terça-feira, 28 de janeiro de 2020

COISAS DO ARCO DA VELHA



Acervo Carlos Juaçaba

JÁ SAIU O ‘BORÓ’?

Devido o sucesso da postagem "MORREU MARIA PREÁ" (http://acordacordel.blogspot.com/2012/02/morreu-maria-prea.html), expressão genuinamente cearense, tenho pesquisado outras de igual popularidade, como "VOCÊ NÃO É BARROSO", "LEI DO CHICO DE BRITO" e "JÁ SAIU O BORÓ?" 

Pois é... Eu sou do tempo que o colega de trabalho chegava na roda de conversa, no fim do mês e perguntava: - E aí, pessoal, já saiu o BORÓ?
BORÓ – Segundo o Novo Dicionário do Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª edição revista e aumentada da editora Nova Fronteira, seria um peixe elasmobrânquio da família dos paratrigonídeos. 2. Ficha. Moeda divisionária emitida por municipalidades ou por particulares (CE).



Segundo Raimundo de Menezes (Coisas que o tempo levou – Edições Demócrito Rocha, 2000), num livro chamado “Tratadinho de Câmbio”, o professor Odorico Castelo Branco tenta explicar a origem do nome “boró” da seguinte maneira: “o povo quando dá um nome, não diz de onde o ouve; e o nome pega. Quanto ao boró, já me disseram que é, no sertão, o nome de um peixinho muito miúdo (...) Alude, portanto, às pequenas dimensões dos vales circulantes no Ceará”.
Não se sabe ao certo a origem do nome, mas, segundo historiadores dignos de crédito, como o já citado Raimundo de Menezes e Filgueira Sampaio, no fim do século XIX circularam em Fortaleza e logo em todo o Ceará os famosos “borós”. Eram espécies de vales emitidos inicialmente pela Câmara Municipal e pela Companhia de Bondes, para suprir a falta de dinheiro miúdo. Os primeiros que surgiram eram impressos, depois todo mundo passou a fazer os seus próprios borós, impressos, datilografados ou escritos à mão mesmo, até os bodegueiros. Chegou a um ponto que quase não se via mais o dinheiro propriamente dito. Quando o governo federal mandou acabar com a inovação monetária a coisa já assumia grandes proporções e muita gente que emitia borós sem ter dinheiro para resgatá-los acabou na falência. Na década de 1980, com o Estado do Ceará em uma crise financeira, o então governador, Gonzaga Mota (antecessor do Tasso Jereissati), andou reeditando o boró, com o nome sugestivo de "gonzaguetas", apelido dado pelo povo para os novos "borós". Desta vez, emitidos pelo próprio Governo do Estado, para o pagamento do funcionalismo estadual. O comércio aceitou, foram todos depois resgatados e tudo acabou bem.
Bem curioso é o caso de um proprietário de sítio, natural do Baturité, chamado Clementino Holanda, que para facilitar o pagamento dos seus assalariados emitiu borós a torto e a direito, sem ter o devido lastro. Consta que esses vales exibiam o desenho de um beija-flor. Como já era de se esperar, na época da quitação o resgate dos borós não aconteceu e o sujeito ficou completamente desacreditado. Segundo Raimundo de Menezes, até um cego pendinchão, que esmolava em Cangati, cantarolava ao pé da viola:

Eu peço por caridade
Pelo seu divino amor...
Eu só não quero boró
Que seja do “Beija-Flor”...

E mais essa outra quadrinha:

Eu peço por caridade
Pelo seu Senhor Divino,
Eu só não quero boró
Que seja do Clementino.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

MEMÓRIA DA CANTORIA



Poeta Zé Amâncio

JOSÉ AMÂNCIO DE MOURA, 

UM MESTRE DO HUMORISMO 

NAS LIDES DA CANTORIA

Quando lancei a primeira edição do meu livro ‘O Baú da Gaiatice’, em 1999, gravei uma reportagem para o programa Nordeste Rural, da TV Verdes Mares, com o repórter Aurélio Menezes, um sertanejo natural do distrito de Sapé, Limoeiro do Norte, que aproveitou o ensejo para me repassar umas glosas engraçadíssimas do seu conterrâneo José Amâncio de Moura, um dos maiores humoristas do repente.

