domingo, 31 de julho de 2016

BRINCADEIRAS DE ANTIGAMENTE


Hoje, 31 de julho, último dia das férias escolares, pus-me a pensar no que eram as férias no meu tempo de menino e o que representam para os meninos de hoje em dia. Nesse mergulho profundo num mar de lembranças, encontrei alguns folguedos que inventava para matar o tempo e divertir-me com os meus companheiros de infância...

UM MUNDO DE NOVIDADES
(FÉRIAS ESCOLARES)

Com o casamento das tias Maria do Socorro e Augediva, minhas férias escolares se revezavam entre o Alferes e o Iguaçu, comunidades rurais do município de Canindé. Nesse tempo, o cantor cearense Messias Holanda havia emplacado um sucesso que tocava dezenas de vezes por dia em todas as emissoras de rádio do Ceará. Nesse tempo as chamadas músicas de duplo sentido ainda eram bem inocentes:

“Vamos lá pra ver, o pagode vai ser bom,
Todo mundo no (NU), casamento da Maria...”

Na minha mente fantasiosa de criança, a música havia sido composta, especialmente para o casamento da minha tia, onde os convidados dançariam todos sem roupas. Quando passei a morar em Maracanaú demorava meses para retornar de férias ao Ouro Preto, por minha avó Alzira não queria me liberar para ir passar uns dias na casa das minhas tias. Mas elas se armavam de toda sorte de argumentos, inclusive um bastante curioso:
— Mamãe, eu vou levar esse menino. Ele está dando muito trabalho. É muito danado, muito impossível, vai passar uns quinze dias lá em casa para lhe dar descanso.
Ora, ora, meus leitores. Que conversa mais furada... Quem é que deseja a companhia de um menino “danado” e “arteiro”? Vovó retrucava:
— Ora mais essa, ah, bom basta! Deixem o bichinho, ele não me dá trabalho nenhum.
Sei que no final das contas acabavam entrando num acordo e nas férias de fim de ano, que duravam, às vezes, mais de dois meses seguidos, eu me revezava entre o Ouro Preto, a Cacimbinha, o Iguaçu e o Alferes, pequena comunidade agregada à Vila Campos. É que seu antigo proprietário, José Eustaquilino de Araújo, possuía essa patente da extinta Guarda Nacional e o lugar aonde residia passou a ser designado desse modo. Certa feita minha tia Maria, que eu chamava Didi, estava escrevendo uma carta para a irmã Augediva, da qual eu seria o portador, quando o Abdísio, seu marido, passou a vista pelo papel onde se lia em letras garrafais: Vila Campos, tanto de tanto de mil novecentos e tanto... Ele não se conteve e protestou, sungando as calças, como de costume:
— Campos não! Alferes. Pode rasgar essa daí e fazer outra. Campos é da Lagoa para lá!
E não sossegou enquanto ela não mudou o cabeçalho da missiva ferrando a patente do seu ancestral na introdução do bilhete.




BUMBA-MEU-BOI: CARETAS E PAPANGUS

“Essa casa está bem feita
Por dentro, por fora não,
Por dentro cravos e rosas
E por fora manjericão.”
(Saudação do Reisado)

