesia, anedotário e adagiário:
 Cantadores, Rio de Janeiro, 1921 (2ª. ed., Rio de Janeiro, 1953; 3ª. ed., Fortaleza, 1961); Violeiros do Norte, São Paulo, 1925 (2ª. ed., Rio de Janeiro, 1955; 3ª. ed., Fortaleza, 1962); Sertão Alegre, Belo Horizonte, 1928 (2ª. ed., Fortaleza, 1965; 3ª. ed., Rio de Janeiro, 1976); No tempo de Lampião, Rio de Janeiro, 1930; Prosa vadia (Palestras lítero-humorísticas), Fortaleza, 1932; A padaria espiritual, Fortaleza, 1939.



Leota na defesa do folclore nordestino

Nos cafés existentes na antiga Fortaleza, onde intelectuais e poetas se reuniam diariamente, uma figura se destacava nas conversas, nas histórias bem humoradas sobre o homem do sertão: Leonardo Mota. Com o poder incomum de declamação, atraia sempre a atenção geral, divulgando através de sua memória prodigiosa os mais belos versos do cancioneiro popular. No Café Riche, Maison Art Noveau e Bar do Majestic, palcos tradicionais da sociedade cearense da época, ele brilhava na poesia. Um autêntico boêmio que legou ao Brasil os maiores estudos sobre o folclore. Um escritor que alcançou, em vida, a fama, o sucesso.
Rachel de Queiroz, da Academia Brasileira de Letras, lembra que o livro de estréia de Leonardo Mota, "Cantadores", conseguiu ser naquele tempo um "best-seller": "Sucesso difícil para um gênero considerado árido - pois quem, senão eruditos, lê folcloristas? Mas Leonardo Mota - ou antes Leota, o seu pseudônimo predileto - era lido com avidez e entusiasmo não só pelos seus colegas especialistas, como também pelo público em geral, dada a apresentação deliciosa dos temas, a inteligência na escolha do Material posto nos livros, a par da fidelidade exemplar com que ele reproduzia o falar sertanejo em toda a sua pura autenticidade e riqueza".
A autora do romance "O Quinze" observa que tais estudos não calam nos exageros e ridículos do chamado "falar caipira", que é uma contrafação posta em voga pelo teatro de revista, com fins de comicidade fácil". Diz que a seriedade de seus trabalhos era de tal forma surpreendente que "os cantadores profissionais consideravam a inclusão de seus versos num dos livros de Leonardo, como a consagração suprema, e a disputavam com afinco".
- E olha que não se tratava - complementa Rachel - de "cantadores" dessa fauna pobre e poluída pelo rádio, que anda hoje por ai, era o tempo dos gigantes, dos mestres ainda não superados e até agora imitados, que deixaram marca indelével no cancioneiro nordestino.

Sânzio de Azevedo, professor de Literatura na Universidade Federal do Ceará, destaca a importância de Leonardo Mota: "Ele se aprofundou nas pesquisas sobre o folclore, sendo imenso o número de trovas, desafios e anedotas que colheu diretamente do povo, em longas viagens ao interior, o que lhe valeria a fama de um dos maiores folcloristas do Brasil em todos os tempos". Além de recolher trabalhos que eram dispersos pelo tempo, Leota se dedicava também à poesia. O soneto "Pedra" um exemplo:

- Pedra que eu amo, pedra confidente
De todo o mal que o coração tortura,
Tu, que tens a serena compostura
De quem da vida a inquietação não sente,

Tu, que vives de todo indiferente
Ao lodaçal desta charneca impura
Que nós chamamos mundo, pedra escura
Que eu te cobice a placidez consente!

Pudesse eu ter a calma soberana
Que tens, em vez de agitação insana
A sacudir meu peito de precito ... 

Faze-me, pedra à tua semelhança:
- Dá-me o sossego, a plácida confiança,
Faze desta alma um bloco de granito!.



O escritor Florival Seraine, do Instituto Histórico do Ceará, afirma que nenhum pesquisador de folclore no Brasil pode prescindir de consulta à obra de Leonardo Mota: "Ele realizou trabalho de extrema importância para a preservação da cultura popular. Realmente é impossível o desenvolvimento de qualquer pesquisa sem antes verificar as contribuições de Leota sobre os estudos nordestinos". O poeta Cláudio Martins, Presidente da Academia Cearense de Letras, manifesta-se admirador de Leota:

