segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Um gênio (quase) esquecido

Fotografia de Bentevi Neto feita em Canindé-CE



Amigo José Tinoco
Eu ainda faço glosa
Sou repentista da prosa
Que nunca ficou no toco
Sou glosador de papoco
Já topei com mais de cem!
Dos poetas que aqui vêm
Pra derribar meu projeto
Encontrei Bentevi Neto,
Daí pra cá mais ninguém.


(Glosa do poeta Roque dos Santos Machado, recolhida por Alberto Porfírio)

BENTEVI NETO, HUMORISTA E GLOSADOR


O pássaro que emprestou o nome ao talentoso poeta.

Quarto ou quinto violeiro da famosa dinastia dos Bentevis da Paraíba, Severino Mendonça da Silva*, o Bentevi Neto (ou Bem-te-vi, como preferem alguns), nasceu em Patos-PB, no dia 11 de março de 1922, mas fez fama como glosador no Sertão Central do Ceará e Maciço de Baturité. Faleceu no dia 05 de julho de 1959, em Água Verde, distrito de Pacatuba, vítima de um acidente de caminhão. O poeta havia conseguido uma carona num transporte carregado de frutas, que vinha de Baturité para Fortaleza. Na ponte da Água Verde, o carro virou devido a um cochilo do motorista. Dizem que de boas intenções o inferno está cheio... Bentevi ficou preso debaixo das ferragens, soterrado sob as frutas e o ajudante do carro, pensando em socorrê-lo, riscou um fósforo, porque ainda estava escuro. O resultado é que a gasolina havia se derramado e o carro incendiou imediatamente. O infortunado cantador morreu carbonizado aos 37 anos de idade, clamando por socorro.

O LEGADO DO POETA

Quando criança, ouvi muitas glosas atribuídas ao Bentevi. Meu pai toda vida gostou de cantoria e quando se juntava com o amigo Chico Cazuza (Cazuzinha), um fã do poeta, pedia sempre para que ele recitasse alguns versos do grande cantador. Esses versos corriam de boca em boca, no meio daquela gente simples e semi-analfabeta. Muitos se perderam, porém alguns foram preservados ao longo do tempo.
Contam que certa feita ele cantava em São José da Macaóca (distrito de Quixeramobim), na casa do mestre Mário Victor, quando fez um gesto muito comum nos grandes cantadores, ergueu a cabeça a fitar as telhas em busca de uma rima. Já havia feito os dois primeiros versos:

O Bentevi quando canta
O seu cantar é exato...

Ergue a cabeça para inspirar-se e eis que passa um gato correndo pela meia parede. Foi o suficiente para completar magistralmente a estrofe:

... Valha-me Nossa Senhora
Que alí vai passando um gato
Mas ele morre e não come
Um Bentevi de sapato!

Dizem os apologistas que guardam carinhosamente algumas pérolas da sua produção poética no cofre da memória, que de outra feita o poeta cantava num salão onde estavam dois cachorros, bem do seu lado. De repente aparece um gato e o poeta improvisa:

Estou muito satisfeito
Cantar nesta sala aqui
De um lado está Tubarão
Do outro lado o Joli
Os cães espantaram o gato
Pra não pegar Bentevi.

Um belo dia juntaram-se 12 cantadores em Baturité. João Siqueira do Amorim liderava o grupo e o Dr. Saraiva Leão pagava a despesa dos poetas, quando surgiu a melhor estrofe, feita pelo Bentevi:

Somos doze cantadores
Aqui no quadro da feira,
Imitando os doze apóstolos,
Com Jesus na cabeceira.
O Cristo é o doutor Saraiva
E Judas é João Siqueira.

De outra feita Bentevi encontrava-se numa barbearia na localidade de Pirangi, distrito de Ibaretama-CE, cujo proprietário tinha o apelido de Gavião. Nesse momento chegou um velho conhecido de ambos, apelidado Marreco, que entrou na barbearia fumando um cigarro e propôs ao Bentevi fazer uma glosa sobre o encontro. O poeta temperou a garganta e respondeu de chofre:

Vi um touro jejuar
Sexta-feira da Paixão
Macaco fazer sermão,
Vi pulga se confessar,
Vi cobra dar de mamar
Ao filho de um juriti
E agora, no Pirangi,
Vi um Marreco fumando
E um Gavião tirando
A barba dum Bentevi.

