sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

RELEMBRANÇAS




Os contos que li na infância

Como já disse repetidas vezes, o primeiro tipo de literatura que tive acesso foram os romances de cordel de minha avó, guardados numa maleta empoeirada que jazia abandonada em cima do caixão da farinha, no quarto grande da casa velha. Uma vez, ao tentar descer desse caixão, acabei escorregando de mal jeito, com as costas contra a parede e, como estava sem camisa, fiquei sem uma tira de couro do espinhaço. Essa casa fora a antiga habitação de meus avós quando vieram do Castro para o 'Toco Preto', rebatizado oportunamente de Fazenda Ouro Preto, nome que permanece até hoje. Era terreno inóspito, desabitado, quando o casal resolveu desbravá-lo na companhia de uma numerosa prole de filhos ainda pequenos.
A casa velha era para mim o que significa um shopping de luxo para os meninos de hoje. Era um reflexo da famosa feira de Caruaru. Ali eu encontrava uma infinidade de quinquilharias que me serviam de brinquedo. Até um caixão de livros e cordéis, como já foi dito.
No meio dessa tralha tinha também alguns livros escolares, que pertenceram às minhas tias e na casa dos meus pais os livros de minha mãe, que fora estudante do Colégio Gustavo Barroso, em Maracanaú, no início da década de 1960. No meio desses livros da fase escolar de minha mãe, havia um volume que reunia contos de José Lins do Rego, Viriato Correia, Coelho Neto, Olavo Bilac, Lima Barreto, Padre Dubois, Malba Tahan, Machado de Assis e muitos outros. Foi naquela velha brochura que li pela primeira vez o conto Um apólogo, do Bruxo do Cosme Velho e tomei conhecimento das Histórias da Velha Totonha e de O Homem que calculava.  
Depois dos folhetos de cordel, esses contos eram a minha leitura predileta. Havia um conto humorístico delicioso, intitulado O Coronel Rodapé, que há poucos dias descobri ser de Humberto de Campos, também autor de O brinquedo roubado, texto sentimental que me levou às lágrimas, a primeira vez que o li. Ontem, pesquisando sobre a Literatura Infanto-Juvenil do Século XIX deparei-me com esse belo conto do maranhense Coelho Neto, que havia lido quando criança num compêndio escolar:


