sexta-feira, 29 de novembro de 2013

RESISTENTE POR NATUREZA

 
 
Vivemos uma estiagem prolongada aqui nas imediações da Linha do Equador. Não é uma das piores secas da história porque atualmente os governantes assistem a população com seus programas sociais. Há quem diga que isso é populismo e demagogia. O certo é que se não houvessem tais programas, a situação estaria calamitosa para os lados de cá.
Recentemente, o poeta Elias de França, de Crateús, publicou essa fotografia no facebook. A belíssima imagem foi captada por sua esposa, Adriana Calaça. É o juazeiro, árvore símbolo da resistência do povo cearense. Dedico aos dois, sertanejos como eu, o poema a seguir:
 
MEU JUAZEIRO


São as raízes profundas
No solo arenoso e quente
Como tentáculos vitais
De um alerta permanente
Que fazem este juazeiro
Ser firme, forte, altaneiro,
Nordestino e resistente!

Eu também sou persistente
E vivo dessas matrizes
Buscando dias melhores
Ou pelo menos, felizes,
Sem esquecer, nesse estado,
que vivo sempre plugado
Na força dessas raízes.
 

Eu admiro os matizes
Desse verde benfazejo
Nos versos do meu repente
Eternamente pelejo
Até na hora da morte
Verdejar a nossa sorte
É tudo que mais almejo. 

Em nosso planeta eu vejo
A árvore dando o seu fruto
Para o camponês que planta
Para o rico absoluto
Que nada planta, e suplanta
Os sonhos que a gente planta
Por isso mesmo é que eu luto! 

Da vida eu pouco desfruto
Como o pão do meu trabalho
Com o suor dos meus versos
A minha rima eu espalho
Brado contra a tirania
Enfrentando a burguesia
Sou coringa do baralho.
 
Arievaldo Viana

terça-feira, 26 de novembro de 2013

CORDELTECA - MALA DE ROMANCES





 BIBLIOTECA ITINERANTE 
DE LITERATURA DE CORDEL


O CORDEL está mais vivo do que nunca. O "professor folheto continua sendo fundamental na EDUCAÇÃO. Conheça o Projeto MALA DE ROMANCES, idealizado por Arievaldo Viana. É um desdobramento do seu projeto pioneiro ACORDA CORDEL NA SALA DE AULA que há 13 anos vem trabalhando pelo reconhecimento da Literatura de Folhetos e Romances populares como uma poderosa ferramenta de auxílio à Educação. Consiste na criteriora seleção e produção de uma maleta contendo 100 folhetos de cordel, de vários autores, já falecidos ou em atividade. Os poetas são naturais dos estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Bahia. As 100 obras selecionadas levam em consideração os seguintes critérios:
a)     Qualidade técnica da obra (métrica, rima, oração)
b)     Qualidade literária
c)     Aceitação popular (há clássicos que já tiveram milhares de edições, como é o caso d’ O romance do pavão Misterioso, Proezas de João Grilo, Chegada de Lampião no Inferno, História do Soldado Jogador etc.)
d)     Texto atrativo, com conteúdo adequado para o ambiente escolar. Além dos contos tradicionais, há folhetos como A gramática em Cordel, A didática do Cordel, Estatuto da Criança e do Adolescente e Estatuto do Idoso em cordel.
E, sobretudo, a valorização da cultura popular brasileira e nordestina.
PREÇO DA CORDELTECA MALA DE ROMANCES - R$ 400,00


PRODUTO: Maleta artesanal e personalizada, contendo 100 romances de cordel + duas caixinhas temáticas. Grátis: 1 exemplar dos livros ACORDA CORDEL NA SALA DE AULA e LEANDRO GOMES DE BARROS - VIDA E OBRA.

Eis uma ferramenta paradidática espetacular para a sua escola. E um presente de NATAL para ninguém botar defeito. Restam somente 12 unidades.

Informações: acordacordel@hotmail.com

sábado, 23 de novembro de 2013

O SOLDADO JOGADOR

 
 
O poeta Leandro Gomes de Barros, considerado o pioneiro na publicação de folhetos rimados aqui no Brasil, aproveitou-se de muitos temas correntes, alguns deles seculares, geralmente compostos em quadras, que circulavam de forma manuscrita pelo Nordeste, para deleite dos folcloristas da época, que raramente se preocupavam em apurar sua origem para saber a autoria. Um caso evidente dessa afirmativa é o folheto “O soldado Jogador” que já existia em quadras com o título de “Obra de Ricarte”.
No livro “Cancioneiro do Norte”, do folclorista paraibano Rodrigues de Carvalho (1867 – 1935) aparece uma versão em quadras da história do Soldado Jogador intitulada “Obra de Ricarte” (do arquivo de João Carneiro Monteiro) que, seguramente foi escrita quando Dom Pedro I ainda reinava no Brasil e seu irmão D. Miguel reinava em Portugal, após usurpar o trono de sua sobrinha Maria da Glória. Esse livro é possivelmente a primeira obra sobre folclore brasileiro impresso fora do Rio de Janeiro (foi ao prelo em 1903, na Typografia Minerva, em Fortaleza-CE). Referido poema é composto de 65 quadras e apresenta evidência dessa afirmativa na estrofe de número 55:
 
“Se pego num Rei de Paus
Me aparecem dois reis,
D. Pedro, rei do Brasil
D. Miguel, rei Português.”
 
