Separei dez contos e crônicas de vários autores que li na infância, entre os 7 e os 12 anos de idade, em velhos livros escolares que encontrei por acaso dentro de um caixote abandonado numa casa velha onde meus avós haviam morado, com o intuito de publicá-los aqui, no blog MALA DE ROMANCES.
Após
a construção da casa nova, no final da década de 1950, eles transformaram a
casa velha em depósito de quinquilharias. Lá havia de um tudo... Desde almofada
de rendas e bilros a garrafas lacradas com semente para o plantio, um paiol de
rapadura, sacas de gêneros estocadas, depósito de algodão, quarto de ferramentas,
girau para bater milho e, como já disse, um caixote cheio de livros e folhetos
de cordel, em cima do caixão da farinha, onde as gatas costumavam parir seus
filhotes.
Foi
justamente neste caixote cheio de papéis que uma delas resolveu acomodar suas
crias. Procurando esses gatinhos deparei-me com um verdadeiro tesouro literário
que, sem exagero, foi a base de minha carreira como poeta e escritor. Eis uma crônica muito marcante que li nesse período, num livro escolar, que me causou uma
profunda impressão sobre a pobreza e a orfandade: O brinquedo roubado, do
maranhense Humberto de Campos (Miritiba-MA, 1886 – Rio de Janeiro-RJ, 1934):
O brinquedo roubado
Humberto de Campos
(Extraído de Memórias, 1933)
A
nossa mudança de Miritiba, onde meu pai era tudo e não nos faltava nada, para
Parnaíba, onde éramos nada e nos faltava tudo, começou a influir, muito cedo,
na formação do meu caráter. Eu reconhecia intimamente a inferioridade da minha
condição. No meio de primos que possuíam pai, e cujo pai os podia cercar do
necessário e do supérfluo, doía-me o tratamento que me davam, quando era
encontrado sozinho, e que se modificava um pouco na presença de minha mãe. Eu
era um menino feio, retraído, desconfiado. Nada, em mim, atraía a simpatia
alheia. E como não havia um espírito estranho e inteligente que procuras se
estabelecer o contacto do meu coração com o mundo, ia se formando na minh’alma
um surdo sentimento de revolta, uma queixa amarga e silenciosa, contra as
desigualdades estabelecidas pelo Destino.
Foi
a noção dessa inferioridade clamorosa que me levou à prática do primeiro ato
reprovável, em que o castigo severo contribuiu, apenas, para fixar no meu
espírito a extensão daquela injustiça.
Eu
fui um menino que não possuía, parece, jamais, um brinquedo delicado. É
provável que meu pai, nas suas viagens ao Maranhão, me levasse alguma lembrança
desse gênero. Mas eu perdi aos seis anos, e, depois órfão, minha mãe não podia
dispender qualquer quantia, mesmo insignificante, com uma gaita, um boneco ou
um pandeiro. No meu aniversário, ou no da minha irmã, seu brinde consistia em
servir o nosso almoço fora da mesa, improvisando um “banquete” sobre um caixão
de querosene, coberto com uma toalha de rosto. Nesse dia, comíamos em pires,
elevados à condição de pratos da nossa festa. Certa vez houve, mesmo, um pouco
de “vinho”, preparado com água, vinagre e açúcar, e que enchia um pequeno
vidro, dos de Xarope de Cambará. Minhas distrações de infância, desde que
chegamos a Parnaíba, limitavam-se a frutos de jatobá, em que eu punha pernas e
chifres para a formação de boiadas; à fabricação de arapucas para apanhar as
rolas mariscadeiras do quintal; e à de papagaios de papel, que eram o maior
encanto das minhas tardes vadias, ás vezes, quando encontrava um lápis ao
alcance da mão, transformava-me em desenhista e, deitado no chão, pintava em
cada tijolo do alpendre uma paisagem, ordinariamente uma casa com algumas
árvores à frente ou ao lado, e uma estrada tortuosa que lhe terminava à porta.
