domingo, 5 de janeiro de 2020

CONVERSA DE PASSAGEIRO





O TAGARELA 

(IMPRESSÕES DE VIAGEM)


Arievaldo Vianna


Estou com vontade de reunir os aforismos de Voltaire, mas receio que pareçam insossos aos nossos leitores. Isso lá é tempo de Voltaire; é tempo de palerma, não de Voltaire!

(Bobók – Fiódor Dostoiévski)

Antigamente os escritores adoravam um relato de viagens. Desde os tempos de Heródoto e Marco Polo, a narrativa de fabulosas jornadas, a descrição de países fantásticos, a descoberta de animais mitológicos, as características fascinantes de povos desconhecidos e culturas bizarras eram um prato cheio para um público ávido por novidades. Até mesmo os nossos autores consagrados do século XIX e primeira metade do século XX se pelavam por tais narrativas. Os russos narravam suas peripécias pela França, Alemanha e outros países da Europa. Os franceses e os alemães, por sua vez, descreviam as maravilhas do Novo Mundo. Os brasileiros, argentinos ou chilenos descreviam deliciados as suas viagens à França, Espanha, Inglaterra e Portugal. Ingleses falavam da Índia misteriosa e da África selvagem e assim dava-se um saudável intercâmbio entre povos e culturas através de livros, jornais e revistas, mapas e ilustrações. Tudo terminava em literatura, às vezes de bom gosto. Algumas dessas obras constituem fontes preciosas para a consulta histórica e outros se tornaram verdadeiros best-selers.

No campo da ficção quem não conhece ‘As viagens de Gulliver’, romance satírico do escritor irlandês Jonathan Swift, encarado nos dias de hoje como um clássico da literatura infanto-juvenil, embora na sua versão original contenha um profundo teor filosófico? Quem não lembra da opinião dos Houyhnhnms (cavalos) a respeito do tolo Yahoo (um hominídeo de aspecto repugnante), que guinchava desesperado ao descobrir que haviam sumido suas “pedras preciosas”, escondidas avaramente num obscuro recanto de sua jaula? Afinal, eram simples pedrinhas brilhantes, que não tinham qualquer valor prático, na opinião dos evoluídos equinos.

Mas deixemos de lado a alta literatura e tratemos de coisa mais palpável e compreensível à nossa mentalidade mediana. Nossos antepassados, pessoas simples e comuns, os velhos sertanejos de antanho, das ribeiras do Jaguaribe, do Banabuiú, do Quixeramobim ou do Canindé contentavam-se em relatar as impressões sobre a capital da província (Fortaleza) ou eventuais passeios à capital do Império e depois da República, o sempre fascinante Rio de Janeiro. Voltavam encantados com o mar, o cinema, os cafés, o comércio evoluído e os prazeres mundanos dos cassinos e rendez vous.  No século XIX e primeiras décadas do século seguinte, essas viagens eram feitas a cavalo, ou, quando muito, de trem ou navio. Duravam dias e dias, às vezes até meses. Se o viajante fosse observador e bom de conversa, voltava com assunto para uns seis meses de palestra. Ou para o resto da vida... Longe de seu núcleo familiar, no meio de gente estranha, acanhado a princípio, o sertanejo aos poucos ia perdendo a “matutice” e desfiando a sua prosa colorida, repassando e colhendo todo tipo de informações, das quais jamais se esqueceria.



Até bem pouco tempo, antes do surgimento do aparelho de telefonia celular e dos modernos “tablets” e “smartphones”, as pessoas conversavam alegremente no interior dos transportes coletivos, sobretudo nas viagens mais longas. Hoje os passageiros mais parecem um bando de autômatos, mudos, ensimesmados, agarrados aos seus brinquedinhos, rindo de forma aparvalhada das mensagens que vão surgindo na tela dos aparelhos, ou franzindo o cenho em atitude de preocupação. Pelas expressões faciais se advinha o teor da “conversa”. Outros se contentam em ver fotos, reouvir gravações do “whatsapp” ou entreter-se com “games”, como se fossem crianças de sete anos de idade. Quando se trata de uma foto ou vídeo de sacanagem, olham de rabo de olho para o passageiro do lado, com um sorriso maroto de menino safado. As mulheres, geralmente, fazem centenas de “selfies”, fotografam as nuvens, os momentos da decolagem e da descida da aeronave, retocam a maquiagem usando a câmera do celular como espelho e, entediadas, repassam coleções imensas de roupas e sapatos que já compraram ou pretendem adquirir.