A versão do Soldado Jogador, escrita por Leandro data das primeiras década do século XX. O exemplar mais antigo que se encontra preservado apresenta o seguinte endereço: Rua do Motocolombó, 28, Bairro de Afogados, Recife-PE. Até 1906 Leandro residia em Jaboatão. A partir deste ano fixa moradia no Recife, inicialmente no Beco do Sousa, mudando-se posteriormente para a rua que aparece na capa desta publicação.
 
O folheto de 16 páginas, foi impresso na Tipografia Mendes, Rua das Laranjeiras e dele existe cópia preservada no acervo da Casa de Rui Barbosa. Isto significa dizer que Leandro transpôs para as sextilhas e atualizou uma obra que já deveria ter mais de setenta anos de existência. É lógico que a versão de Leandro é muito mais rica e interessante. Ele só aproveitou o tema e deu o seu toque pessoal. O mesmo aconteceu com a “Cantiga do Vilela” que também foi recriada a partir de quadras por Chagas Batista e, possivelmente, também por Leandro. É que a versão que chegou aos nossos dias continua sendo atribuída a João Martins de Athayde, embora existam controvérsias. 
É possível que a versão em quadras nunca tenha sido publicada em folheto, dela circulando apenas cópias manuscritas como esta que pertencia ao acervo de João Carneiro Monteiro e foi gentilmente cedida a Rodrigues de Carvalho, para enfeixá-la no seu “Cancioneiro do Norte”. É uma pena que o jovem folclorista (estava com 36 anos no ano de lançamento de sua obra) não tenha feito qualquer comentário a essa obra-prima da pré-história da Literatura de Cordel no Brasil. Vejamos como começa a versão em quadras:
 
“Havia um soldado em França
Chamado ele Ricarte,
Que vivia no baralho,
Nele achava a melhor arte.
Chamava o sargento à igreja
Para a missa vir ouvir;
Ele pegava no baralho
E se punha a divertir.”
 
Edição recente de O Soldado Jogador
 
 
Versão de Leandro, em sextilhas, extraída do folheto acima mencionado, impresso na Typografia Mendes:
 
“Era um soldado francês
Que se chamava Ricarte
Jogador de profissão
E nunca foi numa parte
Que não trouxesse no bolso
O resultado da arte.
 
Os franceses nesse tempo
Tinham por obrigação,
O militar, o civil,
Seguir a religião
O papa deitava (sic) a lei
Botava em circulação.”
 
Nesta mesma obra de Rodrigues Carvalho, encontramos outra variante do poema, com apenas 19 quadras, recolhida no Ceará, intitulada “O Baralho”. Como se vê, o reaproveitamento de temas, ainda hoje freqüente na poesia popular é um costume que vem desde os primórdios da chamada Literatura de Cordel.
 
Arievaldo Viana
 
 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Quando os bichos falavam...


 
A FÁBULA EM TOM DE SÁTIRA
NA LITERATURA DE CORDEL

 

Segundo Ivonne Bradesco-Goudemand, em “O Ciclo dos animais na literatura popular do Nordeste” (Literatura Popular em Verso – Estudos/Nova Série; publicado pela Fundação Casa de Rui Barbosa, em 1982, com tradução de Therezinha Pinto), O Casamento e divórcio da Lagartixa, de Leandro Gomes de Barros, “é uma estória maliciosa que se passa no mundo dos batráquios (sic). Notemos, para começar, que as ligações amorosas e os casamentos obedecem aos sexos atribuídos a seu gênero gramatical na língua portuguesa. Trata-se aqui de dois tipos de sáurios, o calango, lagarto verde, e a lagartixa, pequeno lagarto cinzento ou lagarto dos muros (...).” 

E prossegue sua análise afirmando que “o conto de Leandro é uma sátira meio cômica, meio mordaz dos namoricos, do casal briguento e desunido; da mulher leviana e infiel, preguiçosa e cínica; do marido enganado e fraco, dois tipos particularmente insuportáveis no meio nordestino, onde dá-se o maior valor à fidelidade da mulher e se considera o marido complacente (“homem mole, frouxo”) com um misto de desprezo e irritação. Esse apólogo é uma caricatura levado ao extremo (...). Aqui, vê-se a mulher que ridiculariza a honradez remediada de seus sogros, que gaba, ao contrário, a leviandade cínica de sua mãe; e é somente por meio de tal caricatura que se pode atingir com essa desenvoltura o respeito absoluto que merece a mãe, feita santa pela maternidade. Eis que ela zomba também do noivado, pois que seu pai mal tem tempo de perceber que o “serviço” já havia sido feito: “Quando foi abrir os olhos / foi tarde, já tinha neto”; zomba da instituição sagrada do casamento, cujo único valor, a seus olhos, é assegurar-lhe um bem-estar fácil... e a impunidade social:

 

Honestidade não veste

Honra não enche barriga

...... ........ ....... ...... .....

