FLIP 2019: Cordel pede passagem na Flip com batalha de repentistas
Após ganhar título de patrimônio cultural do Brasil,
feira
recebe dezenas de cordelistas que vendem suas obras
e organizam declamações e
'pelejas'
Por: JOANA OLIVEIRA (EL PAÍS)
O cordelista Chico Feitosa, na Flip. J.O.
Cordel pede passagem na Flip com batalha de repentistas Flip
resgata força de ‘Os Sertões’ com uma programação ainda mais diversa e política
A ciência do peido ou O Homem que perdeu a rola são títulos
que aparecem expostos em uma larga mesa ao lado de outros menos pitorescos,
como Deforma da Previdência ou Tragédia em Brumadinho. Foram necessários 17
anos e um título de Patrimônio Cultural do Brasil —concedido em outubro de
2018— para que a Literatura de Cordel ganhasse um espaço próprio na Festa
Literária Internacional de Paraty. Nesta edição, que vai até domingo (14/07),
uma dezena de cordelistas de diversos estados brasileiros reúne-se no prédio do
Iphan, no centro histórico da cidade, para vender suas obras e falar sobre a
cultura do cordel. Em anos anteriores, os poetas populares circulavam pelas ruas
de Paraty por conta própria, como vendedores ambulantes.
Luitgarde Oliveira, Klévisson Viana e Bráulio Tavares
Um deles é Severino Honorato, administrador de empresas de 56
anos, natural de Mulungu (Paraíba), mas radicado há mais de três décadas no Rio
de Janeiro. "Eu já nasci cordelista, mas só comecei a escrever mesmo com
14 anos, com poesia em estilo livre. Aprendi cordel com o meu pai, que era
analfabeto, mas que me alfabetizou em casa com as rodas de leitura. Isso me fez
entender que o cordel é um patrimônio de cada poeta, de cada família do
interior do Brasil, especialmente do Nordeste", conta. Hoje, Severino
dedica-se a publicar suas obras, mas também realiza oficinas de cordel e
participa de eventos relacionados ao tema. É ele quem vai apresentando a quem
chega à casa do cordel na Flip aos demais cordelistas. Com sua própria
programação, o espaço conta com um palco improvisado, onde os autores declamam
seus trabalhos e realizam pelejas —uma versão mais prosa das batalhas dos slams
de poesia—.
Uma das repentistas mais experientes nas pelejas é Cleuza Santo,
de 65 anos, que foi a primeira cordelista a publicar na cidade de São Paulo.
"Meus pais são de Ilhéus, na Bahia, mas eu não tinha contato nenhum com
essa cultura, só tinha uma vaga lembrança na infância de meu irmão lendo
cordel. Um dia, fiz um curso de poesia e me apaixonei por essa literatura. Há
12 anos, me dedico a ela", conta a autora, cuja obra é inteiramente
voltada para o público infantil. Na casa do cordel, Cleuza é uma das mais
entusiastas em relação ao título de Patrimônio Cultural Brasileiro. "Hoje
temos a proteção federal da nossa arte. Antes, lutávamos sozinhos para que ela
não morresse".
Anilda Figueiredo, Dalinha Catunda, Klévisson Viana, Aninha Ferraz e Arievaldo Vianna.
Para Francisco Feitosa —ou Chico, como gosta de ser chamado—,
cearense de 65 anos e professor de Filosofia no Ensino Médio da rede pública, é
importante que os autores de cordel ocupem espaços como o da Flip 2019 não só
para dar visibildade a seu trabalho, mas também os dos autores que vieram antes
deles. "Precisamos lembrar de nossos ancestrais culturais, como Leandro
Gomes de Barros, José Camelo de Melo Rezende, Silvino Pirauá, Daniel de Almeida
Filho, Sebastião Nunes Batista. Estamos aqui por causa deles. A lembrança deles
é importante para a cultura nacional e para divulgar esse gênero poético, que
nem todo mundo conhece", defende. O próprio Chico começou
"tarde" no cordel, em 2010. "Foi quando comecei a publicar.
Antes, eu já escrevia, mas geralmente era só para tirar um sarrozinho com a
cara de alguém ou para me livrar do estresse do trabalho".
A literatura de cordel tem seus próprios clássicos: Boi
Misterioso, Pavão Misterioso, A Donzela Teodora e A Chegada de Lampião ao
Inferno são alguns deles. No entanto, os estudantes —e os brasileiros, em
geral— não os conhecem. "O cordel é uma poesia que surgiu no Nordeste e
logo foi interpretada como coisa de gente analfabeta ou semialfabetizada,
escrita na zona rural e, por tanto, coisa de gente inferior. Toda a vida se
olhou para o Nordeste de cima para baixo, os poetas de lá eram vistos como
matutos que viviam na roça", explica Chico.
Arievaldo Vianna, Paola Torres e Klévisson Viana
Para reverter essa história e fazer justiça a essa tradição
da literatura popular, o cordelista acredita que "não adianta só dar
títulos", mas sim apoiar e divulgar o cordel. "É preciso incentivo
para que essa literatura chegue nas instituições de ensino de todos os níveis.
Se ela não estiver lá, se não for adotada como instrumento de educação, ela não
vai vingar. Toda a vida, o cordel foi considerado apenas uma literatura lúdica,
de brincadeira, mas quando você vai escarafunchar, tem conteúdo pedagógico,
político e de crítica social", afirma.
Dani Almeida, recifense de 34 anos, já faz sua parte para
levar essa arte às escolas. Ela, que cresceu ouvindo o avô, um agricultor e
sindicalista pernambucano, fazer cordel como forma de protesto, começou a
escrever os próprios versos há uma década. Hoje, apresenta seu trabalho em
rodas de leituras infantis em escolas e bibliotecas. "Vejo os olhinhos das crianças
brilhando, vejo que ali brotou alguma coisa. Se elas vão se tornar cordelistas
ou não, é outra história. Mas, assim, vamos fomentando novos poetas".
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