Tendo dobrado o cabo de meio século de existência, andarilho que sou desde a infância, me considero um viajante de outros tempos. Avesso à semiescravidão provocada por essas tecnologias, geralmente entro mudo e saio calado dos transportes, não por falta de assunto, mas de alguém disposto a encetar uma conversa proveitosa. Com o passar dos tempos fui me desabituando de conversas e hoje me surpreendo quando alguém me dirige a palavra, mesmo que seja uma pergunta trivial. Procuro ser breve nas respostas, para não melindrar os demais passageiros, que se mostram visivelmente incomodados quando alguém quebra o silêncio da viagem. Hoje as pessoas só querem saber da vida alheia através do “facebook”, do “twitter”, do “zap” e outros aplicativos do gênero.


Hoje em dia quem precisa de conversas para se informar? Não está aí o Google, essa maravilhosa ferramenta da tecnologia, que leva o sujeito para qualquer parte do mundo em fração de segundos, que tira todas as dúvidas e mostra fotos e vídeos de qualquer recanto da galáxia? Vivemos um tempo em que as pessoas pensam saber tudo: de política, de economia, de futebol, de religião e, principalmente da vida alheia, sobretudo das tais “celebridades”. Não é de admirar que fiquem maravilhadas diante de um desses cavilosos artefatos da tecnologia! Quanto mais palerma é o sujeito, mais sabido se acha. Esse é o tempo das "grandes certezas". Quanto mais imbecil, mais pedante, quanto mais burro, mais auto-suficiente.

Os hábitos mudaram radicalmente. A impressão que tenho é que os velhos de hoje não conversam com a mesma graça e fluência dos antigos. Convém assinalar para os leitores mais jovens, se é que esse tipo de assunto interessa a um jovem leitor, que ainda alcancei pessoas de bom papo no interior de ônibus e aviões. Fazia-se todo o trajeto trocando impressões sobre o lugar de origem, percurso e destino de cada um. E às vezes vinham à tona informações interessantes que se tornavam úteis ao objetivo da viagem, aspectos da cidade para onde cada um se destinava e até mesmo relatos autobiográficos, dependendo da evolução da conversa e do grau de intimidade que os passageiros iam adquirindo ao longo do trajeto. Muitas amizades e até namoros se concretizavam durante uma viagem.

A primeira vez que fui ao Rio de Janeiro viajei lado a lado com um velho conversador, homem cortês, lido e viajado, que me fez um interessante relato sobre a antiga capital da República, quando ali fora estudante na década de 1930. Segundo ele, recebia na época uma boa mesada de seu pai, um fazendeiro abastado das bandas do Jaguaribe, que queria fazê-lo bacharel em Direito.  A primeira viagem ele fizera de navio e havia demorado mais de dez dias. No primeiro dia, o jovem estudante só faltou botar os bofes para fora, de tão enjoado. Mas aos poucos foi se acostumando e fazendo amizade com outros passageiros. Quando chegou à “Cidade Maravilhosa”, já conhecia, de oitiva, ótimos lugares para visitar, excelentes pensões para estudantes e pontos de encontro da jovem boemia nordestina que fervilhava às pencas pelas ruas do centro histórico do Rio.