A vida é uma pilhéria

Antes viúva contente

Do que conservar-se séria.

 

É a Viúva-Alegre dos répteis. Segundo ela, homens se encontram às centenas.

Tudo isso só poderia terminar mal: o calango provoca um duelo com o amante de sua mulher, o camaleão (papa-vento). A mulher esperar tranqüilamente que um dos dois morra, para que ela entre no dinheiro. Enquanto lutam, chega o gato que come o marido e uma ave pernalta, a “seriema”, que engole a esposa. O camaleão foge por um cipó, feliz de escapar, não somente ao perigo, mas principalmente a essa mulher: “Mil diabos a carreguem/ Para bem longe de mim”.

Tal é a moral expedita da estória, na qual, de qualquer maneira, os maus são punidos.”

 

CASAMENTO E DIVÓRCIO DA LAGARTIXA

Autor: Leandro Gomes de Barros
 

Não há quem viva no mundo
Que não deseje gozar
Desde o velho à criancinha
Quer a vida desfrutar
E tudo aspira o amor
Porque viver diz  amar!
 

Disse a Lagartixa um dia:
"Eu só ficarei solteira
Se não achar nesta terra
Um diabo que me queira,
Procurarei desde as casas
Até o largo da feira."
 

“Mamãe com quarenta anos
Estava ficando "titia”
Mas tomou um cachaça
Da mais forte que havia,
Foi à feira, achou papai,
Voltou rica neste dia.”
 

“É o que eu faço também...
Tomo um dia uma cachaça
Vou para a porta da rua
Ali nem mosquito passa
E só volto com um marido
Ou emprestado ou de graça."
 

"Mamãe dizia uma coisa
Que eu achava muito exato:
- Quando faltar o cachorro
Se pode caçar com gato
E não tem um desses dois
Então bota a mãe no mato."
 

Uma tia disse a ela:
- Minha filha, não se veixe!
Respondeu a Lagartixa:
O que vier na rede é peixe,
Eu vou procurar marido
Se achar muito trago um feixe.
 

A Lagartixa então saiu
Vendendo azeite às canadas,
Encontrou com o Calango,
Uma alma dispersada
Que andava com a moléstia
Procurando namorada. 

(...)
 

A genialidade do mestre de Pombal-PB criou uma sátira que só encontra paralelo em “A festa dos Cachorros”, do alagoano José Pacheco. Apresento a seguir, um cordel que escrevi em parceria com o poeta VIDAL SANTOS em 2004, intitulado “O alucinante namoro do Menestrel e a Lagartixa”:

 


VICENTE E FELIZBELA
Ou o alucinante namoro do Menestrel e a Lagartixa
Autores: Arievaldo Viana e Vidal Santos

 

O amor não tem idade
Nem repara condição
Quando se alberga no peito
Endoida qualquer cristão
E quando aflora o amor
É possível um beija-flor
Se enamorar de um dragão.
 

Vicente Lopes Trajano
Rapaz velho e solitário
Poeta de profissão
Um boêmio perdulário
Um dia se apaixonou
E seu peito se tornou
Um sonoro campanário.
 

Nosso ilustre menestrel
Era muito vaidoso
Andava sempre alinhado
Embora já meio idoso
Com o cabelo pintado
E um violão de lado
Pachola e todo garboso.
 

Um dia, num recital
Do amor veio a procela
No momento em que Trajano
Se encontrou com Felizbela
Uma jovem recatada
Filha de classe abastada
Educada, jovem e bela.
 

Ele era muito tímido
Felizbela recatada
Com cerimônia um do outro
Não deram andamento a nada
Tanto que a noite passou
E Vicente não conversou
Com a pretensa namorada.
 

Por causa disso Vicente
Pediu um litro de cana
Tomou um grande pifão
E quando ficou bacana
Saiu a cambalear
Em procura do seu lar
Pra curar a carraspana.
 

Era alta madrugada
A lua estava fagueira
E no peito de Vicente
Crepitava uma fogueira
Lembrando da doce amada
Tão meiga e encabulada
Tão pura, tão verdadeira.
 

Ao passar por uma praça
Avista uma lagartixa
Como ia embriagado
Se enamorou dessa bicha
Pensando ser Felizbela
Dirigiu-se logo à ela
Com sua rima prolixa.
 

A lagartixa era grande
Vicente viu dela o vulto
E mesmo assim o seu rabo
No capim estava oculto
A bichinha admirada
Fitava a cena calada
Vicente achou um insulto.
 

Mirou pra ela ligeiro
Todo belo, engalanado,
Bateu uma chama no peito
Viu que estava apaixonado
Sendo da pinga um freguês
Perdeu toda timidez
Sentou-se logo ao seu lado.
 