Em 2011 tive a grata satisfação de receber um exemplar do livro “Memórias de um poeta – José Amâncio de Moura”, organizado por sua filha Ana Cristina Freitas de Moura e Maurilo Freitas. Disse-me a filha do bardo sapezista tratar-se da segunda edição da obra, que teve grande aceitação em toda a região do alto e baixo Jaguaribe, principalmente em Limoeiro do Norte, sua terra Natal. Zé Amâncio foi repentista notável, glosador inspirado e sobretudo um grande humorista. Pobre, deficiente de um pé desde a infância, nada disso o impediu de revelar ao mundo seu maravilhoso estro poético, sobretudo nas muitas cantorias que realizou e também através de programas de rádio, atuando com diversos parceiros.

Um resgate mais que oportuno, pois além dos maravilhosos versos recolhidos, há também todo um anedotário em torno do poeta que nasceu no distrito limoeirense de Sapé.

Às vezes, por pura gozação, ele fazia versos na escola de Zé Limeira, talvez até mais engraçados do que aqueles atribuídos ao bardo da Serra do Teixeira:

Com a ponta da vara de um quintal
Com um bode que berra no chiqueiro
Com um galo que cisca no terreiro
E com a ponta da tábua de um jirau
Com o som do saudoso berimbau
Com os botões da batina do vigário
Com o cós da cueca do Olegário,
Com um peba que caga no arisco,
Com as flores do altar de S. Francisco
Enfeitamos seu lindo aniversário.

Certa vez, cantando com um colega que blasonava possuir alguma riqueza, José Amâncio fez questão de expor a sua pobreza, galhofando consigo mesmo:

Na minha casa eu só tenho
Uma garrafa de gás
Uma bicicleta velha
Faltando o pneu de trás
Para quem nasceu sem nada
Já é riqueza demais.

A herança que pai deixou
Foi somente uma ceroula
Uma jumenta zambeta
E um canteiro de cebola
E mais um papagaio velho
Pra me chamar de baitola.

Certa feita, cantando no Sítio Vaca Brava, percebeu que as mocinhas do lugar eram muito dadas a namoros, gostavam de danças e não tinham o menor pejo de acompanhar os rapazes rumo aos locais mais escuros. Por sinal, duas delas passavam insistentemente pela frente da mesa onde estavam os cantadores. Vendo esta cena, Zé Amâncio não poderia deixar de registrar numa sextilha:

Essas mocinhas daqui
Gostam de salão de dança,
E acham bom agarrado
Roçando pança com pança,
Nunca vi uma Vaca Brava
Tirar novilha tão mansa.

O poeta, apesar das dificuldades da vida, jamais perdia a sua fé em Deus. Vejam que linda estrofe:

Eu me atrevo a viver
Sem viajar, sem dormir,
Sem cantar, sem divertir,
Sem jogar e sem beber.
Sem café, sem de comer,
Sustento os esforços meus
E sem os auxílios seus
Eu sei a luta enfrentar
Só não me atrevo a passar
Sem a palavra de DEUS.

Uma de suas estrofes mais notáveis, incluída (salvo engano), na Antologia de Cantadores de Otacílio Batista e Dr. Linhares é esta glosa que alude ao roubo de sua bicicleta, num dos bairros de Limoeiro do Norte:

Roubaram um pobre poeta
Além de pobre, doente,
Inda mais deficiente
Com uma perna incompleta
Levaram-lhe a bicicleta
Com pneu, câmara e catraca
Um ladrão de alma fraca,
Esse roubo não descobre
Quem rouba um poeta pobre
Vendo Jesus, mete a faca!

