Vista panorâmica da comunidade Saco da Serra (Canindé-CE)
RELEMBRANDO O ANTÔNIO ÂNGELO
(ANTÕE ANJO)
ARTESÃO E FERREIRO HABILIDOSO
Sandálias de couro, tipo quinaipe, produzidas por artesão nordestino
Serra do Peitão (Foto de Erasmo Sousa)
O ENCANTO DAS SERRAS
E uma curtição à moda antiga
Arievaldo Vianna
Por
detrás daquela serra
Passa
boi, passa boiada,
Também
passa moreninha
Do
cabelo cacheado.
(cantiga
popular)
Dizem que as
serras atraem as chuvas. Desde pequenino eu fiz essa constatação pois as chuvas
que banhavam as terras de meu avô vinham sempre das bandas da Serra do Peitão
(situada ao nascente) ou dos lados da Serra da Cacimba Nova (situada ao sul).
As montanhas também são associadas à caças abundantes, clima mais ameno e
nascedouro de fontes, rios e riachos. De modo que as serras me fascinavam e eu
tinha uma enorme curiosidade para saber o que havia do outro lado daquelas
cordilheiras. Que lugares existiriam depois do lado oculto? Quem os habitava,
de que se ocupavam? Às vezes apareciam moradores do Saco da Serra, do Fundão,
do Pitanguá e eu perguntava:
— Aonde fica
isso?
Vovô apontava
e dizia:
— Pros lados
da Serra... Do outro lado da serra.
Aquilo
aumentava ainda mais a minha curiosidade. No Saco da Serra morava um habilidoso
ferreiro, mestre dos sete ofícios, que também curtia sola e trabalhava com
ossos e chifres. Era o mestre Antônio Ângelo, grande amigo do meu avô, figura
cujo andar se assemelhava ao Sassá Mutema, personagem vivido pelo ator Lima
Duarte numa novela global dos anos 80. Visto de longe, o velho parecia um
cangaceiro, com um chapéu de couro quebrado na testa e dois bornais de couro a
tira-colo, cruzados no peito, sobre a roupa de mescla azul. Gostava de tomar
uma bicada e à medida que cachaça surtia efeito, ficava mais falador, dizia
chistes e arrematava com seu riso largo a encher toda a bodega. Mas não era
inconveniente. Sabia se portar com dignidade, dentro dos limites do respeito e
da camaradagem. “Antõe Anjo”, como todos o chamavam, fabricava foices,
machados, chibancas, picaretas, dobradiças, armadores, mas sua especialidade
eram as facas, para as quais fazia também o cabo e a bainha. Um artesanato de
finíssimo acabamento, tudo produto de sua engenhosidade.
Quando vinha
fazer compras na bodega do meu avô adquiria sempre uma ou duas latas de soda
cáustica para curtir os couros e fabricar a sola de que precisava para
confecção de bolsas, chinelos, bornais, patuás e bainhas. Ignoro com quem
aprendera tais ofícios. Era um artesão dos mais finos, criativo e bastante
curioso, vivendo num ambiente isolado e distante, onde as companhias deviam ser
macacos, saguis, passarinhos, raposas e a Prazer. Já ia me esquecendo de informar
que a sua companheira se chamava Maria dos Prazeres, mas todos a chamavam
simplesmente de “Prazer”.
No meu
imaginário de criança, a palavra CURTIR sempre esteve associada a esse curioso
personagem. E, por conseguinte, lembro-me incontinenti das latas de soda
cáustica da marca “Dragão” que ele comprava para fazer a curtição das peles.
Tanto que me causou bastante estranheza quando ouvi um locutor da rádio
Difusora Cristal de Quixeramobim dizer o seguinte:
— Caros
ouvintes, agora vamos curtir o novo sucesso de Roberto Carlos!
Só me vinha à
mente o sujeito mergulhando o LP do Rei, com capa e tudo, num tanque cheio de
couros embebidos numa ‘golda’ de tanino e soda cáustica.
