"O
Homem Que Subiu em Aeroplano Até a Lua"
Texto de Bráulio Tavares
Uma das primeiras
histórias brasileiras de viagem à Lua é a do folheto de cordel O Homem que
Subiu em Aeroplano Até a Lua (NHUFQDN). A edição mais antiga que já vi foi uma
de 1923, atribuída a João Martins de Athayde. Foi essa a atribuição que usei
num artigo, “A Ficção Científica no Cordel”, que fiz para uma antologia da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Volta ao Mundo da Ficção
Científica, ed. Edgar Cézar Nolasco e Rodolfo Rorato Londero, Campo Grande:
UFMS, 2007).
No arquivo online da
Casa de Rui Barbosa (RJ) pode-se consultar e ver a capa de outra edição, de
“6-10-47” (ver ilustração acima), igualmente atribuída a Athayde sob a dúbia
rubrica de “editor proprietário”. No entanto, checando tempos depois a
Literatura Popular em Verso da própria Casa vi que Sebastião Nunes Batista, que
entende do assunto mais do que eu, atribui a autoria a Leandro Gomes de Barros
– como tantas outras obras de Leandro, talvez, de que Athayde se apossou
editorialmente.
O texto completo,
digitalizado:
http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=RuiCordel&pasta=&pesq=LC0206
Fica valendo a
ressalva, salvo melhor juízo.
(Leandro x Athayde)
O folheto em si é uma
aventura onde a ida à Lua tem duas partes. A primeira é um pretexto para um
conflito armado entre terrestres resolutos e selenitas indóceis. Uma aventura
de cinema mudo, escrito numa época em que talvez ainda fosse possível entrar
num cinema do Mercado São José e assistir um “filme de efeitos especiais” de
George Méliès. A segunda parte é uma fantasia.
Antes da viagem ser
realizada, somos levados à oficina de Baratão, o herói da história. É uma
mistura dos famoso “Marcos e Obras” inexpugnáveis com uma certa “ciência
gótica”, em que nomes de mecanismos ou de processos técnicos são invocados “do
nada” para dar colorido imagético, para dar prosseguimento à história, ou para
resolver uma enrascada descritiva.
O bueiro da officina
era grosso e tão
comprido
como a Torre de Babel
de ferro só
construído!
O motor era um damnado
corria tão apressado
que só se ouvia o
zunido.
Essa officina fazia
espadas, lanças,
couraças,
cada um canhão
pavoroso
que tinha mais de cem
braças
e um tiro desse canhão
derrubava um batalhão
nem que tivesse mil
praças.
Uma vez foi Baratão
aos engenheiros e
disse
que inventassem um
motor
que até a lua subisse
gritou a todos zangado
que o motor fosse
inventado
nem que a cachola
partisse.
A engenhoca é entregue
um mês depois, porque no cordel tudo ocorre tão magicamente como no velho
cinema mudo. A realidade exibida ali é tão frágil que a gente tem medo de fazer
um só questionamento e ela vir abaixo. Não se deve tocar nunca numa bolha de
sabão, nem mesmo se ela for retangular, suspensa no escuro.
(Le Voyage dans la Lune, Georges Méliès, 1902)
A narrativa tem menos
de Julio Verne do que de Terry Gilliam (são muito afins com o cordel , p. ex.,
os contos do Barão de Munchausen). Quando o aeroplano fica pronto, ele resulta
numa coisa muito próxima àquele monstrengo de avião que o milionário Howard
Hughes construiu na marra, e Scorsese fez um filme.
Era uma coisa
horrorosa
a tal machina
inventada,
uma légua de comprida
depois que ficou
armada; (...)
Baratão vai à Lua e os
detalhes podem ser consultados online no saite da Casa de Rui Barbosa. A
“máquina” pousa mas todos continuam adormecidos a bordo, o que anima os
selenitas a atacá-los; mas eles não são terrestres à toa, e a reação é pesada.
Daí a pouco foi sangue
que fez lagoa no
chão...
Uma escaramuça mortal
não muito diversa da que H. G. Wells imaginou para os seus First Men on the
Moon (1901). Romance, aliás, adaptado para o cinema em 1919 por Bruce Gordon.
Como Leandro morreu em 1918, não poderia ter assistido o filme. Athayde sim,
pois só morreria em 1959, e além do mais era frequentador assíduo dos cinemas
do Recife.
A narrativa tem uma
guinada interessante rumo à segunda parte. Estes selenitas iniciais, que
destroem a nave, logo dão lugar a uma estrada, uma cidade, um palácio, e um
Sultão, pai de uma bela princesa, chamada Amante. (Digressão: O rei benévolo ou
desconfiado, e a princesinha em oferta: estes arquétipos são mais difíceis de destruir
do que um andróide.) Vira uma história romântica das Mil e Uma Noites, e
Baratão, plenamente à vontade na diplomacia, pede e consegue a mão da moça.
A história, que neste
segmento vinha totalmente oriental, com certa coerência, no momento de emoção maior
vê a mão nordestina do autor ficar pesada:
Quando Amante soube
disso
de alegria desmaiou
nesse dia foi um frêvo
e todo povo dançou
foi banquêtes mais
banquêtes
buscapé bomba,
foguêtes
toda a corte formou.
O casamento tem as
mesmas imagens singelas das histórias sonhadas dos prinspos e das prinspas do
sertão:
Uma enorme carruagem
dois mil carros
enfeitados
os arreios dos
cavallos
eram todos prateados
as igrejas repicavam
e todas flores jogavam
sobre os noivos
acclamados.
Imagens que lembram o
“Romancinho” de Cecília Meireles, o poema da mocinha pobre que corre à beira da
estrada para ver passar o filho do rei.
O triunfo final da
fantasia é que nem passa pela cabeça de Baratão consertar o aeroplano (que os
selenitas escangalharam) e voltar para a Terra.
Personagem de fantasia
se assimila mais facilmente ao reino que descobre. Quem geralmente quer voltar
de qualquer maneira é o personagem de ficção científica. Foi profetizado e cumprido, com imaginação
sociológica, por John Kennedy: “Vamos levar um homem até a Lua – e trazê-lo de
volta em segurança”.
“Trazer de volta para
a Terra” é um preceito humanista da corrida espacial, relacionado ao “nenhum
homem será deixado para trás” dos soldados em combate.
Os norte-americanos nunca
perdoaram os russos por Laika, e apesar de alguns problemas retumbantes a NASA
parece ter sido mais cuidadosa com a vida humana do que o programa espacial
soviético. Mas como Baratão pertence a outra estirpe, não fez a menor questão
de voltar ao nosso planeta:
Quem duvidar dessa
historia
vá na lua perguntar
por signal toda a
familia
de Baratão ha de
encontrar
si a vida lá for boa
e si não ficar à tôa
não queira mais lá
voltar.
Cordel do paraibano José Soares, o Poeta Repórter, escrito em 1969
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