Cantoria - xilogravura de José Costa Leite
O HUMOR NA
CANTORIA – LUIZ ANTÔNIO
Por: Arievaldo Viana
Luiz Antonio foi um dos
cantadores mais espirituosos que conheci. Chamava-se, na verdade, Luiz Gonzaga
da Silva e nasceu aos 28 de novembro de 1939, em Vista Serrana-PB. Faleceu em
2009, em Mossoró-RN onde residia. Ali presidiu por algum tempo a Casa do
Cantador do Oeste Potiguar. Sempre que eu ia àquela cidade costumava
encontrá-lo na recepção da Rádio Rural, aguardando o início do programa do
poeta Crispiniano Neto. Já idoso, nunca havia publicado um folheto de cordel.
Eu estava reunindo, na época, adaptações em versos para uma antologia composta
de contos populares recolhidos pelo eminente folclorista Luís da Câmara
Cascudo. Essa tarefa culminou com a publicação da caixa 12 contos de Cascudo em folhetos
de cordel, pela Editora Queima-Bucha, de Gustavo Luz. Coube a Luiz
Antonio adaptar o curioso conto “Couro de piolho”, que na sua versão
transformou-se em O rapaz que encheu um
saco de mentiras. Versejador
desembaraçado, fez uma adaptação brilhante do referido conto por mim indicado,
terminando por compor um dos melhores folhetos da coleção. Depois deste ainda
escreveu Um pouco da história de Jesuíno
Brilhante e O sal nosso de cada dia.
Cantando certa feita com o poeta Onésimo Maia, a cantoria começou a
fraquejar e as ofertas na bandeja foram se tornando cada vez mais escassas.
Desolado com a situação, Onésimo terminou uma estrofe dessa maneira: “Vamos parar
o baião / que está ficando ruim.” O irreverente Luiz Antônio respondeu em cima
da bucha:
— Eu
sei que cantamos ruim...
Eu reconheço a derrota,
A culpa é do seu baião
Tão doido e fora de rota
Que dá pra tirar de tempo
Até motor de Toyota.
De outra feita cantava com o saudoso Luiz Campos
(autor do famoso poema Carta a Papai Noel)
quando entrou uma mulher embriagada e espalhafatosa, prostituída ainda na adolescência, perturbando o
ambiente. Luiz Antônio não se conteve e desferiu a seguinte estrofe:
O diabo desta menina
Nunca quis ter vida boa,
Nunca foi moça na vida
Nem casou, pra ser patroa...
De menina sem-vergonha
Passou pra mulher à toa.
* * *
Portador de uma propalada feiúra, mas humorista
incorrigível brincava com a própria falta de atributos físicos que lhe negara a
natureza. Certa feita viajava de ônibus e uma velhinha começou a rodeá-lo,
querendo puxar assunto. Depois de olhar fixamente na sua cara, saiu-se com
esta:
—
Estou lhe achando parecido com uma pessoa?!...
O poeta respondeu, em cima da bucha:
—
Eu sou uma pessoa, dona!
* * *
Essa outra quem contou-me foi Crispiniano Neto,
ex-Secretário de Cultura do Rio Grande do Norte e inspirado poeta: Quando o Café Kimimo ainda era do empresário
paraibano conhecido como Pitéu, eram comuns os bingos em Mossoró. Quando o
governo os proibiu, Pitéu que tinha feito muitos deles, não se deu por vencido.
Bolou uma excelente ideia de marketing. Fez um bingo onde ninguém comprava a
cartela. Quem chegasse com dez embalagens de Café Kimimo vazias, ganhava a
cartela e ia concorrer a inúmeros prêmios. No dia marcado, lá ia o poeta tentar
a sorte. Quem sabe, um carrinho para viajar e fazer cantorias. O bingo era de
manhã. Terminou e o poeta não chegou nem perto de armar, quanto mais de bater.
Voltava a pé, pois os coletivos, diante da imensa demanda de um final de bingo,
não tinham uma vaga nem pelo amor de Deus. Já perto de casa, após andar vários
quilômetros a pé, suor empapando a camisa, cansado e morto de fome, eis que uma
vizinha lhe aborda aos berros:
—
"Seu" Luiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiz, foi pro bingo de
Pitéééééu????????
— Fui.
Respondeu o poeta num fio de voz que denotava o seu imenso cansaço e desgosto.
— E tirou
alguma cooooooisa?
— Tirei...
— O
quêêêêêêêê, "Seu" Luiz?
— Tirei o
dia pra ser besta!
Sempre houve
um certo preconceito contra o cantador de viola, sobretudo a partir da década
de 1960, quando surgiram os primeiros ecos da jovem guarda e a moçada daqui do
Nordeste passou a imitar desbragadamente as modas ditadas pela mídia do
Sudeste. Lembro de minhas tias, agarradas com revistas de fotonovelas,
suspirando por Wanderley Cardoso, Roberto Carlos e Jerry Adriani e copiando os
modelos dos vestidos das atrizes da época. Luiz Gonzaga e cantoria nem pensar! Cordel
era coisa de velho, sinônimo de atraso.
Foi nessa época que, em nome da modernidade,
resolveram dar um fim na mala de folhetos de cordel de minha avó. Primeiramente
a dita maleta foi “desterrada” para a casa velha, espécie de armazém de
quinquilharias. Deparei com a mesma totalmente empoeirada, em cima do caixão da
farinha e comecei a trazer os folhetos de volta para as gavetas dos móveis da
sala de jantar. Nesse leva-e-traz acabaram sumindo de vez, sobretudo quando
passei a estudar na cidade.
Geraldo Amâncio contou-me certa vez que quando era
um iniciante na arte da cantoria, teve de passar à cavalo por Várzea Alegre ou
Icó, juntamente com outro companheiro. Logo na entrada da cidade duas mulheres
se acotovelaram numa janela e deram o sinal para as vizinhas:
—
Olha, mulher! Lá vem dois cantadores!
Aí o mundo desabou... Dezenas de cabeças surgiram
nas janelas e começaram a rir, a fofocar e até mesmo vaiar a desafortunada
dupla de poetas. Geraldo disse, que para desconto de pecados, a mula em que
andava montado se acuou. Aí foi que a galhofa comeu de esmola.
Cena parecida aconteceu com o grande cantador
Antônio Marinho (foto ao lado). Ao passar numa calçada, com a viola a tira-colo, duas mulheres
o interpelaram e disseram:
—
O senhor é cantador?
Ante a resposta afirmativa, o poeta foi se
afastando. Porém com os ouvidos atentos, aguardando possíveis comentários. Dito
e feito, a mais velha e mais feia das duas foi logo dizendo:
—
Porque será que todo cantador é feio?
Antonio Marinho rodou nos calcanhares, dirigiu-se à
velhota e, entregando-lhe a viola disparou:
—
Pegue a viola, dona, cante!!!
Situação similar aconteceu certa feita com o poeta
Luiz Antônio. Ao deixar o modesto bairro em que residia, com viola às costas,
meia dúzia de meninos, que brincavam despreocupadamente pela rua, de cipós em
punho, começaram a imitar o som da viola em tom de deboche:
—
Tum, Tum, Tum, Tum, Tum, Tum... Nhém,
nhém, nhém, nhém, nhém, nhém...
Luiz Antônio, sem afobar-se, fitou a molecada e disparou:
—
Por quê vocês não vão dar os CUS?
Assim, mesmo no plural. Nem precisa dizer que os
meninos meteram a viola no saco e pararam imediatamente de importuná-lo.
(In Mala da cobra – Almanaque Matuto, livro inédito de
Arievaldo Viana)
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