Houve, também, uma época, dos oito aos dez anos, em que os meus cuidados se
voltaram para os carretéis de linha. Cheguei a possuir cerca de duzentos,
brancos uns, pretos outros. Constituíam dois exércitos comandados pelos generais,
que eram os carretéis maiores. Punha-os em forma, alinhava-os militarmente para
a batalha, e, com um limão, derrubava-os a tiro de artilharia, ora de um lado,
ora de outro. Entre esses carretéis alguns havia que eram verdadeiros heróis:
entravam em seis ou sete combates seguidamente, e não caíam. O limão
respeitava-os como as granadas a Bonaparte. Se há um Cornélio Nepote no mundo
dos carretéis vazios, alguns dos meus devem ter o seu nome na história dos
grandes capitães. Terminadas, porém, as lutas a que os submetia, eu enfiava os
meus dois exércitos em um barbante e pendurava-os nuns pregos do alpendre.
Fazia, em suma, com os meus soldados, o que fazem com os seus os políticos,
depois de servidos... Todos meus brinquedos eram, como se vê, brinquedos de
menino pobre. Nenhum vinha da loja.
É de
imaginar, pois, o alvoroço íntimo que me assaltou quando, um dia, tive sob os
olhos uma caixa de brinquedos. Eu devia ter oito anos e estava, com minha mãe,
em visita, na casa de um dos meus tios, quando, uma tarde, mandaram pedir no
estabelecimento comercial de Pires Almeida & Cia, que ficava próximo,
alguns brinquedos, para escolher. Haviam chegado do Maranhão algumas dúzias
deles, e todas as crianças afortunadas tinham tido notícia do acontecimento. A
criada voltou com a encomenda e foi deslumbrado que vi abrir-se a caixa
maravilhosa. Eram pequenos brinquedos de lata, pintados de azul, de amarelo, de
verde ou de vermelho: carruagens, bondes, locomotivas, navios — um sortimento
capaz de revolucionar Liliput. Custava 400 réis cada um.
Olhos
ávidos, coração batendo forte, eu vi passarem dois brinquedos daqueles para as
mãos venturosas da minha prima e do meu primo pequeno. Ninguém se lembrou de
mim. Ninguém se apercebeu da minha tristeza, ao ver-me esquecido. Ninguém viu
que ali estava um menino órfão, mas infeliz que as outras crianças, e que, por
isso mesmo, precisava, mais que as outras, de uma esmola de alegria. Escolhidos
os dois brinquedos, fechou-se a caixa, que a rapariga deixou sobre uma cadeira
da sala de jantar, enquanto ia no interior da casa.
Quando
ela saiu para ir à loja com a sua carga preciosa, eu a acompanhei. Não sei se
eram os outros brinquedos que me atraíam ou se era o remorso, a consciência de
culpa, que me arrastava. Ia como um autômato. Ia como quem marcha solto, mas
sem poder fugir, para o lugar em que se levanta o patíbulo. Chegados á loja, o
comerciante derramou a caixa de brinquedos sobre o balcão.
—
Ficaram com dois, — informou a criada, entregando os oitocentos réis.
—
Dois, não; três... — declarou o dono da loja.
Recontou
os brinquedos e insistiu:
—
Falta um... Diga lá que falta um...
Voltamos.
O coração batia-me como se quisesse vir à boca tomar fôlego. Eu devia estar
lívido, transfigurado. A rapariga deu o recado à minha tia. E todos os olhos se
voltaram, de pronto, para o menino órfão.
Não
me recordo, hoje, que foi o que aconteceu. Entreguei o brinquedo, um pequenino
carro pintado de vermelho, que havia escondido atrás de uma porta. Apanhei, com
certeza, a minha surra. Fui apontado, sem dúvida, ás crianças felizes e que
tinham pai, como um menino mau, e de costumes tristes. E o brinquedo foi
restituído ao comerciante, com a declaração de que havia caído sobre um tapete,
no momento de abrir a caixa.
Foi
esse, na minha vida de criança, o único brinquedo bonito, e de loja, que
possuía. Posse criminosa e precária. Alegria misturada de sofrimento, e que
durou um instante. Contentamento íntimo que terminou em humilhação ostentosa.