- Foi o homem mais vocacionado de todos os que se dão ao luxo do trabalho intelectual no Pais. Leota desfez-se do seu cartório para fazer pesquisa no plano da literatura natural, popular. Mesmo sendo ótimo poeta, preferiu dedicar-se à divulgação dos mais importantes versos populares brasileiros. Revelou ao Brasil a grandeza existente na poesia nordestina. Se não fosse seu esforço, muito da cultura popular estaria hoje perdida.
Leonardo Ferreira da Mota nasceu em Pedra Branca, em 10 de maio de 1891, filho de Leonardo Ferreira da Mota e Maria Cristina da Silva Mota. Terminou os preparatórios no Liceu do Ceará (1909), depois de Ter estudado em escolas primarias de Quixadá, no Seminário de Fortaleza (1903) e no “Colégio São José” na Serra do Estevão (1904 a 1908). Bacharel pela Faculdade de Direito do Rio de janeiro, em 1916, foi redator de jornal "Correio do Ceará" e diretor da "Gazeta Oficial". Foi notário público, tendo vendido o cartório para, com o dinheiro, custear as suas excursões folclóricas. Conhecido pelo pseudônimo de "Leota" assinava crônicas na imprensa cearense sobre os mais variados assuntos. Em 1921, publicou um de seus mais importantes livros: ''Cantadores''.

Dedicado totalmente ao folclore, reuniu depois suas pesquisas nos volumes "Violeiros do Norte" (1925), "Sertão Alegre" (1928), "No Tempo de Lampião" (1930), "Prosa Vadia" (1932) e "A Padaria Espiritual" (1938). Pela relevância de sua obra, foi eleito para a Academia Cearense de Letras e Instituto do Ceará. Considerado o "príncipe dos folcloristas nacionais", faleceu em Fortaleza, em 2 de janeiro de 1948.
No dia da morte de Leonardo Mota, os originais do livro "Adagiário Brasileiro” sumiram misteriosamente. Até hoje não se sabe de seu paradeiro. Graças ao trabalho persistente de seus filhos Moacir e Orlando Mota, aquele documento foi reconstituído numa tarefa que levou quinze anos, através de manuscritos, rascunhos e recortes de jornais, Com seiscentas páginas, "Adagiário" reúne dez mil ditados, locuções, modismos, ditos e comparações matutas.
O escritor Moreira Campos compartilha da opinião geral de que Leonardo Mota é o nosso maior folclorista: "Sem dúvida que neste campo uma grande autoridade do Nordeste e do Brasil, do ponto de vista da interpretação dos fenômenos folclóricos, é a Câmara Cascudo. Mas ele não excedeu a Leonardo Mota no que este pode recolher em relação sobretudo ao Nordeste". E acrescenta:
- De resto, destaque-se a graça com que escrevia. A força com que sabia transmitir os fatos. E isto está não só nos seus livros, como nas conferências que pronunciou. Conferências aliciantes, pelo seu jeito de narrar, pelos efeitos que tirava de sua exposição. Ele esqueceu todos os bens materiais para perseguir seu objetivo que foi o folclore.
Otacílio Colares, no livro "Lembrados e esquecidos" (Vol. 11), traça o perfil de Leonardo Mota: "Ledor incansável, periodista de têmpera, "causeur" inimitável, possuidor de extraordinária memória e de uma "verve" somente igualável aos seus talentos expressionais, alcançou, no Brasil, ao tempo em que seu nome começou a projetar- se, fora do Ceará, como o de um dos mais dedicados soldados de pesquisa folclórica, à época, justamente, do fastígio da conferência artístico-literária. A época em que, no Sul, os escritores mais populares tinham na tribuna do conferencista (conferente, como se dizia, então) o veículo, maior de sua popularidade".
Em conferência proferida no antigo Clube Iracema, em Fortaleza, Leonardo Mota falou sobre sua paixão "pela observação e estado dos costumes, da linguagem e da poesia das nossas gentes do sertão". Interessado desde menino pelo assunto, foi seduzido pela "vaidade de ser no nosso País, uni arauto da inteligência do brasileiro nordestino". "Realmente, Leonardo Mota mostrava toda a revolta contra a marginalização imposta aos nordestinos, ao desrespeito por sua cultura e folclore. Em "Musa Matuta", um dos capítulos do livro "Violeiros do Norte", revela a postura assumida em sua peregrinação pelo Brasil:
- Fui intransigente na defesa do sertão esquecido, do sertão ridicularizado, do sertão caluniado e só lembrado quando dele se quer o imposto nos tempos de paz ou o soldado nos tempos de guerra. E foi, sobretudo, contra o labéu de cretinice do sertanejo nordestino que orientei a minha documentada contradita: em todo o meu "Cantadores" e nas conferências que proferi, de Norte e Sul, pus o melhor dos meus empenhos em fazer ressaltar a acuidade, a destreza de espírito, a vivacidade da desaproveitada inteligência sertaneja, de que os menestréis plebeus são a expressão bizarra e esquecida, apesar de digna de estudos.
Em todos as capitais que Leonardo Mota visitava, ouvia-se a sua voz contra o preconceito existente em relação ao sertanejo: "Todo me devotei a uma campanha de morigerado nacionalismo, refutando a velha injustiça de as populações litorâneas ou citadinas só exergarem no sertanejo ou o cangaceiro "de alma, de lama e de aço", a que se reporta Gustavo Barroso, ou o ser desfibrado e lerdo que "magina de cócoras" e tão inexoravelmente caricaturado por Monteiro Lobato. Protestei contra essa mania de autodesmoralização que tristemente nos singulariza".
Existe ainda outra característica de Leonardo Mota muito conhecida entre seus amigos: a da improvisão de versos espontâneos, elaborados de forma jocosa, humorística. Entre as dezenas de casos vividos pelo poeta, um dos mais conhecidos é sempre contado nas rodas boêmias. A história se originou quando, em viagem pelo interior, Leota recebeu um bilhete no hotel em que estava hospedado. O proprietário, de nome "Maleta", pedia que ele "quitasse" a divida de alguns dias de permanência. Em resposta, escreveu o seguinte bilhete:

