A presença do Romanceiro Popular Nordestino no teatro, no cinema e na televisão.
OS FOLHETOS
QUE INSPIRARAM
“O AUTO DA
COMPADECIDA”
Arievaldo Vianna
Ariano
Suassuna sempre admitiu que a principal fonte de inspiração de suas peças
teatrais foi a cultura popular nordestina, em especial o nosso romanceiro,
também chamado de Literatura de Cordel. O livro que o motivou a beber nessa
fonte inesgotável foi “Violeiros do Norte”, do folclorista cearense Leonardo
Mota, cuja primeira edição, de 1926, traz uma dedicatória ao pai do dramaturgo,
o então governador da Paraíba João Suassuna.
Três
dessas histórias estão contidas no livro de Leota: “O dinheiro – O testamento do cachorro”, de Leandro Gomes de
Barros, publicado em 1909; “O cavalo que
defecava dinheiro”, também de Leandro, “O
Castigo da Soberba”, atribuído a Silvino Pirauá de Lima, mas que Leota
recolheu da boca do cantador cearense Anselmo Vieira de Sousa (1867 – 1926).
Leonardo Mota, após a transcrição do poema, informa que no Cancioneiro do Norte (Tip. Minerva, Fortaleza-CE, 1903), de
Rodrigues de Carvalho, foi registrado um poema parecido com o título de “A Peleja da Alma”.
Além
dos folhetos citados, convém acrescentar, é claro, o clássico “As proezas de João Grilo”, do
pernambucano João Ferreira de Lima, que data do início da década de 1930, numa
versão de apenas 8 páginas (intitulada “As palhaçadas de João Grilo”), ampliada
posteriormente para 32 páginas pelo poeta Delarme Monteiro da Silva, a pedido
do editor João Martins de Athayde.
Embora
Mestre Ariano tenha se utilizado de muitos temas populares na elaboração de sua
peça mais famosa, estes poemas são as fontes principais.
O
primeiro ato, em que João Grilo inventa um testamento quando o padre se recusa
a benzer o cachorro da mulher do padeiro, foi baseado no folheto O Dinheiro ou O Testamento do Cachorro,
de Leandro Gomes de Barros. Há um exemplar desse folheto, datado de 1909, no
acervo da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Link para cópia digitalizada:
Capa: Klévisson Vianna
É
interessante notar como o poeta satiriza o sotaque do inglês, proprietário do
dito cachorro. Leandro conviveu de perto com eles, pois revendia seus folhetos
nos trens da estrada de ferro Great
Western.*
(...)
Um inglês tinha um
cachorro
De uma grande
estimação
Morreu o dito cachorro
E o inglês disse
então:
― Mim enterra esse
cachorro
Inda que gaste um
milhão
Foi ao vigário, lhe
disse:
― Morreu cachorra de
mim
E urubu do Brasil
Não poderá dar-lhe fim
― Cachorro deixou
dinheiro?
Pergunta o Vigário
assim...
― Mim quer enterrar
cachorra!
Disse o vigário: ― Oh!
Inglês!
Você pensa que isto
aqui
É o país de vocês?
Disse o inglês: ― Oh!
Cachorra
Gasta tudo desta vez
Ele antes de morrer
Um testamento aprontou
Só quatro contos de
réis
Para o vigário deixou
Antes de o inglês
findar
O vigário suspirou
― Coitado! ― disse o
vigário,
De que morreu esse
pobre?
Que animal
inteligente!
Que sentimento mais
nobre!
Antes de partir do
mundo
Fez-me presente do
cobre
Leve-o para o
cemitério
Que eu vou encomendar
Isto é, traga o
dinheiro
Antes dele se enterrar
Estes sufrágios fiados
É factível não salvar.
* Sobre a Great
Western é interessante ver esse link da Fundação Joaquim Nabuco: http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=268
O Cavalo que defecava dinheiro, na visão do Ilustrador Jô Oliveira
O
segundo ato é baseado na obra O Cavalo
que Defecava Dinheiro, também de Leandro, mas Suassuna transforma o cavalo
da história original em um gato. Ariano,
certamente, achou que seria mais fácil colocar um gato em cena, no palco de um
teatro, que a figura agigantada de um cavalo. Encontra-se nesse folheto também
o enredo da rabeca mágica (transformada em gaita, na peça de Ariano) que
"ressuscita" os mortos.