Em meu livro “A mala da cobra – Almanaque Matuto”, inacreditavelmente inédito, depois de quase 20 anos que foi escrito, eu faço uma ampla pesquisa sobre o anedotário cearense e o humor na cantoria e na Literatura de Cordel. Nessa obra encontra-se esta pequena homenagem ao grande humorista do Sapé:


ZÉ AMÂNCIO, O BARDO SAPEZISTA


Nascido em Sapé, distrito de Limoeiro do Norte, o cantador José Amâncio de Moura figura nas páginas de diversas antologias como um dos glosadores mais geniais e engraçados de todos os tempos. Considerado “imoral” por alguns puritanos, o aedo sapezista ainda não teve o seu valor totalmente reconhecido. Eis uma de suas tiradas mais famosas, que foi repassada pelo seu conterrâneo Aurélio Menezes, repórter do Programa Paulo Oliveira, na Verdes Mares AM: contam que certa feita, Zé Amâncio andava na companhia dos irmãos Dimas e Otacílio Batista, quando o genial autor de “Mulher Nova, Bonita e Carinhosa” saiu-se com esta:

   Vou tomar uma cachaça
Pra lembrar Manoel Chudu...”

Dimas, aproveitando a métrica perfeita da frase de Otacílio, filosofa:

“... Toda cachaça é gostosa,
Toda roupa veste o nu...”

É a deixa que Zé Amâncio esperava para aproveitar a riqueza da rima:

“... menos gravata e colete,
porque nem cobrem o cacete
nem as beiradas do c*!”

NOTA DO AUTOR - Recebemos e-mail de Maurilo Freitas informando que essa estrofe também é atribuída a outro poeta, da Paraíba. Coisas como esta são muito frequentes na cantoria, uma arte que tem a ORALIDADE como seu maior meio de expressão. É curioso notar que muitas coisas produzidas por poetas cearenses acabam sendo atribuídas a Pinto do Monteiro ou aos Irmãos Batista.

No livro do humorista Waldy Sombra “Os poetas lá de nós  Viva o Sapé nº 2”, encontram-se várias glosas do poeta, das quais pinçamos as mais engraçadas e irreverentes. No pinicar de um desafio, uma lagartixa assustada com o barulho da cantoria desprega-se do telhado e cai no meio do salão. O pequeno réptil ainda corria pelo salão quando Zé Amâncio improvisou essa sextilha:

“ - No meio dos cantadores
caiu uma lagartixa!
Tragam depressa a vassoura
Para tanger essa bicha,
É carne que não se come
É couro que não se espicha.”

Durante anos, Zé Amâncio manteve um programa de cantoria na rádio Educadora, de Limoeiro do Norte. Certa feita, tendo chegado atrasado, o locutor Maurílio Freitas o interpela ao vê-lo entrando no estúdio:

   Meu amigo Zé Amâncio
vamos cantar um poema?

O irreverente bardo do Sapé não perde tempo:

   Vá logo tirando as calças
que eu resolvo seu problema...”

Para finalizar, uma estrofe magistral registrada por Otacílio Batista e Francisco Linhares na Antologia Ilustrada dos Cantadores.  Cantando com Domingão Pereira, eis que o parceiro termina a estrofe nesses termos:

Jesus nasceu em Belém
João Batista na Judéia.

Zé Amâncio:

Felipe na Ituréia
Falava o mesmo idioma
Abraão nasceu e Ur
E Ló viveu em Sodoma,
José, Vice-Rei do Egito,
Nero tocou fogo em Roma.


(In 'Histórias que os antigos me contavam' - livro inédito de Arievaldo Vianna)


quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

MALETA DE CORDÉIS



História do Boi Leitão ou o vaqueiro que não mentia
Francisco Firmino de Paula (H. Rufino)
Editor: José Alves Pontes ; 1973

Numa cidade distante
Há muito tempo existiu
Um distinto fazendeiro
O mais rico que se viu
E tinha um jovem vaqueiro
Homem que nunca mentiu.

Também esse fazendeiro
Muitas lojas possuía
Tinha muitos empregados
Porém ele garantia
Que só aquele vaqueiro
Era sério e não mentia.