O poeta gostava de descrever a natureza e tinha paixão pela fauna, não esquecendo sequer o humilde e desprezado cururu:

Não é alto; é baixo e grosso;
É redondo, curto e chato,
Gosta muito de regato,
Mora na beira do poço,
Canta desde sapo moço;
Seu cantar é uma certeza,
Procurando a correnteza,
Banhando o seu corpo nu
Quero bem ao cururu
Profeta da Natureza.

O inspirado glosador viajava de trem de Itapiúna a Caio Prado quando presenciou uma cena bastante desumana. Um homem de CANGATI levava um saco cheio de gatinhos para soltar num local deserto. Bentevi, amante dos animais e da natureza, saiu-se com esta:

Há inverno em todo Estado
Só não chove em Cangati
Porque o povo dali
É todo amaldiçoado
A nuvem do Caio Prado
Passa por cima e some
Tudo por causa dum "home"
Que mandou botar no mato
Um saco cheio de gato
Pra morrer de sede e fome.

Cantando numa emissora de rádio com o poeta José Mota Pinheiro, Bentevi percebeu a chegada de dois colegas: Lourival Bandeira Lima e Lourival Batista. Zé Mota quis ufanar-se terminando uma estrofe cheia de bazófia:

Eu sou Zé Mota Pinheiro,
Um campeão do repente.

Pegando na deixa, Bentevi fulminou-o dessa maneira:

Bentevi Neto, somente,
Nome que o jornal adota;
Lourival Bandeira Lima
E Lourival Patriota.
Onde cantam esses três homens
Não se fala em José Mota.

Segundo nos informou o poeta José Maria de Fortaleza, o principal parceiro de Bentevi era o cantador Nogueira (ou Nogueirão, como era mais conhecido pelos colegas). Certa feita os dois foram cantar em Aracoiaba e andavam pela rua, quando o Nogueira resolveu entrar numa barbearia para cortar o cabelo. Bentevi seguiu adiante e entrou numa bodega, onde foram logo lhe perguntando: Bentevi, cadê Nogueira? O poeta, percebendo que a pergunta era metrificada em sete sílabas respondeu em cima da bucha:

Bentevi, cadê Nogueira?...
Lhe respondo em poesia
Ficou na barbearia
Derrubando a cabeleira;
Com a tesoura cortadeira
Cabelo cai de magote,
E a navalha no cangote
Tirando o resto do friso,
Deixando o pescoço liso
Que só pau de cabeçote!

Numa cantoria na localidade de Três Irmãos (Canindé) nome proveniente de um serrote formado por três gigantescos monólitos praticamente iguais, Bentevi admirou-se da indumentária de um garotinho, que ali se encontrava em trajes mal amanhados...

A calça deste garoto
Parece que está perdida
Foi esta a roupa mais feia
Que eu já vi na minha vida
Pra ser comprida está curta
Pra ser curta está comprida.

Outra glosa famosíssima atribuída a Bentevi, que me foi recitada pelo cantador Pedro Evangelista, questiona a Criação do Homem:

Diz a Sagrada Escritura
Que Adão foi feito de barro
Mas essa história eu não narro
Porque é mentira pura
Ainda tem gente que jura
Que isso tudo foi passado...
Deus é um Santo Sagrado,
Ele nunca foi “loiceiro”
Pra estar dentro dum barreiro
Fazendo cabra safado.


Cantadores se apresentavam nessas barracas, em Canindé-CE


Cantando com Lourival Bandeira Lima, nos festejos de São Francisco das Chagas, em Canindé-CE, o parceiro disse que ia tomar uma cana e tirar o gosto com caju. Os poetas ficavam geralmente em latadas de palha, construídas no leito do rio Canindé, onde se vendia bolo, café, refeições e bebidas alcoólicas, principalmente a cachaça. Bentevi, que também gostava de tomar um trago, glosou de imediato:

Tanto faz chamar caju
Como se chamar jucá;
É cê-a-ca, jota-u-ju
É jota-u-ju, cê-a-cá;
Trocando o pau pelo fruto
Caju pra cá, pau pra lá.

