quarta-feira, 16 de setembro de 2015

104 ANOS DE NASCIMENTO DA ALZIRINHA


BREVE NOTÍCIA DE UMA MATRIARCA SERTANEJA

As avós sertanejas, matriarcas de clãs numerosos, eram, em geral, figuras sábias, conselheiras e presentes na tarefa de educar os descendentes. É o caso de minha avó paterna, Alzira de Sousa Lima, pessoa que exerceu grande influência sobre a minha formação cristã e intelectual. Hoje, 15 de junho de 2016, fazem 104 anos do seu nascimento. 
Vovó faleceu em 16 de setembro de 1994, lúcida e cercada por seus 9 filhos, tendo a oportunidade de despedir-se e abençoar cada um deles. Foi um ser humano iluminado, uma sertaneja plena de sabenças, inteligência e graça, que jamais será esquecida pelos que tiveram a honra de conhecê-la.



Esta fotografia, de 1990, foi tirada no dia 18 de setembro - dia do meu aniversário. Foi a última que tirei em companhia da minha avó paterna Alzira Viana de Sousa Lima. Na foto aparecem também os meus pais (Evaldo e Hathane), minha irmã Vandinha (de laço na cabeça) e esse bebezinho é a Ticiana, filha do meu primo Galileu Filho. Vovó faleceu quatro anos depois desta fotografia, no dia 16 de setembro de 1994. 

AVÓ CENTENÁRIA
(Crônica publicada em junho de 2012, no Jornal da Besta Fubana)

Há exatos cem anos, no dia 15 de junho de 1912, nascia em Fazenda Castro, município de Quixeramobim, Alzira Viana de Sousa, filha de Francisco de Assis de Sousa (Fitico) e Maria das Mercês Viana Sousa.
Falo de minha avó paterna, tantas vezes citada como a pessoa que mais contribuiu com a minha alfabetização e de quem herdei o gosto pela escrita e pela leitura. Numa época em que as mulheres sertanejas permaneciam analfabetas, vovó teve a sorte de frequentar escolas em Quixeramobim e Canindé, pois seu pai, um homem extremamente religioso e afeito à leitura, logo percebeu nela uma Inteligência extraordinária e queria educá-la para ser freira.

O tempo passou, ela tornou-se adulta e não realizou a expectativa paterna, retornando ao seio da família onde dedicava-se à costura, ao bordado e aos afazeres domésticos. Por essa época já era uma leitora assídua de vários tipos de leitura, mas, por desejo do pai, era quem tirava as novenas de santo (Mês de Maria, Santo Antônio etc), lia os testamentos de Judas e, sobretudo, os folhetos e romances de cordel que por lá apareciam.

Aos 24 anos enamorou-se de Manoel Barbosa Lima, possivelmente seu primeiro e único amor, com quem só pode casar-se depois de fugir de casa, como já foi narrado anteriormente no texto que escrevi sobre o centenário do meu avô. A partir daí, ela passou a assinar Alzira de Sousa Lima pelo resto da vida. O casal teve onze filhos, dos quais sobreviveram nove, apesar da pobreza e dificuldades que enfrentaram no início de sua vida a dois. Na década de 1950 as coisas melhoraram sensivelmente. Manoel ingressou com sucesso no ramo comercial, expandiu a suas relações, adquiriu terras, construiu casa de morada ampla e arejada, enfim, colheu os frutos de seu trabalho perseverante.

Manoel Barbosa Lima, meu avô paterno

Minha avó costumava dizer que quando Deus nos fecha uma porta, Nossa Senhora nos abre uma janela. Na sua visão simples de mulher sertaneja, temente à Deus e devota de Nossa Senhora (jamais deixou de rezar uma novena em devoção à Virgem Maria no mês de maio), vovó queria mostrar com isso que a Providência Divina jamais desampara aqueles que rezam com fé e confiam na graça de Deus. Sobretudo aqueles que sabem dar amor aos seus semelhantes e procuram, de alguma maneira, ajudar o seu próximo. Mas também sabia ser prática e não deixava tudo nas mãos de Deus, procurando fazer a sua parte. Era sempre requisitada quando algum dos netos adoecia, porque era eximia conhecedora do poder medicinal de algumas plantas e também, por experiência, sabia quais os remédios de farmácia poderiam ser úteis. Resultado, todos os netos sobreviveram e somam em torno de 40.
Uma das cenas que me traz a sua imediata recordação é a presença da lua, quando desponta no finalzinho da tarde e fica quase invisível, esperando a cortina da noite para mostrar o seu esplendor. Quando criança, eu sempre a acompanhava nas visitas que fazia aos filhos e vizinhos. Num dado momento, eu via minha avó tirar algum dinheiro do bolso do vestido, apontá-lo em direção à lua e pronunciar algumas palavras em voz baixa. Um dia ela me explicou o motivo. Era uma oração que aprendera quando criança, pedindo a influência benéfica do velho satélite às suas economias:


Deus vos salve, lua nova
Clara e resplandecente
Quando fores e vieres
Traga mais desta semente!

Coincidência ou não, nunca faltava dinheiro nos seus bolsos. Era uma verdadeira cacimba de areia, uma fonte quase inesgotável. Todos os anos, na Festa de São Francisco, em Canindé, era vítima dos amigos do alheio. Coitada, curta da vista, com dinheiro nos dois bolsos do vestido, era alvo fácil para os ladrões. Por outro lado, inventou um bolso interno, onde guardava as cédulas graúdas. Os filhos brincavam, sempre que ela chegava à Meca Franciscana:

A mamãe já veio deixar o dinheirinho dos ladrões!

