Para quem gosta de ler e, principalmente, para quem gosta de escrever, trechos das agradáveis conversas de Graciliano Ramos com o jornalista e escritor sergipano Joel Silveira:
Graciliano Ramos
Joel Silveira
GRACILIANO RAMOS
Conversas com Joel Silveira (I)
A resistência de Graciliano, fazendo corpo mole e
sempre adiando o prometido, e, por outro lado, a minha determinação de arrancar
dele a entrevista de qualquer maneira, acabou nos aproximando. Pelo menos duas
vezes por semana lá estava eu na José Olympio, aporrinhando-o.
– ‘Seu’ Graciliano, e a entrevista?
E vinha a mesma resposta de sempre:
– Me dá mais um tempo. Ando atolado na leitura de
uma montanha de originais, dezenas e dezenas de literatos que querem o “Prêmio
Humberto de Campos”, aqui da José Olympio, não tenho tido tempo para mais nada,
varo a madrugada. Nunca vi tanta porcaria junta. Me dê mais uns dias.
Eu dava o tempo, voltava:
– Sabe, ‘seu’ Graciliano, é que eu queria iniciar
a série com a sua entrevista. Combinei isso com o Magalhães Júnior, ele
concordou, e agora vive me cobrando.
Ele se esquivava:
– Bobagem. Por que começar comigo? Tem aí o Zé
Lins, o Jorge, o Marques, o Lúcio (Cardoso), uma porção de outros. Comece com
um deles, me deixe para o fim.
– Mas ‘seu’ Graciliano…
– E pare com esta besteira de me chamar de ‘seu’
Graciliano. Graciliano basta.
Como disse, de tantos encontros na José Olympio,
acabamos amigos. Talvez fosse fantasia, mas o fato é que eu sentia
de sua parte uma certa simpatia por mim, embora me tratasse com aquele jeito áspero e cru
que era o seu. Algumas vezes, quando não estava ensimesmado, curtindo sozinho a sua
acidez, gostava de puxar conversa, pulava de um assunto para o outro, baforando
forte ou segurando entre os dedos a guimba do cigarro ordinário. Outras
vezes, e eu percebia logo isso só de ver a sua carranca, não queria muita
conversa, me despachava com um seco “ainda não tive tempo, vou ver se faço hoje à noite”, e
nessas ocasiões eu sabia que não devia insistir, ia embora.
Uma manhã, e era sempre pela manhã que eu o
procurava na livraria, lá nos fundos, território que ele fizera seu e que
ninguém ousava
disputar, pois, como ia dizendo, uma manhã lá estava eu a chateá-lo e mal ia entrando no
assunto da entrevista, quando ele me perguntou, abrupto:
– Você sabe por que o Brasil não é e nunca
será uma potência digna deste nome?
Eu não sabia:
– Pois lhe digo.
Baforou forte, continuou:
– Não será potência neste século nem nos séculos
vindouros. Nunca.
– Mas por que, Graciliano? Somos um país imenso,
temos três fusos horários, somos donos de mais da metade de toda a floresta
amazônica, nosso subsolo, segundo dizem, é riquíssimo em minerais, temos os
maiores rios do mundo e até o petróleo já começa a esguichar lá em Lobato, nas
portas de Salvador.
Ele me ouvia calado, cigarro entre os dedos.
Esperou que eu acabasse minha peroração ufanista, disse:
– Não adianta. Nem que fôssemos donos
da maior mina de ouro do mundo, de todos os diamantes e platinas existentes na
terra, nem com isso tudo seriamos uma potência. E por um simples motivo.
Por mais que forçasse a cabeça eu não podia
adivinhar que motivo seria esse. Perguntei:
– Mas por que, qual o motivo? Não me ocorre
nenhum.
Ele deu uma baforada, explicou:
– O motivo é simples: não temos golfo.
– Golfo?
– Exatamente. O Brasil não tem golfo. E não existe uma só potência no mundo que não tenha pelo menos um golfo. é só consultar o mapa. Estados Unidos, Rússia (apesar de comunista, ele jamais dizia União Soviética), França, Itália, Japão, todos têm golfo. E procure depois os países que não têm golfo: são todos sem importância, como é o caso do Brasil.
Naquele tempo eu cultivava um acendrado
patriotismo juvenil e
protestei:
– Me desculpe, Graciliano, mas você está sendo radical demais. Não posso concordar. Com este tamanhão todo e com todas suas riquezas, as que já se conhecem e as que serão conhecidas, é claro que o Brasil certamente será uma potência no futuro. Tem que haver uma solução.
Ele atalhou:
– E há.
– Qual?
– Simples. O Brasil tem que ter um golfo, fazer por conta própria o golfo que a natureza lhe negou.
Ri, pensando que ele estava pilheriando, mas a cara séria dizia o contrário.
– Repito, temos que fazer um golfo. E para isso a solução existe.