Três Irmãos - divisa de Canindé com Madalena
CURTIÇÃO À MODA ANTIGA
Depois que a
rês é abatida, o couro é retirado cuidadosamente e espichado em varas até
secar. O mesmo processo se repete com ovinos e caprinos e até mesmo com caças
do mato, como o veado capoeiro, cujo couro é muito apreciado para o fabrico dos
apetrechos do vaqueiro. Depois que o couro seca, retiram-se pelancas e restos
de gordura com uma faquinha afiada. Após isso, mergulha-se num tanque com água,
tanino e soda cáustica. Nesse processo milenar o artesão faz um curtimento
artesanal, usando casca de angico, uma árvore nativa bastante encontrada na
caatinga nordestina. A casca da planta é rica em tanino, componente responsável
por tingir o couro e deixá-lo bem curtido. Para isso, a casca é quebrada ou
triturada e misturada com a água. Durante esse processo, o artesão precisa
proteger as mãos, para não sofrer cortes devido a acidez da mistura.
Artefatos de couro - foto TV Morena
Às vezes, o
couro fica de molho no angico por uma semana. A soda cáustica ajuda a acelerar
esse processo, provocando a queda dos pelos, mas o que dá a cor avermelhada e a
maciez é o tanino retirado da casca do angico. Antônio Ângelo, comentando esse
processo, dizia ser necessário mexer algumas vezes para o couro não ficar
manchado. Depois de uma semana, a sola fica tingida de um tom bem avermelhado.
Então, a peça seca na sombra, para não ressecar, e é sovada, etapa necessária
para amaciá-la.
Diferentemente
de outros meninos da minha idade, eu acompanhava essas conversas com grande
interesse, fazendo perguntas um tanto esparçadas e bem suscintas, pois meu avô
não gostava de criança se intrometendo na conversa dos adultos. Creio que vem,
desde esse tempo, a minha vocação para repórter e escritor.
CRIME AMBIENTAL?
Como já era
de se esperar, ambientalistas, professores universitários, defensores do
eco-sistema e do bioma da caatinga já começaram a se manifestar e publicar
teses contra a extração da casca do angico e outras árvores taníferas da nossa
Região. Segundo dizem, “a utilização de cascas de árvores taníferas, prática
comum em curtumes tradicionais, compromete a fisiologia da planta quando a
casca é retirada de forma anelar, pois impede o fluxo da seiva na árvore,
levando-a a morte. O manejo sustentado de plantas taníferas precisa ser
realizado de forma que sejam adotadas algumas estratégias para conservação dos
recursos pelas comunidades. Iniciativas como extração de tanino das folhas
poderiam ser muito menos impactantes nessas populações, já que se observam, em
algumas espécies, diferenças não significativas entre os teores de tanino nas
cascas e nas folhas. Esses mesmo autores, no entanto, lembram que a coleta
preferencial das cascas deve-se a disponibilidade das mesmas durante todo ano,
na região semiárida, ao contrário das folhas.” [1]
Que eu saiba
o velho Antônio Ângelo não andava depredando a flora nativa do Saco da Serra,
Pau D’Arcal e Três Irmãos. Ele sabia retirar parte da casca, sem comprometer a
sobrevivência da árvore, que tem capacidade de recomposição. Tanto é que ainda
existem vários pés de angico naquela região. Analfabeto e liberto da influência
desses doutores das universidades o velho curtidor sabia, por instinto herdado
de seus ancestrais afros e indígenas, conviver harmonicamente com a natureza
extraindo o que era necessário sem depredar o meio-ambiente.
No meu modo
de entender, o desaparecimento desses labores sertanejos é tão preocupante
quanto às possíveis agressões ambientais que eles podem desencadear. Acho que
as universidades deveriam se preocupar, também, com o registro e a preservação
destes ofícios milenares que estão desaparecendo, um a um, vítimas do acelerado
processo de industrialização que atinge até mesmo os recantos mais distantes do
nosso Sertão.
Cascas de Angico
[1] Fonte: http://www.diadecampo.com.br/zpublisher/materias/Materia.asp?id=31140&secao=Artigos%20Especiais
(Data de acesso: 15 de junho de 2016).
Boa tarde!
ResponderExcluirO que seria quinaipe?
obrigada
Olá Rosângela, bom dia. QUINAIPE é termo popular para designar aquelas sandálias de correias, tipo franciscana.
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