Por falar em ladrão, ela tinha uma oração infalível para descobri-los, o “Responso de Santo Antônio”, que parece só funcionar depois do roubo efetuado, não serve para preveni-lo. Esta poderosa oração é muito conhecida em todo o Brasil e encontra-se num velho livro de orações chamado Escudo Admirável*:

RESPONSO DE SANTO ANTONIO

— Se milagres desejais,
Recorrei a Santo Antônio,
Vereis fugir o demônio
E as tentações infernais.

— Recupera-se o perdido.
Rompe-se a dura prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.

— Todos os males humanos
Se moderam, se retiram,
Digam-no aqueles que o viram,
E digam-no os paduanos.

— Recupera-se o perdido.
Rompe-se a prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.

- Pela sua intercessão
Foge a peste, o erro, a morte,
O fraco torna-se forte
E torna-se o enfermo são. (Rezar um Glória ao Pai).

- Recupera-se o perdido
Rompe-se a dura prisão
E no auge do furacão
Cede o mar embravecido.

V. Rogai por nós, bem-aventurado Antônio.
R. Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

(Fonte: Escudo Admirável, pág. 451)

A religiosidade de minha avó estava presente em tudo o que fazia. Sempre se recomendava a Deus e aos santos de sua devoção antes de uma viagem ou de tomar alguma decisão importante. Nos momentos de aflição ou perigo, recorria ao “Lembrai-vos”, de São Bernardo e ao Ofício da Imaculada Conceição. Foi com sua fé e o poder das orações que combateu um incêndio decorrente de uma broca que meu avô estava queimando. Como é do conhecimento da maioria dos leitores, no Nordeste só temos duas estações climáticas: inverno e verão. Em julho as árvores da caatinga começam a amarelar suas folhas e em agosto começa a soprar uma canícula abrasadora que resseca todo o arvoredo, com exceção do juazeiro, da oiticica e de umas poucas árvores que aprofundam suas raízes em busca de um veio d’água. Em setembro os agricultores brocavam os seus roçados e depois de retirar a madeira melhor para construção da cerca tocavam fogo nas coivaras, tendo o cuidado de fazer um aceiro de mais ou menos um metro de largura para evitar que o incêndio se alastrasse pelo restante da propriedade. O dia de queimar o roçado era previamente estudado, conforme a direção dos ventos e a total ausência de nuvens, já que uma neblina poderia por tudo a perder.

Vovó e suas netinhas gêmeas: Gabrielly e Danielly, filhas da tia Heliodória

Foi numa ocasião como esta que meu avô resolveu atear fogo numa broca, coadjuvado pelos filhos e alguns trabalhadores. Por força de circunstâncias adversas perderam totalmente o controle da situação. Em pouco tempo, “o mundo estava se acabando em fogo”, dizia ele de maneira hiperbólica, dando uma viva idéia do que acontecera. O fogo avançava célere rumo ao pasto do gado e às capoeiras de algodão. Minha avó não se deixou abater pelo desespero. Ajoelhou-se diante do oratório da família e principiou a rezar o Ofício da Imaculada Conceição. O céu, como já foi dito, estava sem um fiapo de nuvem. Os ventos e o sol abrasador ajudavam a propagação do fogo. Enquanto vovô e seus auxiliares tentavam infrutiferamente debelar as labaredas, minha avó debulhava a sua reza de maneira contrita e fervorosa. Diversas testemunhas asseguram que em menos de cinco minutos começou a formar-se um nevoeiro, vindo das bandas do nascente e em dez minutos a chuva caía de maneira torrencial. Chuva curta, é verdade, mas suficiente para apagar completamente o fogo que havia se alastrado. Não questiono em absoluto a veracidade deste fato porque sei da honestidade de meus avós, Eles jamais inventariam uma história como esta. O poder da fé os salvou de uma grande aflição.
Na velhice vovó ficou praticamente cega e o que mais lamentava era não poder ler. Jamais ouvi ela se queixar de não poder ver a fisionomia dos entes queridos ou as belezas de um inverno farto. O que ela realmente lamentava era a impossibilidade de escrever cartas para os parentes distantes (fazia com certa dificuldade, sem acertar com as pautas do caderno) e praticar as suas leituras. Depois de uma bem sucedida cirurgia de catarata ela recuperou parte de sua visão e voltou a ler desembaraçadamente.
Alzira de Sousa Lima faleceu no dia 16 de setembro de 1994, após uma luta contra um câncer no esôfago. Ela tinha a garganta muito estreita e engasgava-se com muita facilidade. Certa feita, engasgou-se com um pedaço de galinha e isso deve ter deixado graves sequelas, possibilitando o desenvolvimento do câncer que a vitimou.
Para mim, Alzira representa um farol na minha formação religiosa e cultural. Sua religião era aquela que Ariano Suassuna costuma chamar de “Catolicismo Sertanejo”, bem identificada com os costumes da nossa região e um pouco distanciada da Igreja de Roma. Dentre os seus santos de devoção figuravam também o Padre Cícero, o Padre Ibiapina e outros pregadores nordestinos. E as festas religiosas nordestinas, como todos sabem, unem o sagrado e o profano, de forma indissociável. Era por isso que eu gostava de ir a Quixeramobim e Canindé em sua companhia, pois ela adorava andar pelas ruas apinhadas de gente, comprando brinquedos, frutas, utensílios domésticos e outras bugingangas. Na data de seu centenário de nascimento, é a singela homenagem que lhe presto, com todo amor e carinho.



* Sobre o ESCUDO ADMIRÁVEL - Escudo Admirável para os Males da Vida
Padre Manoel José - Editora: Casa de Cruz Coutinho, ano: 1863
Título completo: Escudo Admirável Para os Males da Vida: Torre fortíssima para o instante da morte e patrocínio efficaz no Divino Tribunal. Nova edição, accrescentada com muitas Novenas e outras devoções Pelo Padre J. R. C.  

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