terça-feira, 25 de setembro de 2018

Do blog MUNDO FANTASMO


LAMENTOS SERTANEJOS

Do blog MUNDO FANTASMO, 
Por: BRÁULIO TAVARES

“Ó Deus, perdoe esse  pobre coitado, que de joelhos rezou um bocado, pedindo pra chuva cair sem parar”.

Essa música é um clássico de um tipo de canção nordestina que alguns chamam de protesto, mas eu acho que “protesto” é um guarda-chuva amplo demais, cabe desde certas litanias de Bob Dylan até o Faces do Subúrbio ou Mano Brown.

Poderíamos chamar esse gênero de queixume nordestino, com a desvantagem de que queixume parece a muitas pessoas uma palavra apequenadora, quando não é essa a intenção.

Lamento seria melhor; um lamento sertanejo, como o de Dominguinhos e Gilberto Gil: “Por ser de lá, do sertão, lá do cerrado, / lá do interior, do mato, / da caatinga, do roçado...”



Considerado como subgênero, podemos pendurar aí títulos como “Meu Cariri” e “Aquarela Nordestina” de Rosil Cavalcanti; “Triste Partida” de Patativa do Assaré, com Luís Gonzaga; “Acauã” de Gonzaga.

Mas a súplica do nordestino daquele canção inicial de Gordurinha não é a súplica de um mero desgraçado. Acaba sendo na verdade uma intimação. Um questionamento feito a Deus pelo nordestino, cara a cara, sem intermediários. O tête-à-tête é respeitoso, mas altivo. “Meu Deus, se eu não rezei direito o senhor me perdoe, eu acho que a culpa foi – desse pobre que nem sabe fazer oração...” 

Existe um sarcasmo impotente nessa auto-depreciação diante do monarca. Não é um apequenamento. É a polidez do herói de cordel, respeitoso, chapéu apoiado ao peito, questionando diplomaticamente o Dono do Mundo na presença de toda a sua corte de vizires.

Sim que o “ai ai meu Deus, tenha pena do Nordeste” da “Aquarela Nordestina” acaba se revelando um gemido mesmo, mas a variedade de tons e de filosofias nessas letras mostra que não se trata de se queixar da vida. Em sua maior parte, essas canções são painéis visuais, panorâmicas vagarosas. Numa paisagem visualmente perfeita como a da letra de Rosil Cavalcanti:

No Nordeste imenso, quando o sol calcina a terra,
não se vê uma folha verde na baixa ou na serra.
Juriti não suspira, inhambu seu canto encerra,
não se vê uma folha verde na baixa ou na serra.

Acauã bem do alto do pau-ferro canta forte
como que reclamando nossa falta de sorte.
Asa branca sedenta vai chegando na bebida;
não tem água a lagoa – já está ressequida.

Ou então um retrato de uma pequena odisséia social nos versos de Patativa do Assaré em "Triste Partida":

(...)
O carro já corre no topo da serra
olhando pra terra seu berço, seu lar,
aquele nortista partido de pena
de longe ele acena, adeus meu lugar...

No dia seguinte já tudo enfadado
e o carro embalado veloz a correr,
tão triste coitado falando saudoso
um seu filho choroso exclama a dizer:

– De pena e saudade papai sei que morro,
meu pobre cachorro quem dá de comer?
Já outro pergunta: – Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato, Mimi vai morrer...

Essas canções, são lamentos, sim, são queixas sem grandes esperanças, são o mergulho corajoso rumo ao fundo do poço para ver se depois dele existe uma saída.

Vi uma vez em algum curta-metragem sobre o sertão uma voz em off perguntar a um velho sem dentes, de roupa rasgada, quase centenário:

– O senhor acha que o sofrimento do povo daqui é muito?...

O velho olhou para um lado, cuspiu de banda e retorquiu:

– É mió dizer que sim, né? Se disser que é pouco, mandam mais.

Essa capacidade para a auto-ironia acompanha passo-a-passo a tendência ao lamento, à súplica, ao desespero melodramático que tanto encanta o sertanejo pobre quando transformado em literatura, como em certos romances de cordel:

Nasci num berço de dores
criei-me entre os pesares
a dor, a tristeza e pranto
são meus extremosos lares
meu fado foi o carrasco
que sepultou-me nos mares. (...)

Que sorte tenho, ó meu Deus
que tudo de mim se esconde
se como não sei o que
se durmo não sei aonde
se choro ninguém me afaga
se chamo ninguém responde.

Ó mar, se algum dia ainda
passar aqui povo meu
revele uma desdita
que assim jamais se deu
dizei que dentro de ti
Cecília Afra morreu.

(A Estória de Cecília Afra – Três Suspiros de uma Esposa, de Teodoro Ferraz da Câmara, 1904-1960)



Essa veia do lamento retórico exprime uma das contradições do temperamento do sertanejo pobre: quanto mais seco, mais atenção ele presta ao derramamento sentimental; quando mais rude, mais vulnerável a imagens hiperbólicas de extravasamento de emoções.