Ainda em Canindé, o poeta teria glosado essa estrofe, em linguagem matuta, pronunciando “Rie” no lugar de RIO e “mie”, em vez de MILHO, como é muito comum entre os sertanejos. Eis a sextilha:

O Bentevi quando canta
Dentro do leito do RIE
Parece trinta macacos
Em um roçado de MIE
Dezoito quebram na frente
Doze atrás fazendo ATIE.

Fazer atilho é o ato de amarrar a palha das espigas de milho umas nas outras para facilitar o seu transporte. Os macacos são mestres nessa arrumação.

HOMENAGENS PÓSTUMAS

Falando de seu conterrâneo Moysés Lopes Sesyom, no IV Volume do Livro das Velhas Figuras, o grande folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo disse que os seus versos magistrais “estão mais seguros na retentiva popular do que nas páginas de um folheto. Mas essa impressão garantiria a pureza da produção humilde, impossibilitando as deturpações vindouras, instaladas no texto como letra integral.” Foi com essa intenção que os colegas violeiros da SOVIBRIL (Sociedade dos Cantadores, Violeiros e Poetas Populares do Brasil), fundada em 27 de outubro de 1974, publicaram um folheto de 16 páginas intitulado “Vida e Morte de Severino Mendonça da Silva, vulgo Bentevi Neto” fazendo o necrológio do poeta e apresentando uma coletânea de suas glosas mais inspiradas, muitas das quais viriam a ser reunidas posteriormente na famosa Antologia Ilustrada dos Cantadores, de Francisco Linhares e Otacílio Batista. Nesta pequena crônica, conseguimos reunir também algumas estrofes dispersas recolhidas por seus admiradores dos sertões de Canindé e Quixeramobim. Gente anônima que conheci na infância, trabalhadores rurais que guardavam de memória as estrofes felizes do grande glosador paraibano.


Também o poeta popular baiano Minelvino Francisco Silva, “o trovador apóstolo” publicou um folheto de 8 páginas intitulado “Homenagem póstuma ao violeiro Bentevi Neto”, com bela xilogravura retratando o poeta defronte uma igreja. É justamente esse folheto de Minelvino que informa as datas de nascimento e morte de Severino Mendonça da Silva. Vejamos:

No dia 11 de março
Este poeta nasceu
Em Patos, na Paraíba,
O berço querido seu
No ano de 22 (1922)
Conforme Deus concedeu.

Manoel da Silva Mendonça
E dona Rita Crispim
Foram os pais de Severino
De inteligência sem fim
No assunto da poesia
Por ordem de Eloim.

O seu avô era um homem
Sincero e muito correto
Tinha o vulgo Bentevi
Cantador mesmo dileto,
Por isso é que Severino
Chamavam Bentevi Neto.

(...)

No ano 59 (1959)
Um desastre aconteceu
No dia 5 de julho
Bentevi Neto morreu
Na ponte de Água Verde
Esse desastre se deu.

Porque ele viajava
Fazendo a sua defesa
Cantando aqui, acolá,
Por aquela redondeza
Vinha de Baturité
Seguindo pra Fortaleza.

O poeta descreve dessa maneira os momentos trágicos da morte do grande cantador, após a virada do caminhão na ponte de Água Verde:

Ainda estava muito escuro
O ajudante saltou
Pra socorrer Bentevi
Um fósforo logo riscou;
Mas com a explosão do fósforo
Todo carro incendiou.

Ali não teve mais jeito
Todo carro incendiado
Bentevi Neto que estava
Debaixo dele, imprensado,
Foi pra terra da verdade
Além de morto, queimado.

No ano 76 (1976)
Seu Murilo Evangelista
Fez uma bela promessa
Com a alma do repentista
Que morreu ali queimado
Na ponte, fora da pista.

