quinta-feira, 2 de outubro de 2014

DUAS ANEDOTAS DO FITICO...


O casal Fitico e Mercês, em foto rara da década de 1930

... E O VELHO RÁDIO ZILOMAG

Raimundo Albuquerque de Pinho é filho de uma tradicional família de Madalena, nascido em 1930. Quando jovem, trabalhou na Fazenda Teotônio, um complexo agro-industrial, pertencente à época ao Sr. Gerardo Câmara. O Teotônio era um oásis de prosperidade em meio à pobreza sertaneja. Depois largou-se mundo afora e percorreu os quatro cantos do país, passando por Paraná, São Paulo, fixando-se depois em Goiás onde trabalhou como ‘candango’ na construção de Brasília. Mesmo distante de seu torrão, Albuquerque de Pinho procurou manter a sua identidade sertaneja, alimentando-se com as histórias de sua gente, sem jamais perder de vista a sua Madalena querida.

Era afilhado de batismo do casal Raimundo Chagas e Almerinda Viana, pais do Dr. Galileu Viana Chagas. Ao Galileu, devo a gentileza de uma cópia xerocada de um livro de memórias escrito por Albuquerque de Pinho (Histórias da Minha Terra), publicado em 2002, onde aparecem algumas crônicas bem interessantes como “O canguçu da Itataia”, que conta a origem do nome da localidade de Queimada da Onça; “A divina tragédia”, que narra as peripécias de um pai-de-chiqueiro desembestado, puxando o andor de São Gonçalo numa procissão e muitas outras crônicas interessantes onde desfilam personagens irreverentes como  Manezim Ilia (Elias), Nogueira da Barra-Nova, Assis Macena, Mané do Óleo e Fama Roseira. O meu bisavô Fitico aparece em duas histórias, ambas bem humoradas.


Raimundo Chagas, padrinho de Albuquerque de Pinho

Na primeira delas o autor narra as peripécias que envolveram a sua primeira comunhão, ocorrida por volta de 1940, ministrada pelo padre Jaime Felício. Quando estava na fila da confissão, diz ele que ouviu “um tilintar de medalhas, acompanhado de cochichos, sussurados por uma voz quase em lamento” que lhe chamou atenção. Era meu bisavô Fitico, agarrado a um rosário e seguido de perto pelo seu genro Mané Aderaldo. Assim diz o autor: “ambos, em atitude de extremo respeito e piedade, de mãos espalmadas sobre o peito, contritos, desfiavam as contas de seus rosários e com os olhares contemplativos, quase em êxtase, olhando para o altar, pediam a Deus e à Virgem Padroeira, perdão para os crimes que nunca cometeram.” O desfecho do conto é hilário... O padre ordena que o menino conte os seus pecados e o coitado cai na besteira de dizer que havia furtado umas canas e algumas frutas da propriedade de um tio. O padre ergue-se do confessionário visivelmente exasperado o chamando de “ladrãozinho safado!” Depois pergunta se ele “já conhecia mulher”. Ora, o coitado, longe de imaginar o sentido capcioso da pergunta, lembrou-se que conhecia a mãe, a avó, as tias, as vizinhas e respondeu desembaraçado:
— Conheço, sim senhor!
Deixemos o próprio Albuquerque de Pinho narrar o desfecho da tragédia:
“O padre Jaime arregalou os olhos, estufou o peito, que de tão magro, mais parecia a titela duma peitica, para fora do confessionário e, para espanto dos que estavam na fila (no caso o Fitico e o Manezinho Aderaldo), pegou a minha orelha, torceu-a até quase encostar a minha cara no chão e berrou:
— Taí, seu safado, para você deixar de ser tão sem-vergonha e nunca mais fazer isto!”
O resultado foi uma penitência aloprada, composta por dezenas de Padre-Nossos e Ave-Marias. O coitado do garoto mijou nas calças, de tanto medo, e saiu dali encolhido, morto de vergonha, arrastando os chinelos mijados pela nave da igreja.