A lua no céu brilhava
Com seu raio reluzente
A lagartixa postada
Na beirada de um batente
Com a cauda pendurada
Olhou sem entender nada
E ele todo contente...
 

Disse assim, naquela hora:
- Minha querida donzela
Confesso que nunca vi
Criatura assim tão bela!
Flechado pelo cupido
Nosso poeta enxerido
Aplicou um beijo nela.
 

- Me responda, Felizbela,
Queres namorar comigo?
Ou preferes que eu seja
De ti apenas  amigo?
Eu nasci pra te querer
Responda se queres ser
A deusa do meu abrigo?
 

Nesse instante a lagartixa
Num gesto puro, inocente
Balançou a cabecinha
(Muito afirmativamente)
Felicidade completa:
Com isso nosso poeta
Quase morre de contente.
 

- Tu queres seguir comigo
Nessa noite de luar,
E ser de hoje em diante
A rainha do meu lar?
A lagartixa escutou
E a cabeça abaixou
Outra vez a confirmar.
  

Era um namoro “rombudo”
Como diria o Leandro
Vicente se adiantava
Como faz um bom malandro
Fazendo declarações
De derreter corações
E vencer qualquer meandro.
 

Pegou na mãozinha dela
Tão pequena e delicada
E disse: - Que mão cascuda!
Tão áspera, tão eriçada!
Deves ser trabalhadeira
Oh! Meu amor, que besteira
Isso não quer dizer nada!
 

- De hoje em diante você
Não irá mais trabalhar
Pois este humilde poeta
É quem vai te sustentar
Com um creme amaciante
Resolverei num instante
Podes em mim confiar! 

 
(...)

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

RACISMO NA LITERATURA DE CORDEL



REFLEXOS DO PRECONCEITO RACIAL
NA LITERATURA DE CORDEL
O exemplo clássico de “A CHEGADA DE LAMPIÃO NO INFERNO”

Por: Sílvio Roberto Santos
(exclusivo para o blog MALA DE ROMANCES)

À leitura de A Chegada de Lampião no Inferno de José Pacheco, clássico do cordel de gracejo e parte de todo um ciclo acerca do périplo além-túmulo do cangaceiro por antonomásia, à primeira vista, poderia alguém se indagar de onde o autor retirou sua representação do reino de Lúcifer. Por que os demônios são identificados com a raça negra? Há obras especializadas que tratam do tema racismo na literatura de cordel, inclusive com levantamento estatísticos, as teses proliferam, pugnando pelo racismo, ou não.
Tanto, que anos atrás ao falar da pretensão de desenvolver uma pesquisa a esse respeito, advertiu-me o jornalista Wanderley Pereira: Ah, já existe! Pacheco, de certa maneira, comunga sua representação com o maior poeta que já  caminhou sobre este vale de sombras: Dante.  O Inferno dantesco está povoado de demônios que blasfemam, monstros que trombeteiam, e sempre negros, embora não sejam africanos, uma verdadeira “tropa da Abissínia”. Câmara Cascudo em sua obra seminal Dante Alighiere e a Tradição Popular no Brasil é quem melhor trata a questão da influência do poeta florentino na cultura popular, com a autoridade costumeira.  Pacheco transpôs as características da sociedade de sua época para seu famoso folheto. Há livros de pontos, padaria, falta de inverno, molecas moças que quase queimam o “totó”  e outros sustentáculos viciosos do velho sistema patriarcal nordestino. Mas enquanto a Commedia de Dante não objetiva fazer rir, o inferno criado por Pacheco, sim. Não conheço, no universo do cordel, uma sátira mais inspiradora ao riso que esta.
Já Glauber Rocha em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de 1969, não hesitou em incluir na última parte do filme, que mescla cordel com ópera, a íntegra do poema, ultrapassando a índole satírica dos versos. Penso que seria anacronismo, hoje, no dia da Consciência Negra, rotular a grande obra de José Pacheco de racista. Há todo um substrato sociológico, que precisa ser levado em consideração para um tratamento adequado desse dilema. Talvez, haja uma certa ginga mental do autor em repassar para a consciência do leitor, criticamente, uma verdade desagradável, pois injusta, qual seja a permanência, após a Abolição, de impeditivos tradicionais do progresso material do outrora elemento servil. Como bem diz Arievaldo Viana, desvelando o maniqueísmo implícito: "José Pacheco, visivelmente mestiço (quase negro, na verdade cafuso) apenas traduzia em versos o pensamento vigente no Nordeste de seu tempo. O inferno era povoado por pretos.”


A chegada de Lampião no inferno
José Pacheco da Rocha
(TRECHOS)

Um cabra de Lampião
Por nome Pilão Deitado
Que morreu numa trincheira
Em certo tempo passado
Agora pelo sertão
Anda correndo visão
Fazendo mal-assombrado.

E quem foi quem trouxe a notícia
Que viu Lampião chegar
O inferno neste dia
Faltou pouco pra virar
Incendiou-se o mercado
Morreu tanto cão queimado
Que faz pena até contar.