E sendo vitorioso
Por ordem do Salvador
Resolveu ir ao local
Desse desastre de horror
E mandou rezar uma missa
Pra alma do cantador.

A Murilo Evangelista
Jesus lhe deu um bom tino
Pra reunir os poetas
Homem, mulher e menino,
E construir uma capela
Ali, pra São Severino.

(Silva, Minelvino Francisco da. Homenagem póstuma ao violeiro Bentevi Neto)

O folheto publicado pela SOVIBRIL, que parece ser criação coletiva de Alberto Porfírio, Cezanildo Lima, Geraldo Alencar, dentre outros, também faz um relato pungente do martírio de Bentevi:

Foi muito bom companheiro
Cantava de improviso
Protetor dos animais
Falava com ar de riso;
Seja assim a sua alma
Para Deus, no Paraíso.

Quando o carro incendiou
Foi de cortar coração
Gritou pedindo socorro
Acenando com a mão
Vendo que não tinha jeito
Pediu a Deus salvação.

Perdoou o motorista
Daquele transporte “incréu”
Ficou seu corpo queimado
Debaixo do fogaréu;
Partiu pra cantar seus versos
Na Casa Santa do Céu.

Segundo o poeta Zé Maria de Fortaleza, ao que parece, a construção dessa igrejinha no local da tragédia jamais se concretizou, embora poetas como Cezanildo Lima tenham envidado todos os esforços para que o projeto fosse adiante.
O poeta potiguar Eliseu Ventania, o ‘Rei da Canção’, foi um de seus parceiros e se dizia influenciado pelo grande poeta paraibano. Em sua última entrevista concedida à imprensa, para o jornal O Mossoroense, em 27 de setembro de 1998, falou da influência que outros violeiros tiveram para a sua decisão pela cantoria. “O que me impulsionou foi o chamado de outros violeiros, como João Liberalino, Adonias Ferreira, entre outros. Aos 18 anos, eu fui para Fortaleza, no Ceará, e lá fiz parceria com alguns violeiros. Anos depois tive como parceiros João Liberalino, Adonias Ferreira, Raimundo Mourão, Bentivi Neto, Patativa, Chico Traíra e muitos outros", relatou à época.

Arievaldo Vianna

* Na Antologia Ilustrada dos Cantadores, de Otacílio Batista e Francisco Linhares, o nome do poeta é dado como Severino Mendes de Queiróz.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

Batista, Otacílio. Linhares, Francisco – Antologia Ilustrada dos Cantadores, 2ª Edição – Edições UFC, Fortaleza-CE, 1982.

Cascudo, Luís da Câmara – O livro das velhas figuras – Vol. IV – Natal-RN.

Porfírio, Alberto – Cantadores e Poetas Populares do Ceará – Editora Horizonte, Brasília, 1978.

Vianna, Arievaldo – O baú da gaiatice. 3ª Edição, Editora Assaré, Fortaleza, 2012.

Folhetos consultados:

Vida e morte de Severino Mendonça da Silva, vulgo Bentevi Neto – Edição SOVIBRIL, s.d. (Acervo da Biblioteca Amadeu Amaral, da FUNARTE).

Homenagem Póstuma ao violeiro Bentevi Neto – Minelvino Francisco da Silva, “o trovador apóstolo”, Itabuna-BA, 16 de agosto de 1977. (Acervo da Biblioteca Amadeu Amaral, da FUNARTE).





Folheto de Alberto Porfírio narra sua peleja com Bentevi Neto

sábado, 18 de fevereiro de 2017

O BOCAGE SERTANEJO



Moysés Lopes Sesyom
Comerciante, nascido em Caicó, mas feito poeta em Assu.
*28/07/1883 + 09/03/1932.