Seus amigos em palestra
Exclamavam admirados
Porque é que entre tantos
Homens nobres empregados
Somente um rude vaqueiro
É quem não causa cuidados?

Respondia o fazendeiro
— Tudo é nobre e decente,
Porém, capaz de mentir,
Digo conscientemente,
Mas Dorgival meu vaqueiro
Por forma nenhuma mente.

O conheço há muitos anos
E nunca vi ele mentir
É rude por ser vaqueiro
Mas sabe entrar e sair
Se faz uma causa errada
Nunca procura fingir.

Juntaram-se dez amigos
E mandaram o fazendeiro
Inventar uma cilada
Pra Dorgival o vaqueiro
Cair na falta, por verem
Se ele era verdadeiro.

Disse o doutor aos amigos
Nós temos que apostar
Dará vinte contos cada
Se o que diga aprovar
Perderei duzentos contos
Se a meu vaqueiro falhar.

Eu mandarei minha filha
A Dorgival seduzir
E fazer todo o possível
Dele na laço cair,
E depois veremos ele
Falar verdade ou mentir.

Concordaram e a aposta
Fecharam rapidamente
Dizendo: esperaremos
O dia conveniente
E provaremos doutor
Que o seu vaqueiro mente.


Capa de Jô Oliveira, edições Queima-Bucha, Mossoró-RN


O vaqueiro Dorgival
Morava um pouco afastado
Em uma grande fazenda
Aonde era encarregado
Ali existia um boi
Do patrão muito estimado.

O vaqueiro também tinha
Ao boi estimação
Pois era um touro bonito
O orgulho do patrão
Era da raça gigante
Lhe chamavam o “boi Leitão”.

Toda vez que o vaqueiro
O seu patrão visitava
Logo depois de saudá-lo
O doutor lhe perguntava
Pelo gado e em seguida
O boi Leitão coma estava?

O vaqueiro respondia
Nosso gado vai feliz
E o nosso boi Leitão?
— É gordo e bom de raiz
Dizia o patrão, você
Somente a verdade diz.

De formas que o patrão tinha
Muita confiança nele
O moço lá na fazenda
Cumprindo os deveres dele
Não sabia que os ricos
Estavam mexendo com ele.

Na referida fazenda
Quem quisesse ali chegar
Vindo da cidade, havia
De um rio atravessar
Tinha ali uma jangada
Pra quem quisesse passar.

O doutor chamou a filha
Disse: vá com a criada
Amanhã logo cedinho
Na fazenda da jangada
Do vaqueiro Dorgival
Se faça de namorada.

Vá lindamente vestida
Com lindos trajes vermelhos
No rio próximo à fazenda
Preste atenção meus conselhos
Vá passear e levante
A roupa até aos joelhos.

Se o vaqueiro lhe chamar
Diga: mate a boi Leitão
E tire ligeiramente
O fígado e o coração
Mande fazer um cozido
Pra comermos um pirão.

A moça chegou no rio
Pôs-se ali a passear
Com as vestes aos joelhos
Alegremente a cantar
O vaqueiro ouvindo a voz
Veio fora observar.

Dorgival vendo a donzela
Disse rindo: oh! minha santa
Me alegro em ver e ouvir
Quem assim tão linda canta
Venha pra lado de cá
Longe assim não adianta.

Respondeu ela: eu irei
Se matar o boi Leitão
E tirar ligeiramente
O fígado e o coração
Mandar fazer um cozido
Pra comermos com pirão.

O vaqueiro francamente
Deu resposta imediata
Donzela você merece
Por ser gentil e exata
Mas lhe digo: o boi Leitão
Do meu senhor não se mata.

Disse a moça: tem razão
E saiu no mesmo instante
O rapaz ficou olhando
Aquele porte elegante
Pensando naquelas pernas
De beleza fascinante.

O vaqueiro não sabia
Que aquela moça bela
Era filha de seu amo
Pois não conhecia ela
Quase não dormiu a noite
Com o pensamento nela.

