sábado, 4 de fevereiro de 2017

OS CONTOS QUE LI NA INFÂNCIA


Ilustração baseada em desenho de J. Carlos

O Coronel Rodapé (Uma aposta)

Humberto de Campos

Em todo o Triângulo Mineiro não havia fazendeiro mais econômico, mais apertado de mão do que o coronel Minervino Antunes, dono do “Bom Princípio” e de outras fazendas da região. Baixinho, miúdo, raquítico, possuía como cavanhaque cinco ou sei fios de cabelos e essa modéstia de figura, que lhe valera o apelido de coronel Rodapé, constituía já um documento de parcimônia.
O coronel Rodapé rói as unhas para economizar feijão! — dizia o Capitão Bandeira, boiadeiro de Goiás.
Se o diabo lhe desse um tostão pela alma — afirmava outro – ele fechava negócio no mesmo instante!
Foi, por isso, motivo de espanto a notícia que circulou na feira, de que o coronel Minervino ia vender uma boiada para vir ao Rio de Janeiro, com a esposa, D. Vitória, visitar a exposição.
É impossível — exclamaram todos, à medida que o boato se divulgava.
Isso é apenas pretexto para vender a boiada. Mentira ou verdade, o certo é que uma semana depois, o coronel Minervino Rodapé desembarcava na Central do Brasil, trazendo ao lado a mulher e, na mão esquerda, a maleta com dinheiro. Este importava em três contos de réis, os quais deviam dar para vários divertimentos no Parque de Diversões: carrossel, “chicote”, cinema, ondas de aço, tômbolas, cavalinhos, tudo isso tinha que ser visto, gozado, desfrutado, mas parcimoniosamente, dentro do orçamento aprovado em família. E uma vez no Rio, começou a pândega.
Instalados num hotel de terceira ordem, cuja diária foi discutida tostão, por tostão, deu o coronel o braço a D. Vitória e tomou, firme, rumo da Exposição. À porta monumental da grande feira, aproximou-se Minervino de um “guichê” e indagou:
Quanto custa um bilhete de entrada? - Dez tostões — informou a moça.

E o coronel, disposto a regatear:
Dez tostões? Quer três patacas, embrulhe dois!
Desiludido de convencer a empregada, o fazendeiro pagou dois mil-réis, segurou as duas senhas, passou na “borboleta e, dez minutos depois, estava em frente do pavilhão em que se guarda hidroplano de passeio, discutindo o preço de uma ascensão para ele e a mulher. O aviador pedia cento e cinqüenta mil reis pelos dois; o coronel começou oferecendo cinqüenta, passou para sessenta e não passava de cem, quando o homem do avião, vendo que se tratava de uma passageiro incapaz de ficar em silencio cinco minutos, propôs:
Então façamos uma coisa: eu levo o senhor e a sua senhora para um passeio sobre a baia, com uma condição: se o senhor se conservar calado até nos descermos, não pagará nada; se porem, abrir a boca, pagará cento e cinqüenta mil-réis... Está combinado?
Negócio feito! Concordou o fazendeiro sem refletir sobre o sacrifício que ele ia impor, ele mesmo, por espírito de economia, à sua incorrigível loquacidade. Colocados os dois passageiros no côncavo da nacela, o hidroplano arrancou, estourando e zumbindo como um besouro colossal. À altura de oitocentos metros. O coronel permanecia mudo como um peixe.

Deixa-te estar, que te farei falar! Disse consigo o aviador. E começou a subir, a descer e guiar-se no alto como cabritasse no oceano sobre as ondas encapeladas. E o coronel mudo.

Ah! É assim? — fez o aviador, indignado com a possibilidade de perder os seus cento e cinqüenta mil-réis. – Pois espera!

E, atingindo uma grande altura, começou a fazer o “looping the loop”, em cabriolas furiosas que deslocavam o ar em redor. E o coronel, nem uma palavra. Desiludido após essa prova, de apanhar, um vintém que fosse daquele unha-de-fome, que arriscava a carcaça sem um protesto, unicamente para não desembolsar os cento e cinqüenta mil-réis, resolveu o aviador tocar para baixo, indo pousar, suave, na baía, dirigindo o aparelho, a pequena marcha, rumo ao pavilhão. Antes, porém, de ai chegar, dirigiu-se ao coronel:

O senhor ganhou a viagem... Mas, quando estava lá em cima, não tinha nada mesmo a me dizer?

Eu? Tinha, sim, senhor, mas, se eu abrisse a boca para falar, perdia a aposta. Não era?

— Evidentemente. E que era que o senhor queria dizer-me?

Ah! — fez o Minervino, respirando: — eu queria dizer-lhe que, na primeira reviravolta que o senhor deu, a Vitoria, minha mulher, caiu no mar.

(In A funda de Davi - Série Conselheiro XX)



Ilustração baseada em desenho de J. Carlos
 

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