MOYSÉS SESYOM

O Bocage rio-grandense

ACTA DIURNA
Luiz da Câmara Cascudo
(Publicado no jornal 'A República'
Natal - RN, 11 de abril de 1942)
Extraído de “O livro das velhas figuras – Vol. 4”

Perdoem-me as nove Musas em particular e Mnemosine no geral, dar ao poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage as glórias únicas da poesia fescenina. Não há fama mais injusta e renome menos merecido. Bocage é um altíssimo poeta sem a produção sotádica do "quinto livro". Mas, na acepção tradicional dizer-se "versos de Bocage" é anunciar rimas que arrepiam os nervos pudicos.
Moysés Lopes Sesyom, Moysés Sesyom, falecido no Assú a 6 de Março de 1932, é um poeta sem as honras do prelo. Possui, superior a esse título, sua produção inteiramente impressa na memória coletiva de uma região.
Raro será o rapaz, ou cidadão sisudo nas horas confidenciais de reminiscências literárias ignorando uma ou alguma das "décimas" irresistíveis do poeta querido, de vida atribulada, de existência dura, de morte cruel.
Vezes, horas e horas, ouvi recitar versos de Sesyom, recordando sua boemia, vivendo o anedotário rico de episódios chistosos.
Mas, a parte característica na verve de Sesyom, a mais alta percentagem de versos, as respostas imprevistas e saborosas, exigem um ambiente mais restrito, uma atmosfera íntima que o horizonte amplíssimo dos jornais.
Moysés Lopes, Sesyom é Moysés  às avessas, nasceu no Caicó, em 1884. Em 1907 fixou-se no Assú. E viveu por ali, pequeno bodegueiro, empregado no comércio e por fim, soldado do Batalhão Policial.
Só nos últimos anos descobriu que era improvisador, e o aplauso unânime de um auditório compreensivo, sagrou-o.
Há quem passe a vida escrevendo versos e morra sem ser poeta. Sesyom sem saber, era poeta verdadeiro, espontâneo, inesgotável, imaginoso, original. Sua versalhada, satírica em proporção decisiva, não receia confronto com Laurindo Rabelo, o irrequieto Poeta-Lagartixa. Apenas Laurindo Rabelo era um médico, tendo livros e amigos ilustres. Sesyom era quase analfabeto, desprotegido e paupérrimo.
Nem por isso desmerecerá para o futuro. Suas "décimas" esfuziantes deviam ser reunidas em volume. Um volume fora dos mercados livrescos, mandado editar por um grupo de bibliofilos. Usa-se muito essas edições limitadas, hors commerce, defendendo do esquecimento um esforço humano digno de maior duração no tempo.
Sei muito bem que os versos de Sesyom estão mais seguros na retentiva popular do que nas páginas de um folheto. Mas essa impressão garantiria a pureza da produção humilde, impossibilitando as deturpações vindouras, instaladas no texto como letra integral.
Se o "Quinto Livro" de Bocage, e vinte volumes de alta pornografia sapientíssima estão editados luxuosamente, custando caro, escondidos no "inferno" das bibliotecas eruditas, ciosas desses tomos de tiragens numeradas, por  que não estender à Moysés Sesyom o direito lógico de figurar ao lado, e muito justamente, dos seus colegas imponentes que nada fizeram de melhor e de mais alegre?
A poética sensual e o hílare são atributos da Civilização. Os povos primitivos ou em estado de desenvolvimento inicial, não tem versos como os de Sesyom. Esses, além do mais, dariam testemunho de um engenho curioso e vibrante, diluído, apagado, improfícuo, no anulado ciclo fechado das vidas pequeninas e melancólicas.
Aqui está um mote que lhe deram, glosado imediatamente, taqualmente nos Outeiros aristocráticos do século XVIII:

Bebo, fumo, jogo e danço.
Sou perdido por mulher!

Vida longa não alcanço
Na orgia ou no prazer
Mas, enquanto eu não morrer
Bebo, fumo, jogo e danço.
Brinco, farreio não canso,
Me censure quem quiser
Enquanto eu vida tiver
Cumprindo minha sina venho,
E além dos vícios que tenho
Sou perdido por mulher!

* * *


Folheto de Hamurabi Batista, sobre o tema PEIDO


O PEIDO QUE A DOIDA DEU...