Deolinda ao chegar
Em casa contou ao pai
A resposta do vaqueiro
Disse o doutor: você vai
Amanhã e o seduza
Pra ver se ele cai.

Amanhã você levante
Até as coxas o vestido
Se ele chamar, você diga
Vou se fizer meu pedido
De matar o boi Leitão
Pra comermos um cozido.

(...)

PROCURE ADQUIRIR O FOLHETO E CONHEÇA O DESFECHO DESSA HISTÓRIA!


Folheto editado pela Casa das Crianças de Olinda


domingo, 5 de janeiro de 2020

CONVERSA DE PASSAGEIRO





O TAGARELA 

(IMPRESSÕES DE VIAGEM)


Arievaldo Vianna


Estou com vontade de reunir os aforismos de Voltaire, mas receio que pareçam insossos aos nossos leitores. Isso lá é tempo de Voltaire; é tempo de palerma, não de Voltaire!

(Bobók – Fiódor Dostoiévski)

Antigamente os escritores adoravam um relato de viagens. Desde os tempos de Heródoto e Marco Polo, a narrativa de fabulosas jornadas, a descrição de países fantásticos, a descoberta de animais mitológicos, as características fascinantes de povos desconhecidos e culturas bizarras eram um prato cheio para um público ávido por novidades. Até mesmo os nossos autores consagrados do século XIX e primeira metade do século XX se pelavam por tais narrativas. Os russos narravam suas peripécias pela França, Alemanha e outros países da Europa. Os franceses e os alemães, por sua vez, descreviam as maravilhas do Novo Mundo. Os brasileiros, argentinos ou chilenos descreviam deliciados as suas viagens à França, Espanha, Inglaterra e Portugal. Ingleses falavam da Índia misteriosa e da África selvagem e assim dava-se um saudável intercâmbio entre povos e culturas através de livros, jornais e revistas, mapas e ilustrações. Tudo terminava em literatura, às vezes de bom gosto. Algumas dessas obras constituem fontes preciosas para a consulta histórica e outros se tornaram verdadeiros best-selers.

No campo da ficção quem não conhece ‘As viagens de Gulliver’, romance satírico do escritor irlandês Jonathan Swift, encarado nos dias de hoje como um clássico da literatura infanto-juvenil, embora na sua versão original contenha um profundo teor filosófico? Quem não lembra da opinião dos Houyhnhnms (cavalos) a respeito do tolo Yahoo (um hominídeo de aspecto repugnante), que guinchava desesperado ao descobrir que haviam sumido suas “pedras preciosas”, escondidas avaramente num obscuro recanto de sua jaula? Afinal, eram simples pedrinhas brilhantes, que não tinham qualquer valor prático, na opinião dos evoluídos equinos.

Mas deixemos de lado a alta literatura e tratemos de coisa mais palpável e compreensível à nossa mentalidade mediana. Nossos antepassados, pessoas simples e comuns, os velhos sertanejos de antanho, das ribeiras do Jaguaribe, do Banabuiú, do Quixeramobim ou do Canindé contentavam-se em relatar as impressões sobre a capital da província (Fortaleza) ou eventuais passeios à capital do Império e depois da República, o sempre fascinante Rio de Janeiro. Voltavam encantados com o mar, o cinema, os cafés, o comércio evoluído e os prazeres mundanos dos cassinos e rendez vous.  No século XIX e primeiras décadas do século seguinte, essas viagens eram feitas a cavalo, ou, quando muito, de trem ou navio. Duravam dias e dias, às vezes até meses. Se o viajante fosse observador e bom de conversa, voltava com assunto para uns seis meses de palestra. Ou para o resto da vida... Longe de seu núcleo familiar, no meio de gente estranha, acanhado a princípio, o sertanejo aos poucos ia perdendo a “matutice” e desfiando a sua prosa colorida, repassando e colhendo todo tipo de informações, das quais jamais se esqueceria.