Até bem pouco tempo esse hábito de trocar informações ainda persistia. Antes dessa febre provocada pela tecnologia digital, eu coletava dados e impressões para meus textos através de conversas informais. Foi assim, por exemplo, em Porto Alegre, Barra do Ribeiro, Caxias do Sul e Pelotas, cidades do Rio Grande do Sul, quando eu estava adaptando para o Cordel contos do escritor gaúcho Simões Lopes Neto, a pedido da Editora Corag e da Câmara do Livro de Porto Alegre. Contei até com a assessoria do lendário Paixão Côrtes, o homem que serviu de modelo para a estátua do “Laçador”. Através dessas conversas, com o renomado folclorista ou mesmo com pessoas do povo, caso do motorista que nos transportou de Porto Alegre a Caxias do Sul, compreendi melhor o sotaque, o significado de algumas expressões próprias da cultura gauchesca e inteiramente desconhecidas aqui no Nordeste, além de me familiarizar com as paisagens e os hábitos alimentares daquela gente hospitaleira. Certamente que não dispensei os bons vinhos, ponto de partida para um dedo de prosa.

O Nordeste, posso dizer, já palmilhei quase que de ponta a ponta, sobretudo os Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, a maioria das vezes realizando palestras ou fazendo pesquisas sobre a cultura da nossa gente, em especial o cordel e a cantoria. E isso só é possível mediante boas conversas. O negócio é encontrar a pessoa certa onde se vai garimpar as informações. Entretanto, nas últimas viagens que tenho feito de ônibus ou de avião, a primeira providência que tomo na hora de embarcar é adquirir um bom livro ou revista para ler durante o trajeto, já que raramente se encontra alguém disposto a conversar.

* * *

Concluído o preâmbulo acima exposto, creio que é chegada a hora de entrar na história que motivou essa narrativa, uma pequena viagem que fiz de ônibus, na véspera do ano novo (passagem de 2019 para 2015), pela viação Princesa, na linha que vai de Fortaleza a Tauá. Meu destino era Madalena e embarquei no coletivo por volta de 19 horas, veículo aparentemente moderno, munido de boas poltronas reclináveis, ar-condicionado e tela digital onde se via sempre as mesmas informações sobre o trajeto, horário previsto de chegada ao destino, etc.  Tratava-se de um ônibus “executivo”, cuja cabine do motorista, sanitários e compartimento de bagagens ficava na parte de baixo e os passageiros iam empoleirados numa espécie de segundo andar, após subir uma escadinha íngreme, porém servida de corrimão de ambos os lados.

O tripulante ou comissário de bordo (não direi ‘cobrador’ porque todas as passagens já haviam sido pagas e emitidas na rodoviária), perfilou-se educadamente, de modo a ser visto por todos os passageiros, e em voz alta disse o seu nome e o do motorista, deu alguns informes sobre a viagem e disse que durante o trajeto haveria apenas uma pequena parada de cinco minutos em Canindé e uma mais longa, de vinte minutos, em Madalena, para o jantar ou lanche dos passageiros. Concluiu dizendo que chegariam em Tauá por volta das onze da noite e desceu para a cabine. Ledo engano. Mal saiu da rodoviária o pomposo transporte deu o “prego” e ficou parado mais de meia hora, nas proximidades da Lagoa do Tabapuá. Segundo o motorista, o cano da descarga havia se soltado.

Só então foi que prestei atenção no meu vizinho de poltrona. Um sujeito calvo, maior de cinquenta anos, de bermuda e camiseta, querendo insistentemente puxar papo com duas mulheres que viajavam nas cadeiras de trás.  Creio que é desnecessário dizer que ambas estavam agarradas aos seus “smartphones” e não deram a menor atenção ao sujeito, mas o cara era insistente, se pôs de joelhos na cadeira, com o corpo inteiramente voltado para as suas supostas interlocutoras, fazendo gracejos e tentando bisbilhotar o que elas viam na tela dos aparelhos. Uma delas, incomodada, perguntou se ele iria se meter no assunto delas. O bicho era duro na queda e ainda disse uns três chistes antes de se aninhar novamente na cadeira, resmungando entre os dentes, mas não muito baixo, que elas deviam ser “sapatões”, pois não gostavam de conversa de homem.

