O
Sertão de Marica Lessa
Por
Bruno Paulino
“O sertão é
o homizio. Quem lhe rompe as
trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado não
indaga do crime, tira o chapéu e passa.”
(Euclides
da Cunha, Os Sertões)
Quando
era criança meu avô Luis Paulino foi quem primeiro me contou sobre “a história
da mulher que mandou matar o marido” como ficou conhecida no imaginário dos
rincões de Quixeramobim a tragédia greco-sertaneja ocorrida em 1853 envolvendo
a matriarca e eterna personagem do sertão Maria Francisca de Paula Lessa e seu
marido o cel. Victor de Abreu Vasconcelos. O coronel fora a assinado em seu
lar, pelo escravo Corumbé, supostamente a mando de Marica Lessa.
O
vô Luis trabalhou muitos anos na fazenda Canafístula – palco principal da
tragédia – no tempo de Damião Carneiro, o bandeirante do sertão, como o definiu
Armando Falcão em livreto escrito sobre o fazendeiro. Naquela época que vovô trabalhou por lá –
década de 50 do século XX – a história de Marica Lessa, antiga dona daquelas
terras ainda estava fresca na memória de muita gente que morava por ali. Ele
acabou guardando muitas delas, e eu tive a sorte de ouvi-lo contar. Hoje quase
ninguém se lembra dessas histórias na região, da casa-grande de Marica não resta
mais uma parede sequer em pé, porém, é possível encontrar muitas porcelanas nos
escombros, o que demonstra quão rica de fato, ela era. Do tempo de Marica Lessa
na Canafístula Velha resta apenas à capelinha da Sagrada Família (Jesus, Maria
e José), onde ainda se reza missa pelo menos uma vez no mês.
Uma
história que vovô contava era que quando Marica Lessa foi presa na fazenda,
após preso Corumbé e ele acusá-la de ser a mandante do crime – vinha ela escoltada
para a vila por um enorme cortejo de homens, na altura de uns seis quilômetros
da Canafístula mandou que parasse numa casa e pediu que o morador, que era seu agregado
passasse um café, que ela estava indo resolver um mal-entendido e na volta
passaria por lá para tomarem o café juntos. Marica Lessa nunca mais voltou à
Canafístula.
Proprietária de uma imensidão de terras e de grandes rebanhos de
gado, além de teres e haveres de ouro e prata, a matriarca sertaneja despertou
a inveja de seus inimigos e a cobiça de alguns membros da justiça. Ao ser
acusada do crime, Marica Lessa, uma mulher rica e mandona, numa sociedade
patriarcal do Século XIX, ficou à mercê de seus desafetos. Aos poucos, foi se
desfazendo dos seus bens, vendidos a preço de banana para cobrir as despesas com o
processo do qual nunca pode se livrar.
Depois
que o vô Luis me contou a história da mulher que mandou matar o marido eu
fiquei curioso para saber mais sobre o assunto. Logo passei a perguntar aos
adultos sobre aquela história. Descobri que tinha se escrito um livro sobre a trama,
mas naquela idade não atinei para ler o romance Dona Guidinha do Poço, do escritor cearense Oliveira Paiva. Só depois
na faculdade é que fui lê-lo.
Em
1889, atacado pela crise da tuberculose e em busca de um clima que lhe fosse
mais aprazível Oliveira Paiva pousou em Quixeramobim, aí teve contato com a
história de Marica Lessa através da tradição oral e da consulta dos documentos
cartoriais do caso, e resolveu escrever o romance, que só veio a ser publicado
na integra em 1952, através do esforço da crítica literária Lúcia Miguel
Pereira, que recebeu um original das mãos do escritor Américo Facó, que por sua
vez os tinha recebido de Antônio Sales, a história da publicação do romance
como se vê, dá outro livro.
O
historiador Ismael Pordeus, natural de Quixeramobim, trouxe a luz em 1961, o festejado
estudo À margem de Dona Guidinha do Poço:
história romanceada, história documentada, em que comprovava que a ficção
de Oliveira Paiva teria sido inspirada no caso real de Marica Lessa. Desse modo
os nomes Marica Lessa e Guidinha do Poço
são hoje indissociáveis na memória social de Quixeramobim, num entrelaçamento
perfeito entre ficção e história, embora não esqueçamos o alerta do escritor
Milan Kundera: o romance não tem compromisso com a realidade.
Nesse
sentido outra lenda que muito se divulgou e que ainda hoje encontra eco foi que
Marica Lessa teria mandado construir – destinando a maior parte dos recursos –
o prédio de Câmara e Cadeia e teria sido ela a primeira prisioneira do recinto.
Esse fato é refutado por quase todos os historiadores que consultei, mas lembro
de vovô me contá-lo como verdade absoluta.
De
certo é fato que Marica Lessa foi à madrinha de Batismo de Antônio Vicente
Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro. Muitos historiadores sustentam que quando
ela foi presa, Antônio teria testemunhado todo acontecimento e que certamente aquelas
cenas deram-lhe um entendimento de como funcionava a justiça, muitos crêem que
Marica foi vitima de uma intriga política e pelo fato de ser mulher. Ismael Pordeus, afirma ainda no seu estudo que
o “crime” de Marica Lessa teve como pena 20 anos de reclusão, mas segundo
Gustavo Barroso ela ficou muito mais tempo presa e morreu na miséria aos 85
anos nas ruas de Fortaleza, “semi-louca” a bradar reiteradamente: – Deus é testemunha que não mandei matar
ninguém!.
Bruno
Paulino é escritor.
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