Morreu a mãe de Canguinha
O pai de Forrobodó
Três netos de Parafuso
Um cão chamado Cotó
Escapuliu Boca Insossa
E uma moleca nova
Quase queimava o totó.

Morreram dez negros velhos
Que não trabalhavam mais
E um cão chamado Traz-cá
Vira-Volta e Capataz
Tromba Suja e Bigodeira
Um por nome de Goteira
Cunhado de satanás.

Vamos tratar da chegada
Quando Lampião bateu
Um moleque ainda moço
No portão apareceu:
— Quem é você, cavalheiro?
— Moleque, eu sou cangaceiro
Lampião lhe respondeu.

— Moleque, não! Sou vigia
E não sou seu pariceiro
E você aqui não entra
Sem dizer quem é primeiro
— Moleque, abra o portão
Saiba que sou Lampião
Assombro do mundo inteiro.

Então esse tal vigia
Que trabalha no portão
Dá pisa que voa cinza
Não procura distinção
O negro escreveu não leu
A macaíba comeu
Lá não se usa perdão.

O vigia disse assim:
— Fique fora que eu entro
Vou conversar com o chefe
No gabinete do centro
Por certo ele não lhe quer
Mas conforme o que disser
Eu levo o senhor pra dentro.

Lampião: — Vá logo
Quem conversa perde hora
Vá depressa e volte já
Eu quero pouca demora
Se não me derem ingresso
Eu viro tudo “asavesso”
Toco fogo e vou embora.

O vigia foi e disse
A satanás no salão:
— Saiba, vossa senhoria
Aí chegou Lampião
Dizendo que quer entrar
E eu vim lhe perguntar
Se dou-lhe o ingresso ou não.

— Não senhor, satanás disse
Vá dizer que vá embora
Só me chega gente ruim
Eu ando muito caipora
Estou até com vontade
De botar mais da metade
Dos que têm aqui pra fora.

Lampião é um bandido
Ladrão da honestidade
Só vem desmoralizar
A minha propriedade
E eu não vou procurar
Sarna para me coçar
Sem haver necessidade.

Disse o vigia: — Patrão
A coisa vai arruinar
Eu sei que ele se dana
Quando não puder entrar
Satanás disse: — Isso é nada
Convide aí a negrada
E leve os que precisar.

Leve três dúzias de negros
Entre homem e mulher
Vá na loja de ferragem
Tire as armas que quiser
É bom escrever também
Pra virem os negros que tem
Mais compadre Lucífer.


E reuniu-se a negrada
Primeiro chegou Fuxico
Com um bacamarte velho
Gritando por Cão de Bico
Que trouxesse o pau da prensa
E fosse chamar Trangença
Na casa de Maçarico.

E depois chegou Cambota
Endireitando o boné
Formigueiro e Trupizupe
E o crioulo Quelé
Chegou Benzeiro e Pacaia
Rabisca e Cordão de Saia
E foram chamar Bazé.

Veio uma diaba moça
Com a calçola de meia
Puxou a vara da cerca
Dizendo: — A coisa está feia
Hoje o negócio se dana
E disse: — Eita baiana
Agora a ripa vadeia.

E lá vai a tropa armada
Em direção do terreiro
Pistola, faca e facão
Clavinote e granadeiro
E um negro também vinha
Com a trempe da cozinha
E o pau de bater tempero.

Quando Lampião deu fé
Da tropa negra encostada
Disse: — Só na Abissínia
Oh! Tropa preta danada
O chefe do batalhão
Gritou: — As armas na mão
Toca-lhe fogo, negrada!


(...)




domingo, 17 de novembro de 2013

FOLHETINS VIRTUAIS


Casa velha da fazenda Castro, construída há mais de 150 anos
 
 

 
 
Antigamente era costume dos grandes escritores publicarem as suas obras em folhetins que eram acompanhados avidamente pelo público leitor. Foi assim com diversas obras de José de Alencar, Machado de Assis, Victor Hugo, Fiódor Dostoyevski, só para citar alguns dos mais famosos mestres da pena. Com o advento da internet e a proliferação dos blogs e redes sociais, o escritor moderno testa seus escritos através de postagens na rede mundial de computadores. Eu tenho certas restrições a esse poderoso meio de comunicação, sobretudo no que diz respeito à preservação dos direitos autorais. Diversos textos de minha autoria e também charges, xilogravuras e ilustrações tão logo são disponibilizadas na internet, rapidamente se propagam por outros sites e blogs, muitas vezes (a maioria) sem qualquer consulta prévia ao autor e, portanto sem minha autorização. Isso quando não cometem o abuso de suprimir o nome do autor, na intenção de apropriar-se da obra alheia. A árdua pesquisa que realizei para montar a biografia do poeta Leandro Gomes de Barros já foi plagiada dezenas de vezes, sem que a fonte fosse citada. Resta-me o consolo de haver publicado o texto (um resumo substancial) na revista Cultura Crítica, da Apropuc. Uma vez registrado ali, na velha celulose, é prego batido e ponta virada! Por isso que é que defendo a existência do livro e demais impressos no papel, por mais que decantem as vantagens virtuais do e-book e seus congêneres.

