quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Influências Ibéricas no Cordel

A LENDA DE PEDRO CEM


VIDA DE PEDRO-SEM. Historia de seu orgulho, crimes, castigo e arrependimento, [ANÓNIMO], Lisboa, Livraria e Typographia de F.[Francisco] Silva, s.d., s.i., 16 pags

Há quem negue e arrenegue influências da trova ibérica na Literatura de Cordel brasileira, mas as evidências são tantas que até as imagens falam por si. Há pesquisadores que afirmam que esse formato dos folhetos de feira (uma folha tamanho ofício dobrada em quatro partes e essas capinhas coloridas, nas cores rosa, verde, azul e amarelo) são invenções genuinamente nordestinas, nascidas nas tipografias e folhetarias da nossa Região. Mas, como prega o Eclesiastes, "nada é novo sob o sol..." 
Outros teimam que os folhetos portugueses eram, em sua maioria, em prosa ou em quadras. Já vi folhetos portugueses com sextilhas, décimas, motes etc. mostrando que embora a Literatura de Cordel nordestina tenha identidade própria, tanto visual quanto na forma literária, é inegável que bebemos na fonte lusitana, como prova a história a seguir, versada magistralmente em sextilhas pelo paraibano Leandro Gomes de Barros. (A. V.)


* * *

"Diz a lenda popular que Pedro Pedrossem da Silva, rico mercador da Companhia dos Vinhos e juiz, terá caído na ruína por haver desafiado Deus. Ao ver os seus navios entrar na barra do rio Douro, e proferindo com soberba Agora, mesmo Deus querendo, eu não posso ficar pobre!, uma tempestade ter-se-á abatido sobre a frota, tudo ele perdendo, lançando-o na mendicidade o resto da vida. Ao que diz também a lenda, passou ele a estender a mão à caridade com a seguinte frase: Esmola para Pedro Sem, que tudo teve e nada tem.

Uma torre de observação mandada construir no Porto por D. João III, em 1542, e ainda hoje visível na Rua da Boa Nova, determina o local dos acontecimentos, do mesmo modo que a literatura de cordel, muito dada a desgraças e jocosidades, veio sedimentar-lhe a reputação, pois algum fundo de verdade estará na sua origem. Embora o vertente folheto com data de feitura incerta, mas no século XX, nos chegue anónimo na autoria, é de Rafael Augusto de Sousa, na primeira metade do século XIX, a mais antiga versão escrita conhecida.



* * *

“E foi assim que ouvi a história de Pedro Sem:
Era um agiota muito rico, que vivia naquela torre, lá ao fundo da rua, com a filha de um senhor que lhe tinha pedido dinheiro emprestado e, quando não pôde pagar, ele ficou-lhe com a filha que, coitada, tinha de pagar pela dívida do pai. Tinha o avarento muitos barcos, que iam à Índia e aos Brasis, e ele ia ao alto da torre para, por um óculo, os ver chegar à Foz do Douro. E, em certa tarde de sol, viu chegar a sua frota, carregadinha, e, muito contente, exclamou, enquanto os barcos demandavam o canal do rio: “– Agora nem Deus!”
Só que, naquele tempo, Deus ouvia tudo o que se dizia cá em baixo e despencou uma terrível tempestade que fez naufragar todos os barcos, ao mesmo tempo que um raio veio incendiar o recheio da torre, só dando tempo a que a jovem fugisse para casa de seus pais; e o avaro mais os criados vieram para a rua tentar debelar o incêndio, o que não conseguiram. Só ficaram com as roupas no corpo. Dinheiro, papéis de dívida, de crédito, jóias, enfim, nada ficou para testemunhar o prestígio de outrora e o velho, sem nunca ter dado nada a ninguém, olhava para as paredes da torre e via-se obrigado a esmolar, dizendo: “Dai alguma coisa ao Pedro Sem, que teve muito e agora não tem!”

Júlio Couto, “Isto do Pedro Sem...”, in Nuno Pignatelli, Lenda de Pedro Cem, Porto, Campo
das Letras, 2007.

