quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

MEMÓRIA DA CANTORIA



Poeta Zé Amâncio

JOSÉ AMÂNCIO DE MOURA, 

UM MESTRE DO HUMORISMO 

NAS LIDES DA CANTORIA

Quando lancei a primeira edição do meu livro ‘O Baú da Gaiatice’, em 1999, gravei uma reportagem para o programa Nordeste Rural, da TV Verdes Mares, com o repórter Aurélio Menezes, um sertanejo natural do distrito de Sapé, Limoeiro do Norte, que aproveitou o ensejo para me repassar umas glosas engraçadíssimas do seu conterrâneo José Amâncio de Moura, um dos maiores humoristas do repente.

Em 2011 tive a grata satisfação de receber um exemplar do livro “Memórias de um poeta – José Amâncio de Moura”, organizado por sua filha Ana Cristina Freitas de Moura e Maurilo Freitas. Disse-me a filha do bardo sapezista tratar-se da segunda edição da obra, que teve grande aceitação em toda a região do alto e baixo Jaguaribe, principalmente em Limoeiro do Norte, sua terra Natal. Zé Amâncio foi repentista notável, glosador inspirado e sobretudo um grande humorista. Pobre, deficiente de um pé desde a infância, nada disso o impediu de revelar ao mundo seu maravilhoso estro poético, sobretudo nas muitas cantorias que realizou e também através de programas de rádio, atuando com diversos parceiros.

Um resgate mais que oportuno, pois além dos maravilhosos versos recolhidos, há também todo um anedotário em torno do poeta que nasceu no distrito limoeirense de Sapé.

Às vezes, por pura gozação, ele fazia versos na escola de Zé Limeira, talvez até mais engraçados do que aqueles atribuídos ao bardo da Serra do Teixeira:

Com a ponta da vara de um quintal
Com um bode que berra no chiqueiro
Com um galo que cisca no terreiro
E com a ponta da tábua de um jirau
Com o som do saudoso berimbau
Com os botões da batina do vigário
Com o cós da cueca do Olegário,
Com um peba que caga no arisco,
Com as flores do altar de S. Francisco
Enfeitamos seu lindo aniversário.

Certa vez, cantando com um colega que blasonava possuir alguma riqueza, José Amâncio fez questão de expor a sua pobreza, galhofando consigo mesmo:

Na minha casa eu só tenho
Uma garrafa de gás
Uma bicicleta velha
Faltando o pneu de trás
Para quem nasceu sem nada
Já é riqueza demais.

A herança que pai deixou
Foi somente uma ceroula
Uma jumenta zambeta
E um canteiro de cebola
E mais um papagaio velho
Pra me chamar de baitola.

Certa feita, cantando no Sítio Vaca Brava, percebeu que as mocinhas do lugar eram muito dadas a namoros, gostavam de danças e não tinham o menor pejo de acompanhar os rapazes rumo aos locais mais escuros. Por sinal, duas delas passavam insistentemente pela frente da mesa onde estavam os cantadores. Vendo esta cena, Zé Amâncio não poderia deixar de registrar numa sextilha:

Essas mocinhas daqui
Gostam de salão de dança,
E acham bom agarrado
Roçando pança com pança,
Nunca vi uma Vaca Brava
Tirar novilha tão mansa.

O poeta, apesar das dificuldades da vida, jamais perdia a sua fé em Deus. Vejam que linda estrofe:

Eu me atrevo a viver
Sem viajar, sem dormir,
Sem cantar, sem divertir,
Sem jogar e sem beber.
Sem café, sem de comer,
Sustento os esforços meus
E sem os auxílios seus
Eu sei a luta enfrentar
Só não me atrevo a passar
Sem a palavra de DEUS.