* * *



A outra anedota é intitulada “O NÓ DA GRAVATA” e tem o Fitico como um personagem ativo da história. Como já foi dito anteriormente, Francisco de Assis de Souza, o Fitico, esmerava-se no vestuário e jamais dispensou paletó e gravata. Isso pode ser comprovado em todas as fotografias em que aparece, mesmo nas mais antigas. Gostava de um bom terno de linho branco e uma gravata de cor para arrematar o visual. Esse modo de vestir-se poderia até ser comum na capital e nas cidades mais evoluídas do interior, mas naqueles cafundós sertanejos era uma notável excessão.
A história documentada por Albuquerque de Pinho lhe foi repassada pelo José Raimundo da Vaca Serrada e teria ocorrido, segundo o autor, nas primeiras décadas do Século XX. O Capitão Joaquim Felício de Castro, dono da fazenda Açude, bisneto de um imigrante italiano que dera com os costados em Quixeramobim no final do Século XVIII, herdara de seu ancestral um vistoso suéter de couro de puma, que para não ser comido por traças e polias vinha sendo conservado com pó de enxofre e breu, o que certamente lhe deixou impregnado de um “cheiro de múmia”.
Joaquim Felício era muito amigo de um certo João Macambira que morava no Pitanguá. Certo dia, voltando com um comboio da Serra do Baturité, hospedou-se na propriedade desse cidadão e daí nasceu uma grande amizade que foi cultivada pelos anos seguintes. Depois da terrível Seca do Quinze (1915), o Capitão recebeu certo dia um convite especial enviado por seu amigo do Pitanguá, para participar do novenário do Divino Pai Eterno, que ali se celebrava da noite do natal (24 de dezembro) ao dia 06 de janeiro, dia da Festa de Santo Reis.
Assegura Albuquerque de Pinho, que o Capitão entendeu de comparecer a tal festejo envergando uma camisa de seda e o tal casaco de couro de puma, herança do seu antepassado. O problema era o nó da gravata, que o Felício não acertava e que ninguém sabia fazer em roda de pelo menos umas duas ou três léguas. Foi aí que ele lembrou-se de seu amigo Fitico do Castro, que residia bem distante de sua moradia mas que era perito em dar qualquer espécie de nó, especialmente em gravatas.
Depois de cavalgar seis léguas, três pra lá, três pra cá, Joaquim Felício retornou feliz da vida, com a sua gravata perfeitamente acomodada em volta do pescoço. Dormiu assim e no dia seguinte empreendeu viagem para o Pitanguá, a fim de atender o convite do amigo. Deixemos a cargo do próprio Albuquerque o desfecho da história:
“Ali, lhe estava reservado tudo o que havia de melhor: desde uma rede branca de varandas, aos melhores petiscos da mesa. Foram quinze dias em que os dois amigos deram vasta dimensão ao conhecimento de seus costumes e as origens de suas cepas ancestrais.
No último dia, porém, estava reservada ao visitante ilustre, uma surpresa. Seria o pregoeiro do leilão, que culminaria com o encerramento daquela animada e cerimoniosa festa. O Capitão estava impecável dentro do seu suéter que exalava um intolerável odor balsâmico.
E, entre os: ‘quem dá mais?’ (...), a vibração do martelo sobre a mesa, uma boa dose de zinebra, com tira gosto de coxa de peru recheado, mais uma apertada no nó da gravata que, a a estas alturas, depois de quinze dias e noites, presa ao seu gogó, já não era possível distinguir suas franjas, assemelhando-se, no dizer do Zé Raimundo, a um papo de urubu-rei”.
Concluindo a história, Joaquim Felício retornou à sua fazenda Açude ainda com a maldita gravata no pescoço e ao chegar em casa, depois de despir o velho suéter, calças, e borzeguins, viu-se às voltas com o nó da gravata que não cedia nem a custa de reza. Baldados todos os esforços, lembrou-se mais uma vez do seu amigo Fitico:
“Depois do almoço, montou mais uma vez o seu cavalo cansado e estropiado e dirigiu-se à casa do seu Fitico, que depois de paciente malabarismo, conseguiu com um pontudo sovelão de chifre de veado, arrancar do seu pescoço aquela histórica e malvada gravata que, daquele dia em diante, nunca mais apertou o pomo de Adão do Capitão Joaquim Felício.”
Eu não conheci o bisavô Fitico, mas cheguei a conhecer o tal sovelão de chifre de veado a que se refere o Albuquerque de Pinho. Na sala de costura da minha avó, ficava também o ‘santuário’ (um pequeno oratório de madeira escura, feito pelo Chico Tomé) com as imagens dos santos de sua devoção, uma velha penteadeira e a banca do rádio, um pequeno móvel com gaveta, onde estavam, dentre outras relíquias, os óculos de aro de tartaruga que pertencera ao Fitico, o seu exemplar do Escudo Admirável, poderoso livro de orações e o tal sovelão de chifre de veado que eu gostava de usar para aplicar cutucões nas costelas de algum primo distraído. O velho rádio a válvula, da marca Zilomag era um companheiro diário que divertia e informava, sintonizado desde as primeiras horas da manhã até a boca-da-noite na Difusora Cristal de Quixeramobim, Rádio Tupinambá de Sobral, Assunção e Uirapuru de Fortaleza, quando cedia lugar às conversas do alpendre ou a leitura dos folhetos de cordel na sala de jantar. Foi nesse aparelho que ouvi, pela primeira fez, as cantigas de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Marinês, Ari Lobo, Trio Nordestino e a sanfona inconfundível do Noca do Acordeón, embora minhas tias preferissem os programas de “Jovem Guarda” com o “Rei” Roberto Carlos e seu séquito de cafonas. Sinto saudades de locutores como Aurélio Brasil, Guajará Cialdini, Wilson Machado e José Lisboa, homens de prosa fluente e agradável, que valorizavam a verdadeira música popular brasileira. Dos remanescentes dessa “Velha Guarda” da radiofonia cearense, ainda temos a honra de escutar as vozes marcantes de Cid Carvalho e Narcélio Limaverde, falando de um tempo bom que não existe mais.





Aparelho receptor de rádio da marca ZILOMAG

Sobre o RÁDIO ZILOMAG, veja essa postagem no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=JQ-ymSq1NH0

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