Foi então que me viu lendo um livro de contos do paraense Inglês de Souza e o meu sossego foi por água abaixo. Começou a fazer perguntas de todo tipo: quem eu era, onde morava, para onde ia, fazer o quê, em suma, tudo que lhe vinha à cabeça. Respondi alguma coisa com enfado, através de monossílabos e apaguei a lâmpada que até então usara para a leitura. Pois o sujeito foi lá e acendeu a dele, dizendo que gostava de conversar no claro! Pelas primeiras frases percebi logo tratar-se um sujeito bastante tosco, atrapalhado na colocação de pronomes, inimigo do plural e de vocabulário bastante vulgar e limitado. Mas a essa altura ele já havia acendido o pavio da conversa e não se importava se eu queria ouvi-lo ou não. Despejou a cabaça repleta de tolices, como o badalo do chocalho de uma vaca desembestada.

Disse que era da banda dos Inhamuns, mas há algum tempo trabalhava como assessor de um parente, prefeito de uma cidade do litoral cearense. E aproveitando o gancho da política, afirmou ser primo de uns três prefeitos e de uns quatro deputados, além de ser amigo de infância de mais uns cinco ou seis figurões. Após isso falou de uma temporada que vivera na Bahia, de uns tempos que morou em São Paulo e foi desfiando a sua biografia desde os primeiros anos de vida, sem que eu fizesse uma única pergunta. Apenas balançava a cabeça alguma vez, à moda lagartixa, para não parecer mal educado. O ônibus foi cortando estrada noite adentro e o camarada pôs-se a falar cada vez mais alto, até que foi interrompido pelo toque do celular, que até então havia esquecido. Era uma amante, certamente, porque o assunto foi comprido e ele pôs-se a justificar sua viagem, dizendo que iria passar o ano novo com a família, mas logo estaria de volta e já aproveitou a deixa para marcar um encontro, para quando retornasse. Assim que desligou o aparelho, acessou uma pasta de fotos e começou a me mostrar uma série de fotografias da tal mulher e de outras com quem dizia ter caso. Algumas em trajes íntimos, diga-se de passagem.





O passageiro da frente, já bastante incomodado, disse que queria dormir. O tagarela respondeu rispidamente:

― Por mim pode dormir e até roncar. Que eu saiba não é proibido conversar dentro de ônibus. Quer me “empatar” de conversar com meu amigo? Ora, ainda mais esta, era só o que faltava!

Já me tratava como amigo! O sujeito pediu então que falasse mais baixo, pelo menos, no que foi atendido algum tempo depois, após uma série de resmungos do falador inveterado. Retomando o fio da meada, ele se pôs novamente a mostrar fotos das “namoradas”, cada vez mais indecentes, dando um resumo biográfico de cada uma delas. Pelo visto o cargo de assessor do prefeito seu parente lhe rende um bom salário, pois passou a relatar uma série de farras que fazia na companhia das fêmeas de seu harém.

Felizmente as luzes da cidade de Madalena já se distinguiam na direção do sul. Me levantei da cadeira para apanhar a minha mochila, que estava no bagageiro. Percebendo que era chegado o momento da minha descida, o sujeito lamentou que não houvesse tempo para me “amostrar” as fotos de mais umas quinze “raparigas” e concluiu dizendo que agora sim, poderia dormir, porque iria dispor de duas poltronas para se acomodar. Foi um alívio para os demais passageiros.






2 comentários:

  1. Um ótimo instantâneo dos dias atuais, em que o individualismo exarcebado invade os limites da boa convivência. Umberto Eco: Sim, eu acho que usuários compulsivos de celulares deveriam ser estrangulados ao nascer, mas não é todo dia que surge um Herodes. E, mesmo se puníssemos essas pessoas na idade adulta, elas provavelmente nunca entenderiam a profundeza do abismo no qual caíram. No final, elas persistiriam em seu hábito irritante independentemente do que fizéssemos.

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    1. Interessantíssimo esse comentário de Umberto Eco. Hoje em dia quem precisa de conversas para se informar? Não está aí o Google, essa maravilhosa ferramenta da tecnologia, que leva o sujeito para qualquer parte do mundo em fração de segundos, que tira todas as dúvidas e mostra fotos e vídeos de qualquer recanto da galáxia? Vivemos um tempo em que as pessoas pensam saber tudo: de política, de economia, de futebol, de religião e, principalmente da vida alheia, sobretudo das tais “celebridades”. Não é de admirar que fiquem maravilhadas diante de um desses cavilosos artefatos da tecnologia!

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