Uma de suas estrofes mais notáveis, incluída (salvo engano), na Antologia de Cantadores de Otacílio Batista e Dr. Linhares é esta glosa que alude ao roubo de sua bicicleta, num dos bairros de Limoeiro do Norte:

Roubaram um pobre poeta
Além de pobre, doente,
Inda mais deficiente
Com uma perna incompleta
Levaram-lhe a bicicleta
Com pneu, câmara e catraca
Um ladrão de alma fraca,
Esse roubo não descobre
Quem rouba um poeta pobre
Vendo Jesus, mete a faca!

Em meu livro “A mala da cobra – Almanaque Matuto”, inacreditavelmente inédito, depois de quase 20 anos que foi escrito, eu faço uma ampla pesquisa sobre o anedotário cearense e o humor na cantoria e na Literatura de Cordel. Nessa obra encontra-se esta pequena homenagem ao grande humorista do Sapé:


ZÉ AMÂNCIO, O BARDO SAPEZISTA


Nascido em Sapé, distrito de Limoeiro do Norte, o cantador José Amâncio de Moura figura nas páginas de diversas antologias como um dos glosadores mais geniais e engraçados de todos os tempos. Considerado “imoral” por alguns puritanos, o aedo sapezista ainda não teve o seu valor totalmente reconhecido. Eis uma de suas tiradas mais famosas, que foi repassada pelo seu conterrâneo Aurélio Menezes, repórter do Programa Paulo Oliveira, na Verdes Mares AM: contam que certa feita, Zé Amâncio andava na companhia dos irmãos Dimas e Otacílio Batista, quando o genial autor de “Mulher Nova, Bonita e Carinhosa” saiu-se com esta:

   Vou tomar uma cachaça
Pra lembrar Manoel Chudu...”

Dimas, aproveitando a métrica perfeita da frase de Otacílio, filosofa:

“... Toda cachaça é gostosa,
Toda roupa veste o nu...”

É a deixa que Zé Amâncio esperava para aproveitar a riqueza da rima:

“... menos gravata e colete,
porque nem cobrem o cacete
nem as beiradas do c*!”

NOTA DO AUTOR - Recebemos e-mail de Maurilo Freitas informando que essa estrofe também é atribuída a outro poeta, da Paraíba. Coisas como esta são muito frequentes na cantoria, uma arte que tem a ORALIDADE como seu maior meio de expressão. É curioso notar que muitas coisas produzidas por poetas cearenses acabam sendo atribuídas a Pinto do Monteiro ou aos Irmãos Batista.

No livro do humorista Waldy Sombra “Os poetas lá de nós  Viva o Sapé nº 2”, encontram-se várias glosas do poeta, das quais pinçamos as mais engraçadas e irreverentes. No pinicar de um desafio, uma lagartixa assustada com o barulho da cantoria desprega-se do telhado e cai no meio do salão. O pequeno réptil ainda corria pelo salão quando Zé Amâncio improvisou essa sextilha:

“ - No meio dos cantadores
caiu uma lagartixa!
Tragam depressa a vassoura
Para tanger essa bicha,
É carne que não se come
É couro que não se espicha.”

Durante anos, Zé Amâncio manteve um programa de cantoria na rádio Educadora, de Limoeiro do Norte. Certa feita, tendo chegado atrasado, o locutor Maurílio Freitas o interpela ao vê-lo entrando no estúdio:

   Meu amigo Zé Amâncio
vamos cantar um poema?

O irreverente bardo do Sapé não perde tempo:

   Vá logo tirando as calças
que eu resolvo seu problema...”

Para finalizar, uma estrofe magistral registrada por Otacílio Batista e Francisco Linhares na Antologia Ilustrada dos Cantadores.  Cantando com Domingão Pereira, eis que o parceiro termina a estrofe nesses termos:

Jesus nasceu em Belém
João Batista na Judéia.

Zé Amâncio:

Felipe na Ituréia
Falava o mesmo idioma
Abraão nasceu e Ur
E Ló viveu em Sodoma,
José, Vice-Rei do Egito,
Nero tocou fogo em Roma.


(In 'Histórias que os antigos me contavam' - livro inédito de Arievaldo Vianna)


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