Como se essa linguagem poética de queixumes-em-altas-vozes fosse a única maneira possível de jogar para fora tanto sofrimento curtido em silêncio ao longo de décadas por pessoas que têm vergonha de chorar ou de se emocionar em público.

Daí que os grandes momentos da emoção sertaneja acabam sendo os momentos mais contidos, onde um apocalipse inteiro se condensa numa sextilha, num par de versos, numa trova, num pequeno espaço de texto onde se deposita o peso de uma vida inteira de derrotas e aprendizados.



Como os versos de Leandro Gomes de Barros, tantas vezes recitados por Ariano Suassuna:

https://www.youtube.com/watch?v=Beq961fusnk

Se eu conversasse com Deus
iria lhe perguntar:
por que é que sofremos tanto
quando viemos pra cá?
Que dívida é essa que o homem
tem que morrer pra pagar?

Perguntaria também
como é que ele é feito;
que não dorme, que não come,
e assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez
a gente do mesmo jeito?

Por que existem uns felizes
e outros que sofrem tanto,
nascidos do mesmo jeito,
criados no mesmo canto?
Quem foi temperar o choro
e acabou salgando o pranto?

Link: http://mundofantasmo.blogspot.com/2018/09/4384-lamentos-sertanejos-1192018.html


Leandro Gomes de Barros (Desenho de Arievaldo Vianna)

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

ADEUS AO POETA



Adeus a Antonio da Mulatinha. Agricultor, tocador de pandeiro, vendedor de cordel

Por: Ney Vital

Chorei! A morte esta danada "Caetana" sempre me faz chorar!
Chorei pela falta do último abraço, a distância não permitiu: resta a lembrança do cantador, embolador Antonio da Mulatinha.
Nascido no municipio de Esperança-Paraíba, Antonio Patrício aos 22 de outubro de 1927, irmão do também genial Dedé da Mulatinha (José Patrício) e outros nove irmãos.
O motivo do sentimento é que durante quase 10 anos frenquentava a feira de Campina Grande, Paraíba e lá ainda jovem eu encontrava o vendedor de cordel Antonio da Mulatinha. Com ele aprendi os mais bonitos pensamentos, palavras e ações a favor da cultura brasileira.
Antonio da Mulatinha aprendeu apenas as primeiras letras do ABC. No entanto, estas lhe foram suficientes para ganhar o mundo e a fama, e em especial, a cultura.
Começou a cantar coco em 1940 e em 45 já publicava seu primeiro cordel: “A Viagem Sagrada”, seguindo-se outros oitenta e tantos títulos.
Campina Grande foi o lugar escolhido para viver, o bairro de Santo Antonio. Gravou dezenas de disco vinil-Lps.



Pai de dez filhos. Realizou centenas de viagens pelo Brasil afora  com seu irmão Dedé. Em 2014, Toinho da Mulatinha com então 89 anos foi homenageado pelo Museu de Arte Popular (MAPP) da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), pelos seus mais de 60 anos de atuação na cultura, como cordelista e embolador de coco. No dia do evento, Toinho falou sobre sua vida e trabalho artístico.

Os seus versos, por muitos já fora elogiado. Eis aqui um pequeno exemplo da sua versatilidade:

“Em Sodoma tão falada/
Passei uma hora só/
Lá vi a mulher de Ló/
Numa pedra transformada/
Dei uma talagada/
Com caldo de mocotó/
E saí batendo o pó/
Adiante vi Simeão/
Tomando café com pão/
Na barraca de Jacó”.

São da autoria de Antonio da Mulatinha os seguintes títulos: Morte de Rosil Cavalcanti, Almanaque pernambucano brasileiro para o ano de 1957, Campina Grande, a viola e as belezas do nordeste, O casamento de Bernardo com Maria do Saguím ou o rapaz que casou-se e correu com medo da mulher, A Paixão de Cristo, As missões de Frei Damião em Bom Jardim e a tempestade em Limoeiro, As missões de Frei Damião em Soledade e os castigos de um amancebado, O povo chora com pena do frade Frei Damião, O desastre de ônibus que atropelou uma procissão e matou vinte e três pessoas em Currais Novos, A História do desastre da Lagoa do Parque Solon de Lucena em João Pessoa, entre outros.
Abraço meu amigo...deixaste este vale de sofrimentos!

