(Ilustração de Shiko, artista paraibano que quadrinizou O Quinze, de Rachel de Queiróz)
1915 – 2015 –
O que mudou e o que ainda permanece ao longo desses
cem anos de história
¨...Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!
Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!
Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem: Conheço o meu lugar!”
(Conheço meu lugar – Belchior)
Em geral, a imprensa do Sudeste ainda
teima em apresentar o Nordeste como a região mais atrasada e vulnerável do
país. A seca de 2015 tem sido usada escandalosamente com a finalidade de manter
essa visão estereotipada e preconceituosa. O Jornal Nacional, da Rede Globo de
Televisão, acaba de produzir uma série de reportagens intitulada “O quinze – A travessia”
onde a tônica principal parece ser a perpetuação dessa mentira, apresentando um
Nordeste supostamente tão miserável quanto o de cem anos atrás*.
Não dá para assistir inverdades desse
tipo passivamente, sem esboçar uma reação de protesto. Eu que nasci e me criei
no Sertão Central do Ceará posso falar com propriedade, pois como diria
Belchior, conheço o meu lugar! Não apenas o meu lugar, mas os relatos verídicos
de meus antepassados e a literatura deixada pelos escritores contemporâneos
daquela geração.
Rodolfo Teófilo, teste-munha ocular
das piores secas registradas na segunda metade do século XIX e início do Século
XX, dentre as quais as terríveis estiagens de 1877-79 e a famigerada Seca do
Quinze (1915), foi um dos escritores que mais se ocupou desse tema em sua obra
literária, com destaque para A fome
(1890), Secas do Ceará – Segunda metade
do século XIX (1901), Cenas e Tipos
(1919) e Seca de 1915 (publicado em
1922). É certo que nenhuma dessas obras alcançou a grande projeção do romance O Quinze, de Rachel de Queiróz, escritora
que bem cedo mudou-se para a região Sudeste do país, onde conviveu com os
maiores intelectuais de seu tempo e colaborou nos principais meios de
comunicação do Rio de Janeiro, antiga Capital Federal.
O escritor Rodolfo Teófilo, em caricatura de Válber Benevides.
Abstendo-me de comparar ou discutir os méritos literários de Rodolfo Teófilo e Rachel de Queiróz, quero valer-me da obra de ambos para dar início a um modesto estudo sobre a Seca de 2015, que venho acompanhando com singular interesse desde o início, uma vez que a estiagem vem se prolongando desde 2013. Nos últimos dois anos percorri boa parte do Nordeste e visitei os cinco estados mais afetados pelo flagelo da seca, a saber Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Neste ano de 2015, a serviço do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), tive a oportunidade percorrer longas extensões do nosso Semi-Árido e observar os efeitos causados pela prolongada estiagem. Também visitei muitas regiões lançando o meu livro mais recente, a biografia do poeta paraibano Leandro Gomes de Barros, autor de versos como estes:
Seca as terras as folhas caem,
Morre o gado sai o povo,
O vento varre a campina,
Rebenta a seca de novo;
Cinco, seis mil emigrantes
Flagelados retirantes
Vagam mendigando o pão,
Acabam-se os animais
Ficando limpo os currais
Onde houve a criação.
(...)
(...)
E a fome obedecendo
A sentença foi cumprida
Descarregando lhe o gládio
Tirou-lhe de um golpe a vida
Não olhou o seu estado
Deixando desamparado
Ao pé de si um filinho,
Dizendo já existisses
Porque da terra saísses
Volta ao mesmo caminho.
Vê-se uma mãe cadavérica
Que já não pode falar,
Estreitando o filho ao peito
Sem o poder consolar
Lança-lhe um olhar materno
Soluça implora ao Eterno
Invoca da Virgem o nome
Ela débil triste e louca
Apenas beija-lhe a boca
E ambos morrem de fome.
Basta
ser um pouco informado ou percorrer alguns quilômetros do Ceará de hoje para
saber que a situação é completamente diferente desse quadro de miséria
retratado pelo grande poeta paraibano. Entretanto, como dissemos anteriormente,
parte da mídia parece (eu disse “parece”) desconhecer as mudanças ocorridas ao
longo do tempo.