Até bem pouco tempo, antes do surgimento do aparelho de telefonia celular e dos modernos “tablets” e “smartphones”, as pessoas conversavam alegremente no interior dos transportes coletivos, sobretudo nas viagens mais longas. Hoje os passageiros mais parecem um bando de autômatos, mudos, ensimesmados, agarrados aos seus brinquedinhos, rindo de forma aparvalhada das mensagens que vão surgindo na tela dos aparelhos, ou franzindo o cenho em atitude de preocupação. Pelas expressões faciais se advinha o teor da “conversa”. Outros se contentam em ver fotos, reouvir gravações do “whatsapp” ou entreter-se com “games”, como se fossem crianças de sete anos de idade. Quando se trata de uma foto ou vídeo de sacanagem, olham de rabo de olho para o passageiro do lado, com um sorriso maroto de menino safado. As mulheres, geralmente, fazem centenas de “selfies”, fotografam as nuvens, os momentos da decolagem e da descida da aeronave, retocam a maquiagem usando a câmera do celular como espelho e, entediadas, repassam coleções imensas de roupas e sapatos que já compraram ou pretendem adquirir.

Tendo dobrado o cabo de meio século de existência, andarilho que sou desde a infância, me considero um viajante de outros tempos. Avesso à semiescravidão provocada por essas tecnologias, geralmente entro mudo e saio calado dos transportes, não por falta de assunto, mas de alguém disposto a encetar uma conversa proveitosa. Com o passar dos tempos fui me desabituando de conversas e hoje me surpreendo quando alguém me dirige a palavra, mesmo que seja uma pergunta trivial. Procuro ser breve nas respostas, para não melindrar os demais passageiros, que se mostram visivelmente incomodados quando alguém quebra o silêncio da viagem. Hoje as pessoas só querem saber da vida alheia através do “facebook”, do “twitter”, do “zap” e outros aplicativos do gênero.


Hoje em dia quem precisa de conversas para se informar? Não está aí o Google, essa maravilhosa ferramenta da tecnologia, que leva o sujeito para qualquer parte do mundo em fração de segundos, que tira todas as dúvidas e mostra fotos e vídeos de qualquer recanto da galáxia? Vivemos um tempo em que as pessoas pensam saber tudo: de política, de economia, de futebol, de religião e, principalmente da vida alheia, sobretudo das tais “celebridades”. Não é de admirar que fiquem maravilhadas diante de um desses cavilosos artefatos da tecnologia! Quanto mais palerma é o sujeito, mais sabido se acha. Esse é o tempo das "grandes certezas". Quanto mais imbecil, mais pedante, quanto mais burro, mais auto-suficiente.

Os hábitos mudaram radicalmente. A impressão que tenho é que os velhos de hoje não conversam com a mesma graça e fluência dos antigos. Convém assinalar para os leitores mais jovens, se é que esse tipo de assunto interessa a um jovem leitor, que ainda alcancei pessoas de bom papo no interior de ônibus e aviões. Fazia-se todo o trajeto trocando impressões sobre o lugar de origem, percurso e destino de cada um. E às vezes vinham à tona informações interessantes que se tornavam úteis ao objetivo da viagem, aspectos da cidade para onde cada um se destinava e até mesmo relatos autobiográficos, dependendo da evolução da conversa e do grau de intimidade que os passageiros iam adquirindo ao longo do trajeto. Muitas amizades e até namoros se concretizavam durante uma viagem.

A primeira vez que fui ao Rio de Janeiro viajei lado a lado com um velho conversador, homem cortês, lido e viajado, que me fez um interessante relato sobre a antiga capital da República, quando ali fora estudante na década de 1930. Segundo ele, recebia na época uma boa mesada de seu pai, um fazendeiro abastado das bandas do Jaguaribe, que queria fazê-lo bacharel em Direito.  A primeira viagem ele fizera de navio e havia demorado mais de dez dias. No primeiro dia, o jovem estudante só faltou botar os bofes para fora, de tão enjoado. Mas aos poucos foi se acostumando e fazendo amizade com outros passageiros. Quando chegou à “Cidade Maravilhosa”, já conhecia, de oitiva, ótimos lugares para visitar, excelentes pensões para estudantes e pontos de encontro da jovem boemia nordestina que fervilhava às pencas pelas ruas do centro histórico do Rio.