Encontrei num velho ‘pliego’ espanhol, do século XVII, um poema de natureza escatológica intitulado “Uma vieja se pedió” (Uma velha se peidou), prova evidente de que muitos dos temas explorados pelos poetas populares nordestinos no cordel, na cantoria e na glosa, tiveram suas matrizes na velha Península Ibérica e receberam , com certeza, influência dos mouros que a ocuparam por oito séculos. Vejamos:

  “Una vieja se pedió
  en las Islas Filipinas
  del estampido que dio
  se llevó once mil esquinas.
  Seis batallones hirió
  muchos de ellos hay sin cura
  todo el mundo se aturdió,
  encima una sepultura
  (Una vieja se pedió”…)

Arremedo de tradução, por Arievaldo Vianna:

Uma velha se peidou
Lá nas Ilhas Filipinas
Quando o estampido troou
Levou onze mil esquinas.

Seis batalhões se feriram
Muitos deles sem ter cura,
E todos se aturdiram
Em cima da sepultura.


Exemplo de um "pliego" de cordel espanhol.


Moysés Sesyom também navegou por esse tema. O livro de Nei Leandro de Castro, 'As pelejas de Ojuara', fala de um velho coronel potiguar que se gabava de ser invencível em campeonatos de PEIDOS. Ninguém o podia derrotar. Porém, uma velha doida, depois de comer uma panela de angu, quebrou-lhe a invencibilidade. O episódio foi retratado deste modo por Sesyom:


MOTE:

O peido que a doida deu
Quase não cabe no cu.

GLOSA

Eu conto o que sucedeu
Na sombra da Gameleira
Foi um tiro de ronqueira
O peido que a doida deu.
Toda terra estremeceu,
Abalou todo o Açu,
Ela mexendo um angu,
Tira a perna para um lado
Dá um peido tão danado

Quase não cabe no cu.


Gravuras que ilustram a "Literatura de Cordel" espanhola

O poeta potiguar Moysés Sesyon (Sesyon é Moysés ao contrário) tão festejado pelo poeta Glauco Mattoso, virou até personagem do filme O homem que desafiou o diabo, baseado no livro As pelejas de Ojuara, de Ney Leandro de Castro. Nesta obra cinematográfica, Moysés Sesióm foi interpretado pelo veterano ator Rui Rezende (o Professor Astromar, de Roque Santeiro) onde declama uma de suas glosas mais conhecidas:

Mote:
Bebo, fumo, jogo e danço
Sou perdido por mulher

Glosa:
Vida longa não alcanço
Na orgia ou no prazer,
Mas, enquanto eu não morrer
- Bebo, fumo, jogo e danço!
Brinco, farreio, não canso,
Me censure quem quiser...
Enquanto eu vida tiver
Cumprindo essa sina venho,
Além dos vícios que tenho,
Sou perdido por mulher!...

 (A.V.)



O ator Rui Rezende, que interpreta Moysés Sesyom no cinema, 
ao lado de Marcos Palmeira.


Mais um poema de SESYON

MOTE : UM INFELIZ COMO EU

I

A morte mata o sultão,
arcebispo  cardeal,
presidente, marechal,
ministro, conde e barão;
em tempos matou Roldão,
como na história deu;
o próprio Jesus morreu;
mata tudo ó morte ingrata,
só não sei porquê não mata
um infeliz como eu.

II

Ela mata todo mundo,
branco, preto, rico e pobre,
mata o potentado, o nobre,
mata o triste e o vagabundo;
matou Dom Pedro Segundo,
matou quem o sucedeu;
capitalista e plebeu,
mata tudo, não tem jeito,
mas não mata, por despeito,
um infeliz como eu.

III

Não reserva o cientista,
mata sem dó o profeta,
tirana, mata o poeta,
mata o maior estadista;
mata também o artista,
o cego, o mudo, o sandeu,
mata o crente e o ateu,
diplomata e titular,
mas poupa, não quer matar
um infeliz como eu.

IV

Ela mata no Senado,
como matou Rui Barbosa,
entra no Congresso airosa
aí mata um deputado;
matou Pinheiro Machado,
dele não se condoeu,
ela jamais atendeu,
mata gente, mata bicho,
mas não mata, por capricho,
um infeliz como eu.


FONTE: http://assunapontadalingua.blogspot.com.br/2014_03_09_archive.html