DIÁRIO DE UM VIAJANTE
DIÁRIO DE UM VIAJANTE
Atravessei o Piauí de Teresina a
Pedro II, passando por Campo Maior, Piripiri e outras cidades, rodei o Ceará em
quase toda a sua extensão, percorri a Paraíba de Cajazeiras a João Pessoa,
passando por Sousa, Pombal, Patos, Campina Grande e outros municípios; percorri
o Rio Grande do Norte de ônibus, de Natal a Mossoró, observando a paisagem e
avaliando os efeitos da seca. Em suma, meus olhar atento de sertanejo, nascido
e criado por essas bandas, filho e neto de vaqueiros e agricultores, mostra uma
realidade bem diferente dessa que a mídia insiste em perpetuar ad secolorum.
Em todas as paradas que eu fazia,
viajando de ônibus ou de carro próprio, procurava conversar com pessoas mais
velhas, nativas daquele chão, para sondar-lhes as impressões sobre os efeitos
da seca. Quase todos eram unânimes em afirmar que apesar da extensão do
problema, não se tem notícia de uma única pessoa que tenha morrido de fome,
como acontecia até meados do século passado. Os mais afetados continuam sendo os
rebanhos (bovino e ovino, principalmente), já que os seres humanos estão
garantidos por diversos programas assistenciais, aposentaria rural, perfuração
de poços profundos, instalação de adutoras e até mesmo distribuição gratuita de
cestas básicas e garrafões de água mineral! A prova disso é que o êxodo rural
não se acentuou nem se viu levas de retirantes nas estradas como ocorreu nas
secas de 1915, 1932 e 1958, por exemplo. Quando menino, morando em Canindé-CE, vi
o comércio ser saqueado por agricultores famintos, em plena década de 1980, a
exemplo do que ocorreria em muitas outras cidades. Na seca de 2015, considerada
a pior estiagem dos últimos cem anos, apesar da gravidade do problema, não se
tem notícias de saque ao comércio em nenhum município nordestino.
Entretanto, a Rede Globo de Televisão
parece desconhecer inteiramente a diferença entre a tragédia de 1915 e esta
seca registrada cem anos depois. Pelo menos foi a impressão que tive depois de
assistir à primeira de uma série de reportagens intitulada “O Quinze – A travessia”, supostamente baseada na obra de Rachel de
Queiróz, onde a intenção mal disfarçada é passar a falsa ideia de que os
sertões cearenses continuam tão pobres e vulneráveis quanto há cem anos.
Fazenda Califórnia, Quixadá. Foi aqui nesse palacete pertencente aos seus avós e não na modesta casa da Fazenda Não-me-deixes, construída em 1954, que a escritora presenciou os rigores da Seca de 1915.
FALTANDO COM A VERDADE
Para começo de conversa, as cenas de abertura da reportagem acontecem na casa da Fazenda Não-me-deixes, construída em 1954, quando a escritora, já casada e nacionalmente famosa, resolveu fazer uma casa de veraneio na propriedade herdada de seus pais, no município de Quixadá. O repórter, por desinformação ou pura ma fé, parece desconhecer que Rachel pertencia à fina flor da elite sertaneja, que nasceu em Fortaleza em 1910 (em berço de ouro) e que passou parte de sua infância na fazenda Junco, que pertencia ao seu pai, Daniel de Queiróz, ou na “casa de 85 portas” sede da Fazenda Califórnia, propriedade de seus avós. A reportagem, numa verdadeira agressão à verdade histórica, afirma que foi ali, na casa da Fazenda Não-me-deixes, fitando aquelas janelas, que ela teria buscado inspiração para escrever o seu romance. E outras aberrações vão se sucedendo ao longo da matéria. Preocupado em mostrar o sertão como o recanto mais atrasado do país, o Jornal Nacional não mostra uma única vez os milhares de poços profundos perfurados, os açudes construídos nos últimos cem anos, as adutoras, os carros-pipas, tampouco as cisternas construídas em quase todas as moradias rurais nos últimos dez anos. Pelo contrário, as cenas mais marcantes mostram pessoas idosas raspando a terra seca com enxadas, coisa que um sertanejo só faria na sua labuta diária se tivesse perdido completamente o juízo.
Foto de Rachel de Queiróz, quando criança. Ela pertencia à elite sertaneja mas foi apresentada pelo Jornal Nacional como uma menina magrela e de pés descalços.
Em Cenas e Tipos, Rodolfo Teófilo consegue ser magistral em duas crônicas
que abordam a problemática da seca. Em “O bebedouro”, uma crônica com sabor de
conto, o escritor baiano, naturalizado cearense desde a infância, retrata o
sofrimento de uma chusma de sertanejos tentando abrir, heroicamente, uma
cacimba no leito do rio seco para dar de beber a um rebanho bovino que muge
esquelético, lambendo a terra molhada que é revirada por dezenas de pás e
picaretas. No meio dessa azáfama, eis que surge um touro gigantesco, o Faísca,
que jamais se deixara capturar, desmoralizando os maiores vaqueiros da região.