Mesmo correndo os riscos acima descritos, resolvi publicar neste novo blog – MALA DE ROMANCES – os apontamentos que tracei para o primeiro capítulo do livro Sertão em desencanto (título provisório), que traz como subtítulo: Fragmentos das memórias de um poeta sertanejo. Repito: são apontamentos. O texto final será cuidadosamente burilado até atingir algo próximo do que realmente desejo. Deixemos pois de rodeios e vamos ao que de fato interessa:

 

FRAGMENTOS DAS MEMÓRIAS
DE UM POETA SERTANEJO

 

“Não direi que este livro seja uma autobiografia. É mais um fac-símile. Uma cópia em carbono do que sou e do que sinto. Gostaria mais que fosse um poema. Uma epopéia sobre o sertão. Ele bem que o merece.”

(Pe. Antônio Vieira  Sertão Brabo, 1968)

 

Poeta sei que sou, porque a genética não faz curvas (a geometria, sim), conforme explicou-me pacientemente o saudoso professor Laurismundo Marreiro. A coisa vem de longe. Remontando às raízes avoengas, descobri que meu bisavô Francisco de Assis — o Fitico do Castro —, fazia testamentos de Judas e segundo alguns teria escrito também A Onça da mão torta e O Boi Vermelhinho, dois cordéis que tiveram certa repercussão no limiar do século XX, mas que circularam somente de forma manuscrita em cadernos de família.

Nunca tive essa vaidade tola de andar procurando traços de nobreza ou fumaças de fidalguia nos meus antepassados, mas já que estamos bisbilhotando a gênesis de minha família, baseio-me nas muitas conversas que tive com minha avó Alzira, com meu tio José Viana e ultimamente com meu pai, para fazer um breve apontamento através dessas crônicas familiares.

Meu antepassado Miguel de Souza Mello, pai do Fitico, estabeleceu-se na fazenda Castro, então município de Quixeramobim, por volta de 1854, oriundo de Sobral. A partir de então passou a ser conhecido como Miguel do Castro. Consta que teria adquirido aquela gleba por compra à viúva Vitorina de Souza Mello, sua irmã. Eles eram aparentados com o Padre Mororó (Gonçalo Inácio de Loyola Albuquerque e Mello), nascido em Groaíras, a 24 de julho de 1774 e morto em Fortaleza, aos 30 de abril de 1825, sacerdote, jornalista e revolucionário na luta pela independência do Brasil.

Minha avó Alzira narrava, baseada na tradição oral familiar, episódios da vida desse herói da Confederação do Equador, inclusive do dia em que foi fuzilado na Praça dos Mártires, atual Passeio Público. Segundo ela, um grupo de crianças foi assistir a execução dos condenados e trepou-se nas galhas de um frondoso cajueiro, para ter uma visão privilegiada. O resultado é que o dito galho se partiu, devido o excesso de peso, provocando a queda dos meninos e uma gostosa risada do sacerdote que estava prestes a ser espingardeado a mando das autoridades da Coroa Portuguesa. Ainda sobre a execução, consta que o Padre Mororó pôs a mão sobre o peito e disse que ela seria o alvo de seus carrascos. A primeira bala partiu o seu dedo anelar e atingiu o seu coração.

Vamos aos fatos. Em 1824 a Câmara Municipal da Vila de Santo Antônio do Campo Maior (atual Quixeramobim), insuflada pelo revolucionário Gonçalo Mororó,  teve a ousadia de depor o imperador  D. Pedro I e declarar o território de Quixeramobim desmembrado do Brasil.

Sobre a história de Quixeramobim existe um excelente livro escrito pelo professor Juarez Leitão, que narra com minúcias os episódios da revolução de 1824, com foco especial na atuação do Padre Mororó e nas ações da Câmara de Quixeramobim. Juarez, amigo de longa data, concedeu-me a honra de prefaciar a terceira edição do meu livro Baú da Gaiatice, relançado em 2012 pela Editora Assaré. Acerca desse episódio histórico pouco divulgado nacionalmente, mas motivo de muito orgulho para o povo Nordestino, recomendo a leitura da obra do historiador Juarez Leitão.
 

LIÇÕES INFORMAIS DE HISTÓRIA
 

Quando criança eu costumava acompanhar minha avó Alzira nas suas visitas ao Quixeramobim. Ela sempre me mostrava lugares históricos e relembrava fatos que ouvira da boca de seus antepassados. Sabia até o nome dos sinos da igreja matriz de Santo Antônio, erguida pelo português Antônio Dias Ferreira. Mostrou-me a casa de Antônio Conselheiro e a antiga sede da Câmara. Falou-me também da passagem dos revoltosos da Sedição de Juazeiro por Quixeramobim, em 1914, depredando lojas e saqueando o comércio. Uma de suas tias, a velha Maria dos Reis (tia ‘dos Reis’) falava de um compadre seu que tivera grande prejuízo pois os jagunços haviam atirado peças de fazenda no meio da rua, para alegria do populacho.