Fonte: http://www.neyvital.com.br

sábado, 15 de setembro de 2018

SALVAGUARDA DO CORDEL



Literatura de Cordel pode se tornar Patrimônio Cultural do Brasil

Entre versos, rimas e cantoria, a Literatura de Cordel é uma expressão cultural popular que abrange não apenas as letras, mas também a música e a ilustração. É um gênero literário, veículo de comunicação, ofício e meio de sobrevivência para inúmeros cidadãos brasileiros. Poetas, declamadores, editores, ilustradores (desenhistas, artistas plásticos, xilogravadores) e folheteiros (como são conhecidos os vendedores de livros) podem entrar na torcida, pois agora a Literatura de Cordel pode ser reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro. Apesar de ter começado no Norte e no Nordeste do país, o cordel hoje é disseminado por todo o Brasil, principalmente por causa do processo de migração de populações. Hoje, circula com maior intensidade na Paraíba, Pernambuco, Ceará, Maranhão, Pará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo. Em todos estes estados é possível encontrar esta expressão cultural, que revela o imaginário coletivo, a memória social e o ponto de vista dos poetas acerca dos acontecimentos vividos ou imaginados.

Lendo cordel, xilogravura de Maércio Siqueira


A Literatura de Cordel no Brasil é o resultado de uma série de práticas culturais em que os cantos e os contos – e suas variantes – constituem as matrizes a partir das quais uma série de formas de expressão se forjou. Na formação da cultura brasileira, da qual a literatura de cordel faz parte, tanto indígenas quanto africanos e portugueses adicionaram práticas de transmissão oral de suas cosmologias, de seus contos, de suas canções. A questão da harmonia sonora é muito ressaltada pelos poetas. Além das razões estéticas, há uma explicação histórica para isso. No início do século XX, quando a literatura de cordel se consolidou como um sistema editorial próprio, os poetas desenvolveram um modo particular de comercializar seus livros nos mercados e feiras livres. Carregavam consigo os exemplares e montavam uma banca em que os folhetos eram exibidos (por esse motivo os poetas da literatura de cordel também são chamados de poetas de bancada). Para atrair curiosos e compradores, os poetas costumavam cantar em voz alta trechos dos poemas, contando dramas, tragédias, romances e sátiras. No momento mais importante da narrativa – quando o desfecho da história de aproximava – o canto era interrompido e o final da história só poderia ser conhecido por aqueles que comprassem o folheto. Assim, a métrica perfeita era a condição para que o poeta pudesse exercer sua performance com maestria diante do público.



Literatura de Cordel

Na região do Pajeú (sertão de Pernambuco), a declamação ainda hoje é praticada cotidianamente pela população. Atualmente, os declamadores gravam suas performances em discos e vídeos que são comercializados em festivais e feiras de literatura de cordel. Além da declamação, outro modo particular de jogo verbal se difundiu e se popularizou no Brasil: o desafio – ou peleja – se define como uma disputa oral, em geral entre duas pessoas, cujo objetivo é vencer o adversário por meio do virtuosismo poético diante do público. Além da viola – instrumento mais comum na cantoria –, a rabeca também era utilizada por alguns cantadores.

A literatura de cordel faz parte da vida social dos brasileiros. Ao longo do tempo, por meio das trocas e empréstimos culturais com a música, o cinema, o teatro, as novelas e as redes sociais, se atualizou e se transformou, sem perder a identidade, a originalidade e sua estética própria, particular.




Origens

A literatura de cordel é um gênero poético que resultou da conexão entre as tradições orais e escritas presentes na formação social brasileira e carrega vínculos com as culturas africana, indígena e europeia e árabe. Trata-se de um fenômeno cultural vinculado às narrativas orais (contos e histórias de origem africana, indígena e europeia), à poesia (cantada e declamada) e à adaptação para a poesia dos romances em prosa trazidos pelos colonizadores portugueses. Os poetas brasileiros no século XIX conectaram todas essas influências e difundiram um modo particular de fazer poesia que se transformou numa das formas de expressão mais importantes do Brasil.



O cordel se inseriu na cultura brasileira em fins do século XIX, forjado como a variação escrita da poesia musicada por duplas de cantadores de viola, de improviso, conhecida como repente. A expressão literatura de cordel não se refere num sentido estrito a um gênero literário específico, mas ao modo como os livros eram expostos ao público. No entanto, cada vez mais essa expressão foi sendo associada a um conjunto de edições de baixo custo, adaptações de textos provenientes das mais diversas fontes (obras até então manuscritas, narrativas orais, peças de teatro cômico) destinadas a um número cada vez maior de leitores pouco familiarizados com a escrita e, por esse motivo, diversos procedimentos editoriais foram introduzidos a fim de tornar a leitura mais fácil: diminuição do tamanho da obra ao enxugar o livro por meio do emprego de textos curtos, uso de papel de baixa qualidade e redução dos preços.



Os poetas costumam definir a literatura de cordel como um gênero literário que obrigatoriamente possui três elementos: métrica, rima e oração. Esses três elementos da poética do cordel constituem os fundamentos que precisam ser apropriados por quem deseja produzir um cordel. Ao compor um cordel com métrica, rima e oração, o poeta aciona os resultados de um longo aprendizado, de uma formação que não se obtém na escola, mas a partir do convívio com outros poetas, ou seja, a partir uma tradição coletiva que se transmitiu ao longo de gerações.

FONTE: http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/4819