Festa de alma que se tornou agonia.
E
que tem sido para mim, pelo resto da vida, a felicidade, senão um brinquedo
roubado, que eu escondo, que dissimulo assustadoramente no coração, e que, no
entanto, descobrem, e me tomam, quando custaria tão pouco me deixarem com ele.
* * *
Biografia
do autor
Humberto
de Campos Veras (1886-1934) foi um escritor, jornalista e político brasileiro.
Escreveu crônicas, contos, ensaios, poemas e crítica literária. Foi eleito para
a cadeira nº 20 da Academia Brasileira de Letras.
Humberto
de Campos Veras (1886-1934) nasceu em Muritiba (hoje Humberto de Campos), no
Maranhão, no dia 25 de outubro de 1886. Filho de Joaquim Gomes de Farias Veras,
pequeno comerciante, e de Ana de Campos Veras ficou órfão de pai com sete anos
de idade e mudou-se com a família para São Luís, onde se empregou no comércio.
Com 17 anos passa a residir no Pará, onde consegue um lugar de colaborador e
redator na Folha do Norte e depois na Província do Pará.
Em
1910 publicou seu primeiro livro, uma coletânea de versos, intitulado “Poeira”.
Em 1912 muda-se para o Rio de Janeiro. Emprega-se no jornal “O Imparcial”, onde
trabalhavam como redatores importantes escritores, entre eles, Rui Barbosa,
Vicente de Carvalho, José Veríssimo, entre outros. Começa a se destacar no meio
literário.
Nessa
época, com o pseudônimo de Conselheiro XX, assina diversos contos e crônicas,
que foram publicadas em jornais das principais capitais brasileiras, hoje
reunidos em vários volumes. Assinava também com os pseudônimos de Almirante, João
Caetano, Giovani Morelli, Justino Ribas, Micromegas, entre outros. Em 1918
publica seu primeiro livro de prosa “Seara de Booz”, onde reúne pequenos
artigos escritos sob o pseudônimo de Micromegas. No dia 30 de outubro de 1919 é
eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Em
1920, Humberto de Campos ingressa na política elegendo-se Deputado Federal,
pelo estado do Maranhão, tendo seu mandato renovado sucessivas vezes, até que
perdeu seu mandato quando o Congresso foi dissolvido durante a Revolução de 30.
É então nomeado inspetor de ensino e Diretor interino da Fundação Casa de Rui
Barbosa, pelo Governo Provisório, instalado no país.
Em
1928, Humberto foi diagnosticado com hipertrofia da hipótese. Em 1933, com a
saúde já abalada publicou o livro que se torou o mais importante de sua obra,
“Memórias”, onde reúne suas lembranças dos tempos da infância e juventude. A
obra foi bem recebida pela crítica e pelo público, sendo reeditada diversas
vezes.
Humberto
de Campos escreveu poesias, contos, ensaios, crônicas e anedotas. Inovou na
crônica, adicionando novos elementos. Tinha um estilo fácil, corrente, escrevia
com naturalidade e de fácil compreensão. Ao adoecer, muda seu estilo, de mordaz
e cômico, passa a ser piedoso e compreensivo e sai em defesa dos menos favorecidos.
Humberto
de Campos faleceu no auge de sua popularidade. Boa parte de sua obra foi
publicada nos anos seguintes a sua morte. Entre suas obras destacam-se: Poeira, poesia (2 séries 1910 e 1917), A Serpente de Bronze, contos (1921), Carvalhos e Roseiras, crítica (1923), Alcova e Salão, contos (1927), O Brasil Anedótico, anedotas (1927), Antologia da Academia Brasileira de Letras
(1928), Memórias (1933), À Sombra das Tamareiras, contos (1934), Memórias Inacabadas (1935), Últimas Crônicas (1936), Diário Secreto (1954), entre outros.
Humberto
de Campos faleceu no Rio de Janeiro, no dia 5 de dezembro de 1934.
Fonte: www.ebiografia.com
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