Ela lembrava às vezes que a sua avó Francinha, mãe do Fitico chamava-se Francelina Paulino do Amor Divino e era pertencente ao clã dos Paulinos da Vila Campos, em Canindé. Achava despropositada, portanto, uma certa rivalidade que havia entre o povo dos Campos e a gente do Castro, já que, de certo modo,  eram ‘farinha do mesmo saco’.

Miguel José de Sousa Mello, meu tataravô, era filho de Fortunato José de Sousa Mello e Ana Úrsula Cavalcanti de Sousa, casal proveniente dos sertões da Paraíba ou de Pernambuco. Contam que o Miguel foi pai aos 14 anos. Engravidara uma escrava chamada Irene e a mãe descobriu a travessura ao fazer o parto da moça, quando constatou que o rebento tinha os olhos e a pele clara do seu Miguelzinho. Muitos anos depois esse filho apareceu, acho que na terrível seca de 1877, buscando a ajuda do pai, que no momento se encontrava ausente. A mulher o recebeu com uma certa frieza e disse-lhe que esperasse o retorno de seu pai, para ver o que ele resolveria. Arranchado no alpendre, Chico Irene (esse era o apelido do rapaz) foi surpreendido por um grupo de jagunços (ou por uma horda de sertanejos famintos) querendo saquear a fazenda. Prontamente o rapaz assumiu a defesa da casa e perguntou à esposa de seu pai, se tinha alguma arma disponível. A velha deu-lhe um clavinote e ele enfrentou os cabras disposto a matar ou morrer. Diante de sua demonstração de coragem, os homens preferiram se retirar, de modo que o saque iminente foi evitado. Depois do seu ato de bravura, não houve mais nenhum impedimento ao seu intuito. A dona da casa ordenou que ele encostasse o seu burrico e suprisse os caçuás com bastante mantimentos: farinha, rapadura, feijão, carne seca e outros alimentos comuns nas fazendas sertanejas daquele tempo.

PENDORES LITERÁRIOS
 

O velho Fitico era um danado… Possuía uma pequena, porém ótima biblioteca com livros editados no Brasil, Portugal e até Alemanha, quase todos de temática sacra e gostava muito de escrever, em bom português e ótima caligrafia. Olympio Viana (o Pai Viana da Cacimbinha), um de meus bisavós maternos, também tinha esse hábito. Quanto ao Miguel do Castro dizem que também era poeta de nomeada, pois quando estava moribundo ainda teve fôlego para compor essa quadrinha para uma comadre que viera visitá-lo:
 

Quatro coisas me aborrecem,
Fora faca que não corta...
Dormir cedo, acordar tarde,
Mulher feia e besta torta!
 

- Pegue esta pra você, comadre! - Teria dito o enfermo.
 
 Francisco de Souza, o Fitico do Castro

 
Francisco de Assis de Sousa nasceu no dia 19 de novembro de 1870 e casou-se com uma sobrinha, Maria das Mercês Viana de Sousa, filha de Miguel Martins Viana e  de sua irmã Francisca, mais conhecida como ‘Mãe Souza’. A moça era 14 anos mais jovem, pois nascera no dia 18 de fevereiro de 1884. Ainda adolescente, Fitico estudou na capital, nos bons tempos da Fortaleza descalça  e chegou a conhecer a famosa Marica Lessa, personagem que inspirou Manoel de Oliveira Paiva em seu célebre romance Dona Guidinha do Poço. Já senil e amalucada, a velha ainda teimava em protestar inocência no caso do assassinato do seu marido, o Sr Abreu, morto pelo escravo Corumbé, a mando da própria Marica Lessa, segundo se dizia.

Fitico foi contemporâneo e admirador do Padre Cícero Romão e protetor do Padre Azarias Sobreira, o melhor e mais fidedigno biógrafo do patriarca do 'Joaseiro'. Encontrando-o adoentado, ainda adolescente, a caminho do Convento de Canindé, onde foi seminarista, Fitico prontificou-se a cuidar de sua saúde na Fazenda Castro, de sua propriedade. No Castro, o jovem Azarias recebeu calorosa acolhida durante meses, até recuperar-se e poder retornar aos estudos religiosos, pois era esse o seu intento. Quando ordenou-se sacerdote, veio celebrar uma missa na capelinha do Castro, erguida pelo meu bisavô, dedicada à Jesus, Maria e José, capela na qual eu viria a me batizar pelas mãos do padre Vital Elias, então vigário de Madalena. Ali também fiz a primeira comunhão que me foi ministrada pelo Padre Nery Feitosa, escritor e historiador dedicado.

Minha avó Alzira Viana de Sousa (Lima, após o matrimônio) era leitora contumaz dos clássicos do cordel e papai, Francisco Evaldo de Sousa Lima, um apaixonado por cantoria que não aventurou-se pelo mundo com uma viola às costas porque a família (meu avô, principalmente) não foi de acordo. Mas adquiriu um vasto cabedal de livros e folhetos que decorava com grande facilidade e lia ou declamava para os filhos sempre que tinha tempo. Dois de meus irmãos também fazem versos com grande facilidade, são eles Klévisson e Itamar.