O velho vaqueiro, ao reconhecer o fogoso bovino naquela rês esquelética que se
aproxima do bebedouro, começa a verter lágrimas de tristeza e acaricia o pelo
eriçado do pobre animal, que acaba chorando também. Há que se notar que essa
cena desenrola-se da forma mais primitiva, sem nenhuma ajuda da tecnologia.
Quando a escavação do bebedouro chega na piçarra sem que a água tenha minado,
os homens desistem da perfuração do manancial, deixando o gado frustrado e
frustrados eles próprios, combinam reiniciar a dura tarefa no dia seguinte, em
outro local, na esperança de melhor sorte. A outra crônica que se destaca em Cenas e Tipos intitula-se “A
imprevidência do cearense”, que de maneira realista e, de certo modo, com um
leve tom de sarcasmo, mostra a falta de bom senso dos nossos sertanejos com
relação a prevenção da seca. Durante a Guerra Civil Norte Americana, também
conhecida como Guerra da Secessão (1861 - 1865), o Ceará tornou-se um dos maiores exportadores
de algodão para florescente indústria têxtil da Inglaterra e de outras
potências europeias. Fortaleza, uma cidade ainda pequena e acanhada na primeira
metade do Século XIX experimentou considerável progresso com a chegada das
libras esterlinas que passaram a movimentar o seu comércio desde então.
Os sertanejos, responsáveis pelo plantio e colheita do ouro
branco, surpreendidos por tanta fartura, se excediam nos gastos desnecessários
sem suspeitar que a seca em breve lhes bateria à porta trazendo consigo a
miséria, a desolação e a peste. Vejamos o que escreveu Rodolfo Teófilo acerca
desse episódio:
“Não se avalia a loucura dessa gente em gastos supérfluos.
Comprava tudo que se lhe oferecia, sem regatear o preço. Alguns, no delírio do
desperdício, lavavam os cavalos com cerveja inglesa, a única que havia, marca
Bass, custando mil réis a garrafa, que era de louça.”
Na terrível seca de 1877-79 Rodolfo
Teófilo, já estabelecido como farmacêutico em Fortaleza teve a curiosidade de
visitar os campos de concentração dos flagelados da seca e deparou, para seu
espanto, com muitos daqueles sertanejos que desperdiçavam as suas economias e
banhavam cavalos com cerveja importada. Passado o “castigo” da seca,
rapidamente esqueceram as suas sequelas e entregaram-se novamente ao vício
perdulário. Segundo Rodolfo, além de banhar os cavalos, passaram também a aguar
os salões onde dançavam os seus forrobodós. Eis a forma como o escritor
registra esse acinte, no livro publicado em 1919:
“O cearense é incorrigível. A sua imprevidência chega à
obcessão. (...) As pessoas que visitam o sertão dizem que o matuto desperdiça
dinheiro às mãos cheias. O aluá desapareceu e foi substituído pela cerveja, que
serve, para cumulo de desperdício, para aguar as casas em que se fazem festas.”
“- Tô com 65 anos. Foi a pior seca que passei na minha vida. Foi Deus que
mandou mesmo pra pessoa saber quem tem coragem de trabalhar”, diz Francisco.
JN: - Por que?
Francisco: - Só trabalha quem tem coragem, patrão.”
Num ato de heroísmo o velho sertanejo
conduz diariamente uma carroça d’água, atravessando um percurso de quilômetros, para
matar a sede do seu pequeno rebanho bovino, que não quer ver morrer à míngua.
Foi, sem dúvidas, o ponto mais interessante da reportagem.
NO CALOR DA VAQUEJADA
Por falar em gado é natural que o
associemos à figura do vaqueiro, hoje praticamente extinta. No sertão de hoje,
é comum se ver um sujeito de camiseta e bermudas, tangendo gado de cima de uma
motocicleta. Bem diferente daquela figura descrita por meu conterrâneo Antônio
Bezerra, cearense de Quixeramobim, no livro O
Ceará e os Cearenses, publicado em 1906:
“Apesar dos pesares o vaqueiro é um tipo que não desaparecerá
do Ceará. Vestido airosamente de estreitas perneiras, espécie de calças de
couro, guarda-peito, gibão e chapéu, tudo feito da melhor e da mais bem curtida
pele de veado capoeiro (cervus rufus), bem pespontado em admiráveis desenhos a
linha (...)