– Qual é?
– Veja você o caso de
nossas respectivas terras, Alagoas e Sergipe. Para que servem Alagoas e
Sergipe? Para nada, são zero à esquerda. Então, pergunto: por que não cavar Sergipe e Alagoas
e no lugar fazer um golfo? O Golfo das Alagoas!
A solução era obviamente inviável, mas de qualquer maneira, atingido nos meus brios de sergipano
ainda intacto, protestei:
– Por que Golfo das Alagoas? Por que não Golfo de Sergipe?
Ele desconversou:
– Isso de nome não tem importância. O importante é fazer o golfo. Para a escolha do nome, faz-se um plebiscito.
* * *
Outra história, recolhida
numa daquelas manhãs, não foi nem história, mas uma lição que nunca esqueci, o que não quer dizer que a tenha aprendido. Me disse
Graciliano, depois de folhear um livro qualquer, não lembro qual:
– Este cavalheiro pensa que escreve. Não escreve, escrevinha.
E continuou:
– Escrever é uma coisa,
escrevinhar é outra.
E lá se foi:
– Aqui no Brasil os nossos críticos vivem a dizer que “fulano tem estilo”, “o estilo de sicrano”. É Bobagem. Estilo quem tem é Stendhal, são os russos do século passado, é Dickens. Quem tem estilo aqui no Brasil? Machado, talvez.
Enquanto ele ia falando, eu me dizia: “Se ele não me der a entrevista, alinhavo em cinco laudas tudo isto que ele está
dizendo, resolvo o problema”.
Graciliano continuou:
– Os escritores brasileiros, e falo dos
ficcionistas de agora e mesmo os do passado, podem no meu entender ser
divididos em duas categorias: os que têm uma “maneira” de escrever, e são poucos, e os que têm “jeito”, que são alguns mais numerosos. O resto é porcaria.
Provoquei:
– E Graciliano Ramos tem maneira ou jeito?
* * *
Outra lição dele, noutra
manhã. (Devo dizer que logo eu saía daqueles encontros corria a passar para o papel tudo o que ele havia
me dito: a entrevista tinha que sair de qualquer maneira). Falava-se do ofício de escrever, ele disse:
– Quem escreve deve ter todo o cuidado para a coisa não sair molhada.
Também não entendi. Ele explicou:
– Quero dizer que da página que foi
escrita não deve pingar nenhum palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano
lavado que se estira no varal.
E prosseguiu — naquela manhã estava de língua solta:
– Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Sabe como elas fazem?
– Não.
– Elas começam com uma
primeira lavada. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o
pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam, e
torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma
molhada, agora jogando a água com a mão. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa
e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de
feito tudo isso é que elas
dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro
falso, a palavra foi feita para dizer.
* * *
Certa vez fiquei com muita raiva dele, embora não a tivesse
manifestado. É que na noite anterior, lá no torreão, eu havia enfim terminado um conto que vinha
escrevendo há dias. Estava no maior entusiasmo. Levei as laudas datilografadas para
Graciliano ler e opinar. Depois da leitura, que me pareceu terrivelmente lenta,
e sem dizer uma só palavra, Graciliano foi rasgando as laudas, uma
por uma, metodicamente, até reduzir tudo a uma infinidade de pequenos
quadrados e triângulos. Eu fervi: não tinha sequer tirado uma cópia da
obra-prima. Imperturbável, sem levar em conta o meu visível
desconforto, Graciliano rasgou tudo, sem pena. Em seguida, me convidou:
– Vamos ao Mourisco.
Tomamos um cafezinho, depois do cafezinho ele
entornou um cálice de conhaque, voltamos caminhando devagar, parando nas bancas
de jornais para ler as manchetes. Falou-se de assuntos vários, nada de ele se
referir ao conto que minutos antes reduzira a farelos. E não seria eu que
ousaria no assunto, embora estivesse me roendo por dentro: “Merda, nem uma crítica,
uma observação, dizer por que não gostou, que bosta!”
Fiquei dias sem procurá-lo. Depois esqueci a tragédia,
e somente anos depois, quando voltamos a nos encontrar numa solenidade
qualquer, não me lembro qual nem onde, é que arrisquei:
– Aquele conto que você destruiu com tanto furor,
lembra-se?
– Claro que lembro.
– Era tão ruim assim?
– Uma porcaria. Tinha gerúndio demais. Gerúndio só
quando absolutamente necessário. Dos supérfluos a gente deve fugir como o diabo
da cruz.
No caso de Graciliano Ramos - e ainda hoje penso
assim - o gerúndio é que fugia (foge) dele.
IN: SILVEIRA, Joel. Na fogueira: memórias. Rio de
Janeiro: Mauad, 1998, p.281-285.
Fonte: http://graciliano.com.br/site/2013/01/jan-13-conversas-com-joel-silveira-i/
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