 

RETALHOS DA INFÂNCIA

 

O cordel foi minha leitura de primeira hora, literatura que vislumbrei da soleira das janelas de minha infância, linguagem corriqueira que utilizávamos no dia-a-dia com a vantagem de ser rimada e metrificada. Antes mesmo de aprender o beabá eu já me deliciava com a leitura de minha avó Alzira, corrida e desembaraçada, na toada mais adequada para os folhetos e romances de cordel. Desfilavam diante de mim reis, princesas encantadas, castelos de ouro e cristal, gigantes descomunais, dragões flamejantes, guerreiros medievais, amarelinhos sabidos, o diabo logrado, as fábulas repletas de bichos da fauna nordestina e a saga dos cangaceiros audaciosos. Universo mais lúdico é impossível.

Quero iniciar este novo livro com um cordel feito recentemente para o Instituto C&A, que encomendou-me um texto sobre brincadeiras e folguedos de um menino sertanejo a fim de inserir numa de suas publicações. Lembrei-me, é claro, da minha infância lúdica e feliz na fazendola de meus avós:

 
Divisa dos municípios de Madalena e Canindé (Três Irmãos)
Foto: Autemar Viana
 

MEUS BRINQUEDOS DE CRIANÇA (TRECHOS)

Arievaldo Vianna Lima

 

Vou falar das brincadeiras
Do meu tempo de criança
Porque não posso olvidar
Tanta bem-aventurança
Um tempo lúdico, encantado,
Que não me sai da lembrança.

 
Ouvi canções de ninar
Que a minha mãe cantava
Numa rede de varandas
A noite ela me botava
E solfejando cantigas
Com prazer me embalava.

 
Três monólitos gigantes
No final da cordilheira
Dominavam a paisagem
Nessa terra hospitaleira
Onde vivi com prazer
A minha infância primeira.

 
Nesse lugar encantado
Onde só reina alegria
No meio dos meus parentes
Como num sonho eu vivia
Lá, a própria natureza
Só respira poesia.
 

As aves cantam nos galhos
Trina a cigarra na mata
Os cristais resplandecentes
Parecem de ouro e prata
E o olho d'água da fonte
Jorra em suave cascata.

 
No sopé da cordilheira
Que se ergue abruptamente
O sabiá laranjeira
Canta sublime e plangente
O sol dardeja os seus raios
Tocando a alma da gente.
 

Preás se escondem nas locas
Com medo dos predadores
Inhambus arrulham nas matas
Atraindo os caçadores
Abelhas zumbem na relva
Sugando o néctar das flores.

 
No sopé dos três serrotes
Tudo é encanto e beleza
Seus habitantes convivem
Em paz com a natureza
E os monólitos ostentam
O seu porte de nobreza.

 
No ano sessenta e sete
Do outro século passado
Nasci naquele recanto
E fui por Deus inspirado
A beber daquela fonte
Perto do reino encantado.

(...)

 

 
Quando eu era pequenino
Nos alpendres do sertão
Que ouvia: “ Era uma vez...”
Ficava de prontidão:
Já sabia que as estórias
Jorravam em profusão.

 
Os meninos do sertão
Bebiam a nossa cultura;
Os mais velhos transmitiam,
Em prosa franca e segura
As estórias de Trancoso
Em oralidade pura.
 

Belos romances rimados
(Os folhetinhos de feira)
Eram lidos em voz alta
No alpendre e na bagaceira
Dos engenhos de açúcar
Para toda cabroeira.

 
O Fiscal e a Fateira
Os Cabras de Lampião
A Vida de Pedro Cem
Testamento de Cancão
O Crente e o Cachaceiro
Numa grande discussão.
 

Martírios de Genoveva
E a Donzela Teodora
São romances que o povo
Guarda, conserva e adora
E a criança inteligente
Lê, admira e decora...

 
Cancão de Fogo e João Grilo
Aderaldo e Zé Pretinho
Juvenal e o Dragão
Eu li tudo com carinho,
No alpendre, em voz alta,
Rodeado de vizinho.


(...)
 

Mas, de toda diversão,
Do meu tempo de criança
O contador de estórias
Jamais me sai da lembrança
Essa figura encantada
Renova a minha esperança.

 
Eu tenho muita saudade
Dos saberes e cantares
Vovô sabia narrar
Muitas lendas populares
Tinha o urubu e o sapo
Numa festa, pelos ares.

 
Tinha o macaco e a onça
A raposa e o “cancão”
Dois gênios da esperteza
Como reza a tradição;
No fim da fábula, a moral,
Trazendo alguma lição.

 
Por tudo quanto vivi
Me tornei um menestrel
Penso rimas, traço trovas
Em pedaços de papel
Eis o que me transformou
Num poeta de cordel.