Coelho Neto

Quem tudo quer, tudo perde
 Coelho Neto

— Parece que bateram! — disse o carvoeiro.
— Foi o vento, — respondeu a mulher.
Efetivamente, a velha cabana, levantada junto às primeiras árvores da floresta, parecia gemer, e tremia, abalada pelo vendaval, que levantava, em torvelinho, as folhas secas, arrancava robustas árvores, deixando-as tombadas, com as raízes retorcidas à flor da terra.
Os filhos do carvoeiro, três rapazitos e uma menina, que era a mais nova, cercavam-no, pálidos de medo, persignando-se toda vez que um relâmpago alumiava a cabana.
A chuva jorrava com fragor e na floresta crescia o barulho das árvores.
De novo o carvoeiro disso:
— Parece que bateram! Talvez seja algum viajante fugindo à tempestade!
Nenhum dos pequenos se atreveu a ir à porta, que rangia aos empurrões do vento.
A pequenita, porém, enchendo-se de coragem, decidiu a ver se havia alguém.
Justamente chegava à porta, quando, de novo, bateram clamando:
—Dai-me um agasalho, pelo amor de Deus!
Sem hesitar, a pequenita virou o ferrolho, e, com uma lufada violenta, ao clarão de um relâmpago, um velho precipitou-se no interior humilde.
Era alto e magro, estava coberto de andrajos. No lugar em que se deteve, ainda atordoado, ficou uma poça d’água, tão encharcado estava.
O carvoeiro levantou-se para recebê-lo; o velho, depois de abençoar a pequenita, abeirou-se do lume, tiritando, a falar da devastação que a tempestade ia fazendo por aquelas terras.
Deram-lhe do que havia no armário: pão, queijo e frutas, e o peregrino, confortado, tomando ao colo a pequenita, pôs-se a afagá-la carinhosamente.
Lá fora a tormenta continuava a rugir.
— Habitais um sítio muito arredado e triste, disse o velho carvoeiro.
— É verdade, é bem triste! Dá-me a floresta que vendo, a água que bebo, e a caça de que me nutro. O lugar é melancólico, mas nunca nos faltou o necessário, porque o meu trabalho o sabe tirar das árvores e das tocas.
Depois de um silêncio, em que pareceu meditar, o velho disse, alisando os cabelos da pequenita:
— Tendes, entretanto, a fortuna muito perto de casa. Na caverna da floresta há um tesouro guardado desde os tempos do rei Salomão. Quem lá for, e tirar, de cada vez, quando possa conduzir sem fadiga, tornará ao lar tranqüilamente; aquele porém que se exceder na carga, terá no próprio sítio o castigo da ambição.
— O que dizeis é verdade!? — exclamou o carvoeiro alvoroçado.
—Só a verdade vos digo, — afirmou o velho.
Os pequenitos, que tudo ouviram, logo resolveram visitar, na manhã seguinte, a caverna da floresta em procura do tesouro.
Caindo a noite, amainada a borrasca, o velho, apesar das instâncias do carvoeiro e da mulher, tomou o cajado, depois de agradecer a hospedagem e de abençoar a pequenita.
 Na cabana ninguém dormiu; e, aos primeiros albores da madrugada, saíram todos — o carvoeiro, a mulher e os três rapazitos.
A pequena ficou para guardar a casa e preparar a refeição.
Embrenhou-se a família. Cada qual levava um saco, contando regressar com grande cópia de ouro.
Chegaram a caverna, que ficava em sítio temeroso, e vagarosamente, penetraram.
Bem ao fundo viram como um monte de brasas que topetava com a abóbada — eram luzentes barras de ouro.
Rojaram-se todos, e, esquecidos das palavras prudentes do velho, puseram-se a encher os sacos, sempre achando pouco o que guardavam.
O carvoeiro levantou-se, e, com esforço, aos arrancos, arrastou seu saco até o limiar da caverna, sem poder erguê-lo, tão superior às suas forças era a carga.
A mulher mal se podia mover, tirava o seu saco aos empuxões, arquejando; o mesmo faziam os pequenos com o exemplo dos pais.
Um deles, porém, recordou as palavras do velho; mas o carvoeiro irritou-se:
— Ora, o velho... se bem andou, longe vai! Quem sabe se eu me havia de abalar de casa por uma barra de ouro! Temos a fortuna à mão, tolos seremos se a não aproveitarmos!
Lentamente, esforçadamente, chegaram ao limiar da caverna, mas logo se sentiram presos.
Os pés afundaram no solo alongando-se em raízes, os corpos mudaram-se em troncos, os braços estenderam-se em folhagem, e transformados em árvores, ali, ficaram, bracejando ao vento.
Debalde a pequenita esperou-os para o jantar. Em vez deles, chegou a noite.
Na manhã seguinte, foi ela à floresta, procurou-os, chamou-os, e, guiando-se pelas pegadas que haviam ficado na terra mole, foi ter à caverna.
Passou pelas árvores, sem perceber que eram os seus parentes, e estacou deslumbrada diante do cógulo de ouro.
Alegre, rindo, apanhou três barras das mais luzentes; sentindo, porém, o peso demasiado, e, lembrando-se da recomendação do velho, desfez-se de uma, e, folgadamente, ia saindo, quando ouviu as vozes escarninhas:
— Por tão pouco não valia a pena teres vindo de tão longe! Volta à caverna, e toma outras barras de ouro!
Sem dar ouvidos à sedução, a pequenita passou as árvores, e regressou à cabana.
No dia seguinte, tornou à caverna, e com mais duas barras voltou contente. Repetindo a viagem durante meses, tornou-se dona de todo tesouro.
Uma tarde, sentada à porta da cabana, chorava, quando viu vir uma velhinha que parava de instante em instante, fatigada.
Convidou-a a descansar um momento, e deu-lhe do que tinha, e enquanto comia, a velha pediu-lhe a razão das lágrimas que che arrasavam os olhos.
— Choro os que perdi, meus pais e meus irmãos. Sou rica, riquíssima! Tenho mais ouro nesta cabana do que tem o rei no seu erário; dá-lo-ia todo, de bom grado, pela antiga pobreza, se, com ela, voltassem os que perdi!
Enquanto ela chorava, ia a velha, astutamente, recolhendo as suas lágrimas em um pequenino vaso de cristal. E disse-lhe, por fim:
— Vamos à caverna! És digna de ser amerceada!
E logo, ágil como se a levassem asas invisíveis, a velhinha transportou-se da cabana à floresta, levando a pequenita.
À entrada da caverna, pôs-se a aspergir as árvores com as lágrimas, e logo se desfazia o encanto, e, um a um, reapareceram o carvoeiro, a mulher e os rapazitos.
Antes, porém, que eles se tirassem do espanto, disse a velha á pequena:
— Aqui os tens! Leva-os contigo, e que lhes fique na memória este caso! Toda a ambição é prejudicial. O homem não deve tentar o impossível: quem muito quer, tudo perde; e é com perseverança e trabalho que se consegue a fortuna.
Como um fumo que se dissolve, a velha desapareceu, e a pequenita, abraçando os pais e os irmãos, reconduze-os à cabana, onde lhes mostrou a riqueza acumulada com paciência se sem fadiga, com a qual passaram a viver na cidade, com o fausto que o ouro lhes garantia.
E o carvoeiro, bendizendo o coração da filha, referia-lhe os tormentos que haviam sofrido, ele e os seus, durante o tempo que viveram metamorfoseados em árvores.


Fonte: BILAC, Olavo & NETTO, Coelho. Contos Pátrios. Francisco Alves, RJ, 1931, 27ª ed. (ilustrado por Vasco Lima)




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