Até bem pouco tempo esse hábito de trocar informações ainda persistia. Antes dessa febre provocada pela tecnologia digital, eu coletava dados e impressões para meus textos através de conversas informais. Foi assim, por exemplo, em Porto Alegre, Barra do Ribeiro, Caxias do Sul e Pelotas, cidades do Rio Grande do Sul, quando eu estava adaptando para o Cordel contos do escritor gaúcho Simões Lopes Neto, a pedido da Editora Corag e da Câmara do Livro de Porto Alegre. Contei até com a assessoria do lendário Paixão Côrtes, o homem que serviu de modelo para a estátua do “Laçador”. Através dessas conversas, com o renomado folclorista ou mesmo com pessoas do povo, caso do motorista que nos transportou de Porto Alegre a Caxias do Sul, compreendi melhor o sotaque, o significado de algumas expressões próprias da cultura gauchesca e inteiramente desconhecidas aqui no Nordeste, além de me familiarizar com as paisagens e os hábitos alimentares daquela gente hospitaleira. Certamente que não dispensei os bons vinhos, ponto de partida para um dedo de prosa.

O Nordeste, posso dizer, já palmilhei quase que de ponta a ponta, sobretudo os Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, a maioria das vezes realizando palestras ou fazendo pesquisas sobre a cultura da nossa gente, em especial o cordel e a cantoria. E isso só é possível mediante boas conversas. O negócio é encontrar a pessoa certa onde se vai garimpar as informações. Entretanto, nas últimas viagens que tenho feito de ônibus ou de avião, a primeira providência que tomo na hora de embarcar é adquirir um bom livro ou revista para ler durante o trajeto, já que raramente se encontra alguém disposto a conversar.

* * *

Concluído o preâmbulo acima exposto, creio que é chegada a hora de entrar na história que motivou essa narrativa, uma pequena viagem que fiz de ônibus, na véspera do ano novo (passagem de 2019 para 2015), pela viação Princesa, na linha que vai de Fortaleza a Tauá. Meu destino era Madalena e embarquei no coletivo por volta de 19 horas, veículo aparentemente moderno, munido de boas poltronas reclináveis, ar-condicionado e tela digital onde se via sempre as mesmas informações sobre o trajeto, horário previsto de chegada ao destino, etc.  Tratava-se de um ônibus “executivo”, cuja cabine do motorista, sanitários e compartimento de bagagens ficava na parte de baixo e os passageiros iam empoleirados numa espécie de segundo andar, após subir uma escadinha íngreme, porém servida de corrimão de ambos os lados.

O tripulante ou comissário de bordo (não direi ‘cobrador’ porque todas as passagens já haviam sido pagas e emitidas na rodoviária), perfilou-se educadamente, de modo a ser visto por todos os passageiros, e em voz alta disse o seu nome e o do motorista, deu alguns informes sobre a viagem e disse que durante o trajeto haveria apenas uma pequena parada de cinco minutos em Canindé e uma mais longa, de vinte minutos, em Madalena, para o jantar ou lanche dos passageiros. Concluiu dizendo que chegariam em Tauá por volta das onze da noite e desceu para a cabine. Ledo engano. Mal saiu da rodoviária o pomposo transporte deu o “prego” e ficou parado mais de meia hora, nas proximidades da Lagoa do Tabapuá. Segundo o motorista, o cano da descarga havia se soltado.