Nas juntas, quando nalguma várzea se rodeia o gado, basta que
uma rês se desprenda do magote e corra em busca da mata para que se precipite
em vertiginosa carreira até emparelhar e, nesse momento inclinando-se o vaqueiro
sobre a sela para o lado direito, enrola na mão o extremo da cauda da rês e num
rápido empuxão atira-o ao solo, onde é imediatamente presa ou peada.”
NO CALOR DA VAQUEJADA
Passei uns quinze dias deste final de
ano numa modesta casa de veraneio que construí no município de Madalena, às
margens da rodovia que liga São José da Macaóca a Lagoa do Mato, distrito de Itatira.
Num final de semana, por volta de meio dia, com o sol causticante quase a pino,
fui surpreendido por um comboio de caminhões adaptados para o transporte de gado,
repletos de novilhos e garrotes magrelos, espremidos entre as grades da
carroceria, vítimas da inclemência climática e da maldade de seus
proprietários, sendo levados aos solavancos rumo à Serra do Machado. Indaguei
de um sertanejo presente, ali mesmo no meu alpendre, se aquele gadinho estava
sendo transportado para a serra em busca de clima melhor, pastagem fresca e
outros refrigérios.
- Que nada, respondeu o meu
interlocutor. Estão sendo levados para a vaquejada de Lagoa do Mato!
Confesso que não contive a minha
indignação ao saber que numa seca como essas, onde os bichos são os que mais
sofrem com os rigores do clima, ainda se pratica um “esporte” desumano como
essa tal vaquejada, que em nada se assemelha às festas de apartação do Ciclo do
Couro, quando realmente havia um motivo para se vestir de couro dos pés a
cabeça e arrebanhar o gado das soltas para os currais. As tais vaquejadas não
passam de uma caricatura distorcida das cenas descritas anteriormente por
Antônio Bezerra. Dispensando gibão e chapéu de couro, os “vaqueiros” modernos
mais parecem cow-boys americanos,
vestidos de calça jeans e botas de
cano alto, chapéu country ou boné de
marca importada, montados em quartos de milha e outros cavalos puro-sangue.
Correm no limpo, numa arena fechada, praticando impunemente as piores
atrocidades contra o rebanho bovino. O mais grave disso tudo é que apesar de
toda a descaracterização, essa prática nefanda já está enraizada na “cultura”
do povo nordestino e não tem mais como retroceder.
Logo após a passagem do comboio
bovino, dezenas de motos, carros de luxo e camionetas tipo Hi-Lux passaram rebocando uma parafernália eletrônica que o vulgo
batizou de “paredões de som” e a farra comeu solta até a tarde do dia seguinte.
Na segunda-feira, curtida a ressaca da “vaqueirama”, vi novamente o mesmo gado,
sofrido e maltratado, retornando para seus locais de origem, justamente ao pino
do meio-dia, a hora mais imprópria para o transporte dos pobres animais.
Certamente muitos deles tiveram pernas quebradas e foram sacrificados lá mesmo,
para proveito dessas “vítimas da seca” que o Jornal Nacional vem apresentando
de maneira tão comovida.
Arievaldo Vianna (29-12-2015)
* VER ESSE
LINK: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2015/12/um-seculo-depois-o-drama-da-seca-retratado-no-livro-o-quinze-se-repete.html
OBRAS CONSULTADAS
O QUINZE - Rachel de Queiróz
CENAS E TIPOS - Rodolfo Teófilo
A FOME - Rodolfo Teófilo
O QUINZE EM QUADRINHOS, adaptação de Shiko
A SECA DO CEARÁ - Leandro Gomes de Barros
O CEARÁ E OS CEARENSES - Antônio Bezerra
TANTOS ANOS - Rachel de Queiróz e Maria Luíza de Queiróz.
OBRAS CONSULTADAS
O QUINZE - Rachel de Queiróz
CENAS E TIPOS - Rodolfo Teófilo
A FOME - Rodolfo Teófilo
O QUINZE EM QUADRINHOS, adaptação de Shiko
A SECA DO CEARÁ - Leandro Gomes de Barros
O CEARÁ E OS CEARENSES - Antônio Bezerra
TANTOS ANOS - Rachel de Queiróz e Maria Luíza de Queiróz.
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