- "Meu caro amigo Maleta, 
tenha pena do poeta.
Eu vejo a coisa tão preta
que não quero ser profeta/. 
Posso lá dizer-lhe a data/
em que eu terei a dita/ 
de pagar-lhe esta maldita/
conta que tanto me mata./

Eu não sou homem de fita/
e por isso evito a rata/
de dizer-lhe a data exata/
em que esta conta se quita/
Veja bem a minha luta./
A paciência se esgota./
Que vida filha da p ... /

Saudações, Leonardo Mota".


Fontes: Leonardo Ferreira da Mota - Vithor.cjb.net; Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora - Publifolha - 2a. Edição - 1998 - São Paulo

segunda-feira, 8 de maio de 2017

CONTOS QUE LI NA INFÂNCIA - VII


OS TRINTA E CINCO CAMELOS
Malba Tahan

Poucas horas havia que viajávamos sem interrupção, quando nos ocorreu uma aventura digna de registro, na qual meu companheiro Beremiz, com grande talento, pôs em prática as suas habilidades de exímio algebrista.
Encontramos, perto de um antigo caravançará meio abandonado, três homens que discutiam acaloradamente ao pé de um lote de camelos. Por entre pragas e impropérios, gritavam possessos, furiosos:
— Não pode ser!
— Isto é um roubo!
— Não aceito!
O inteligente Beremiz procurou informar-se do que se tratava.
— Somos irmãos — esclareceu o mais velho — e recebemos como herança esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo eu receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte, e ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos. A cada partilha proposta, segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio! Como fazer a partilha, se a terça parte e a nona parte de 35 também não são exatas?
— É muito simples — atalhou o “homem que calculava”. — Encarregar-me-ei de fazer com justiça essa divisão, se permitirem que eu junte aos 35 camelos da herança este belo animal, que em boa hora aqui nos trouxe.
Neste ponto, procurei intervir na questão:
— Não posso consentir em semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viagem, se ficássemos sem o nosso camelo?
— Não te preocupes com o resultado, ó “bagdali”! — replicou-me, em voz baixa, Beremiz. — Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás, no fim, a que conclusão quero chegar.
Tal foi o tom de segurança com que ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros.
— Vou, meus amigos — disse ele, dirigindo-se aos três irmãos — fazer a divisão justa e exata dos camelos, que são agora, como vêem, em número de 36.


E voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou:
— Deves receber, meu amigo, a metade de 35, isto é, 17 e meio. Receberás a metade de 36, ou seja, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão.
Dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou:
— E tu, Hamed Namir, devias receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 12. Não poderás protestar, pois tu também saíste com visível lucro na transação.
E disse, por fim, ao mais moço:
— E tu, jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, devias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 4. O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado.
Numa voz pausada e clara, concluiu:
— Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir — partilha em que todos os três saíram lucrando — couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um total de 34 camelos. Dos 36 camelos sobraram, portanto, dois. Um pertence, como sabem, ao “bagdali” meu amigo e companheiro; outro, por direito, a mim, por ter resolvido a contento de todos o complicado problema da herança.
— Sois inteligente, ó estrangeiro! — confessou, com admiração e respeito, o mais velho dos três irmãos. — Aceitamos a vossa partilha, na certeza de que foi feita com justiça e eqüidade.
E o astucioso Beremiz — o “homem que calculava” — tomou logo posse de um dos mais belos camelos do grupo, e disse-me, entregando-me pela rédea o animal que me pertencia:
— Poderás agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro. Tenho outro, especialmente para mim.
E continuamos a nossa jornada para Bagdá.



(Malba Tahan, Seleções - Os melhores contos – Conquista, Rio, 1963)