Só então foi que prestei atenção no meu vizinho de poltrona. Um sujeito calvo, maior de cinquenta anos, de bermuda e camiseta, querendo insistentemente puxar papo com duas mulheres que viajavam nas cadeiras de trás.  Creio que é desnecessário dizer que ambas estavam agarradas aos seus “smartphones” e não deram a menor atenção ao sujeito, mas o cara era insistente, se pôs de joelhos na cadeira, com o corpo inteiramente voltado para as suas supostas interlocutoras, fazendo gracejos e tentando bisbilhotar o que elas viam na tela dos aparelhos. Uma delas, incomodada, perguntou se ele iria se meter no assunto delas. O bicho era duro na queda e ainda disse uns três chistes antes de se aninhar novamente na cadeira, resmungando entre os dentes, mas não muito baixo, que elas deviam ser “sapatões”, pois não gostavam de conversa de homem.

Foi então que me viu lendo um livro de contos do paraense Inglês de Souza e o meu sossego foi por água abaixo. Começou a fazer perguntas de todo tipo: quem eu era, onde morava, para onde ia, fazer o quê, em suma, tudo que lhe vinha à cabeça. Respondi alguma coisa com enfado, através de monossílabos e apaguei a lâmpada que até então usara para a leitura. Pois o sujeito foi lá e acendeu a dele, dizendo que gostava de conversar no claro! Pelas primeiras frases percebi logo tratar-se um sujeito bastante tosco, atrapalhado na colocação de pronomes, inimigo do plural e de vocabulário bastante vulgar e limitado. Mas a essa altura ele já havia acendido o pavio da conversa e não se importava se eu queria ouvi-lo ou não. Despejou a cabaça repleta de tolices, como o badalo do chocalho de uma vaca desembestada.

Disse que era da banda dos Inhamuns, mas há algum tempo trabalhava como assessor de um parente, prefeito de uma cidade do litoral cearense. E aproveitando o gancho da política, afirmou ser primo de uns três prefeitos e de uns quatro deputados, além de ser amigo de infância de mais uns cinco ou seis figurões. Após isso falou de uma temporada que vivera na Bahia, de uns tempos que morou em São Paulo e foi desfiando a sua biografia desde os primeiros anos de vida, sem que eu fizesse uma única pergunta. Apenas balançava a cabeça alguma vez, à moda lagartixa, para não parecer mal educado. O ônibus foi cortando estrada noite adentro e o camarada pôs-se a falar cada vez mais alto, até que foi interrompido pelo toque do celular, que até então havia esquecido. Era uma amante, certamente, porque o assunto foi comprido e ele pôs-se a justificar sua viagem, dizendo que iria passar o ano novo com a família, mas logo estaria de volta e já aproveitou a deixa para marcar um encontro, para quando retornasse. Assim que desligou o aparelho, acessou uma pasta de fotos e começou a me mostrar uma série de fotografias da tal mulher e de outras com quem dizia ter caso. Algumas em trajes íntimos, diga-se de passagem.





O passageiro da frente, já bastante incomodado, disse que queria dormir. O tagarela respondeu rispidamente:

― Por mim pode dormir e até roncar. Que eu saiba não é proibido conversar dentro de ônibus. Quer me “empatar” de conversar com meu amigo? Ora, ainda mais esta, era só o que faltava!

Já me tratava como amigo! O sujeito pediu então que falasse mais baixo, pelo menos, no que foi atendido algum tempo depois, após uma série de resmungos do falador inveterado. Retomando o fio da meada, ele se pôs novamente a mostrar fotos das “namoradas”, cada vez mais indecentes, dando um resumo biográfico de cada uma delas. Pelo visto o cargo de assessor do prefeito seu parente lhe rende um bom salário, pois passou a relatar uma série de farras que fazia na companhia das fêmeas de seu harém.

Felizmente as luzes da cidade de Madalena já se distinguiam na direção do sul. Me levantei da cadeira para apanhar a minha mochila, que estava no bagageiro. Percebendo que era chegado o momento da minha descida, o sujeito lamentou que não houvesse tempo para me “amostrar” as fotos de mais umas quinze “raparigas” e concluiu dizendo que agora sim, poderia dormir, porque iria dispor de duas poltronas para se acomodar. Foi um alívio para os demais passageiros.