Leandro Gomes de Barros (Paraíba, 1865 – Recife, 1918) foi primoroso em quase tudo o que escreveu. Suas adaptações do “Livro de Carlos Magno e os Doze Pares de França” são primorosas, o mesmo ocorrendo com a Donzela Teodora e a História de Pedro Cem. A seguir, algumas estrofes de abertura do cordel de mestre Leandro:



A VIDA DE PEDRO CEM
Leandro Gomes de Barros

Vou narrar agora um fato
Que há cinco séculos se deu
De um grande capitalista
Do continente europeu
Fortuna como aquela
Ainda não apareceu

Pedro Cem era o mais rico
Que nasceu em Portugal
Sua fama enchia o mundo
Seu nome andava em geral
Não casou-se com rainha
Por não ter sangue real

Em prédios, dinheiro e bens
Era o mais rico que havia
Nunca deveu a ninguém
Todo mundo lhe devia
Balanço em sua fortuna
Querendo dar não podia

Em cada rua ele tinha
Cem casas para alugar
Tinha cem botes no porto
E cem navios no mar
Cem lanchas e cem barcaças
Tudo isso a navegar

Tinha cem fábricas de vinho
E cem alfaiatarias
Cem depósitos de fazenda
Cem moinhos, cem padarias
E tinha dentro do mar
Cem currais de pescaria

Em cada país do mundo
Possuía cem sobrados
Em cada banco ele tinha
Cem contos depositados
Ocupavam mensalmente
Dezesseis mil empregados

Diz a história onde li
O todo desse passado
Que Pedro Cem nunca deu
Uma esmola a um desgraçado
Não olhava para um pobre
Nem falava com criado

Uma noite ele sonhou
Que um rapaz lhe avisava
Que aquele orgulho dele
Era quem o castigava
Aquela grande fortuna
Assim como veio, voltava

Ele acordou agitado
Pelo sonho que tinha tido,
Que rapaz seria aquele
Que lhe tinha aparecido?
Depois pensou: — Ora, sonho
É ilusão do sentido!

Um dia no meio da praça
Ele uma moça encontrou
Essa vinha quase nua
Nos seus pés se ajoelhou
Dizendo: — Senhor, olhai
O estado em que estou...

Ele torceu para um lado
E disse: — Minha senhora,
Olhe a sua posição
E veja o que fez agora.
Reconheça o seu lugar,
Levante-se e vá embora!

— Oh! Senhor! Por este sol,
Que de tão alto flutua,
Lembrai-vos que tenho fome
Estou aqui quase nua
Sou obrigada a passar
Nesse estado em plena rua!

Ele repleto de orgulho
Nem deu ouvido, saiu
E a pobre ergueu-se chorando
Chegou adiante, caiu
Vinha passando uma dama
Que com seu mato a cobriu

Era a marquesa de Évora
Uma alma lapidada.
Tirando seu rico manto
Cobriu essa desgraçada
Ela conheceu que a pobre,
Foi pela fome prostrada.

Levante-se, minha filha!
E pegou-lhe pela mão,
Dizendo à criada dela:
— Vá ali comprar um pão
Que a essa pobre infeliz,
Faltou-lhe alimentação.

Entregando-lhe uma bolsa
Com 42 mil réis,
Apenas tirou dali
Um diploma e uns papéis,
Não consentindo que a moça
Se ajoelhasse a seus pés.

E com aquela quantia
Ela comprou um tear
Tinha mais duas irmãs
Foram as três trabalhar
Dali em diante mais nunca
Faltou-lhe com que passar.

Vamos agora tratar
Pedro Cem como ficou
E o nervoso que sentia
Uma noite em que sonhou
Que um homem lhe apareceu
Disse: — Olhe bem quem sou!

— Que tens feito do dinheiro,
Que me tomaste emprestado?
Meu senhor manda saber
Em que o tens empregado
E por qual razão não cumpre
As ordens que ele tem dado...

Ele perguntou no sono:
Mas que dinheiro tomei?
Até aos próprios monarcas
Dinheiro muito emprestei;
O vulto zombando dele
Disse: Que tu és eu sei.

— Que capital tinha tu
Quando chegaste ao mundo?
Chegaste nu e descalço
Como o bicho mais imundo
Hoje queres ser tão nobre
Sendo um simples vagabundo.

E metendo a mão no bolso
Tirou dele uma mochila
Dizendo: é essa a fortuna
Que tu hás de possuí-la
Farás dela profissão
Pedindo de vila em vila.

Pedro Cem zombando disse:
— Vai agoureira, te some
Tua presença me perturba,
Tua frase me consome,
De qual mundo tu vieste?
Diz-me por favor teu nome?!

— Meu nome, disse-lhe o vulto,
És indigno de saber,
Meu grande superior
Proibiu-me de dizer
Apenas faço o serviço
Que ele mandou fazer.

Despertando Pedro Cem
Daquilo contrariado;
Ter dois sonhos quase iguais
Ficou impressionado,
Resolveu contrafazer
E ficar reconcentrado.

Pensou em tirar por ano
Daquela grande riqueza
Sessenta contos de réis
E dar de esmola a pobreza
Depois, refletindo, disse:
Não se dá maior fraqueza.

(...)


Sobre a LENDA DE PEDRO CEM, existe esse maravilhoso de Carlos Nogueira, disponível na internet: http://www.casadaleitura.org/portalbeta/bo/documentos/ot_pedrocem_a.pdf

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