A década de 1970 foi um tempo de grandes descobertas para a minha curiosidade infantil. Pela primeira vez eu vi a encenação de um bumba-meu-boi ou reisado, como se diz por ali. O grupo de “caretas” do Iguaçu (distrito de Canindé-CE) e os Bastiões, da Serrinha (Quixeramobim-CE) eram o que havia de melhor na região. Um boi bonito e vistoso, todo coberto de chita colorida, era o centro da trama. E tinha também a Ema, o Babau, a Burrinha e o Jaraguá, esse último feito da queixada de um jumento, que batia os dentes feito uma matraca. A velha dos papangus, que em alguns lugares tem o nome de Catirina, desejava comer a língua do pobre bovino e o marido acabava matando-o, para satisfazer-lhe o desejo. O negócio terminava numa confusão simulada, com direito a glosas, cantigas, “relaxos” e endechas, culminando na ressurreição do boi, que concluía o ato dançando o “Baião Vermêi” e dando chifradas nos meninos mais afoitos. A velha também nos perseguia, com uma enorme bunda postiça por baixo do vestido e um chiqueirador na mão, para amedrontar-nos com mais ênfase.
Antes disso, dera-se um fato curioso. Eu voltava da escola certo dia quando nosso primo José Rodrigues de Sousa, o Zé Miguel, me chamou muito animado e perguntou:
— Arievaldo, você já viu o Papai Noel?
— Vi não, Zé Miguel. Ano passado apareceu um brinquedo debaixo da minha rede e disseram ter sido o Papai Noel quem botou, mas eu desconfio que foi mesmo a vovó ou alguma de minhas tias.
— Que nada, rapaz! Papai Noel existe! Está aqui em casa passando uns dias. Quer ver?
A Marta, minha prima, andava comigo e também ficou curiosa para ver o “bom velhinho”. O Chico Bastião, devidamente combinado com o Zé Miguel, começou a cantar velhas cantigas natalinas invocando o Papai Noel, enquanto o Zé Miguel nos preparava uma surpresa. Entrou apressadamente para o quarto, vestiu uma velha roupa de estopa, botou uma máscara horrenda de papangu e apareceu no alpendre de supetão, trajando essa estranha indumentária e sapateando em nossa direção. Nem é preciso dizer o que se seguiu. Arrancamos em desabalada carreira, botando o coração pela boca, com medo daquela aparição. Entretanto deu-me na veneta voltar discretamente por dentro do mato e verificar a coisa de perto, para contar de certo. Ora, não deu outra. Presenciamos o Zé Miguel às gargalhadas, juntamente com seu cúmplice, despindo a máscara e a estranha indumentária. Criei coragem e voltei para desmascará-lo, dizendo que já sabia de tudo, desde o começo.
— E por que foi que correram?
— Corremos para ver o Papai Noel achando graça!
Eu tinha resposta para tudo, nessas situações. Mas, voltemos aos “caretas” do Iguaçu. Eles diziam que papangus eram os meninos da plateia. Os brincantes eram caretas. No dia seguinte, a criançada empolgada com esse folguedo não falava noutra coisa. Os meninos do Antônio Tobias e outros garotos da localidade entenderam de fazer um reisado mirim. Tiramos vergônteas de mofumbo, para fazer a armação do boi, arranjamos um velho lençol de chita para cobri-lo e a cara do bicho foi pintada num grosso papelão. Faltava agora aprender as cantigas do boi. Foi quando alguém nos deu a ideia de visitar o velho José João, que morava nos arredores. O bom ancião nos atendeu prontamente e repetiu dezenas de quadrinhas até que nós decoramos a maior parte e nos munimos de um estoque de glosas para a encenação do folguedo. Lembro-me perfeitamente dessas duas:

“Eu me chamo Chico Torto
Revesso, quebra-machado,
Cavo cacimba no seco
Depressa dá no molhado.

Só não quero que me mandem
Na rua, comprar fiado,
Que fiado me dá pena
E pena me dá cuidado.”

Outra que jamais saiu da minha lembrança é a cantiga do JARAGUÁ:

Lá vem, lá vem, lá se vem o Jaraguá
O bichinho é bonitinho, ele sabe vadiar.

Venha cá meu Jaraguá (meu Jaraguá)
Para o povo não mangar (meu Jaraguá)
Ai, meia volta Jaraguá (meu Jaraguá)
Quero ver você brincar (meu Jaraguá).

Impossível não lembrar também desses versos da BURRINHA:

A burrinha do meu amo
Come tudo que lhe dão
Só não come carne velha
Sexta-feira da paixão.

Essa quadra, sugestiva e licenciosa, era evitada nos terreiros de família e dita somente em locais onde a brincadeira não corria o risco de sofrer censura:

A burrinha do meu amo
Tem um buraco no cu
Foi um rato que roeu
Pensando que era beiju.

A apresentação do grupo mirim foi no terreiro do Toinho Tobias, cunhado de minha tia Augediva. Sucesso total. Depois fiz uma reprise fora de época com os primos do Ouro Preto, mesmo sujeitos a sermos crismados com a pecha infamante de “Papangu de Quaresma”. Isso sim, é que era infância. Muito melhor que andar apalermado no meio da rua, caçando esses tais de Pokemón, como fazem as crianças de hoje em dia.

Nas férias de julho, motivado pela leitura das revistas do Zorro, do Tex e de Jerônimo, O Herói do Sertão, resolvemos que era tempo de brincar de mocinho e bandido. Eu sempre queria ser o índio e fabricava as minhas armas da seguinte maneira. Por trás da casa da minha tia havia uns postes abandonados com uma antiga fiação de cobre que não tinha mais utilidade. Eu retirava pedaços desse arame e fabricava os arcos que disparavam setas de cipó, sem ponta, para não correr o risco de ferir alguém. Mesmo assim o brinquedo era perigoso e me aconselharam a botar bolões de cera de abelha na ponta das setas para não acontecer de furar o olho de um companheiro. A meninada em peso aderiu. Passamos mais de uma semana nessa brincadeira, até que alguns mais entusiasmados passaram a flechar as galinhas e os adultos começaram a implicar, destruindo ou escondendo o rústico armamento.

Arievaldo Vianna

(De "O livro das crônicas - Volume II de Memórias", ainda inédito)

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