(...)
Aí chamou o compadre
E saiu muito avexado
Para o lugar onde
tinha
O cavalo defecado
O duque ainda
encontrou
Três moedas de cruzado.
Então exclamou o
velho:
— Só pude achar essas
três
Disse o pobre: — Ontem
à tarde
Ele botou dezesseis
Ele já tem defecado
Dez mil réis mais de
uma vez.
Enquanto ele está
magro
Me serve de mealheiro
Eu tenho tratado dele
Com bagaço de terreiro
Porém, depois dele
gordo
Não há quem vença o
dinheiro.
Disse o velho: — Meu
compadre
Você não pode tratá-lo
Se for trabalhar com
ele
É com certeza matá-lo
O melhor que você faz
É vender-me este
cavalo.
(...)
O velho muito contente
Tornou então repetir:
A rabeca já é minha
Eu preciso a possuir
Ela para mim foi dada
Você não soube pedir.
Pagou a rabeca e
disse:
― Vou já mostrar à
mulher
A velha zangou-se e
disse:
― Vá mostrar a quem
quiser
Eu não quero ser
culpada
Do prejuízo que houver.
O senhor é mesmo um
velho
Avarento e
interesseiro
Que já fez do seu
cavalo
Que defecava dinheiro?
Meu velho, dê-se ao
respeito
Não seja tão
embusteiro.
O velho, que confiava
Na rabeca que comprou
Disse a ela: — Cale a
boca
O mundo agora virou
Dou-lhe quatro
punhaladas
Já você sabe eu quem
sou.
Ele findou as palavras
A velha ficou teimando
Disse ele: — Velha dos
diabos
Você inda está
falando?
Deu-lhe duas
punhaladas
Ela caiu arquejando.
O velho muito ligeiro
Foi buscar a
rabequinha
Ele tocava e dizia:
— Acorde, minha
velhinha!
Porém a pobre da velha
Nunca mais comeu
farinha.
Link para versão
digitalizada pela FUNDAJ. O nome de João Martins de Athayde aparece na capa mas
ele foi apenas editor da obra: http://digitalizacao.fundaj.gov.br/fundaj2/modules/visualizador/i/ult_frame.php?cod=1165&fbclid=IwAR3AK_AE3KPgfcbvSukfUupwLCtzOn5A00H2q5iGA1sCvG3cmgC6h0p8NOA
Desenho de Jô Oliveira
Finalmente
o terceiro ato, em que João Grilo pede ajuda à Compadecida (Nossa Senhora) para
convencer Manuel (Jesus Cristo) a não deixar o Diabo levá-lo para o inferno,
foi tirado de duas versões de um mesmo auto popular, sobre o tema medieval do
julgamento da alma, criadas por dois dos maiores cantadores de todos os tempos:
O Castigo da Soberba, do cearense Anselmo Vieira de Souza, e A Peleja da Alma,
do paraibano Silvino Pirauá de Lima. No folheto, quando a alma apela para
Virgem Maria o “Cão” se mostra aborrecido e solta essa blasfêmia: - Lá vem a
Compadecida / Mulher em tudo se mete!”
(...)
CÃO: ― Já Maria está
puxando
A coisa se desmantela
Aquilo nunca se deu
Vejam que mentira
aquela!
Eu vi que esta mulher
Todo mundo ilude ela.
Ela põe-se a esmiuçar
Puxa de diante pra
trás
Pega com tanta
pergunta
Também isso não se faz
Até aparecer coisa
Que ninguém se lembra
mais.
ALMA: ― Mãe amada, me
livrai
Das grandes rigoridade
Sei que gastei os meus
dias
Envolvido em vaidade
Mas espero ser valido
Valei-me, por
caridade!
MARIA: ― Alma, o que
tu me pediste
Eu não posso prometer
Se tivesse em penitença
Com razão eu ia ver
Mas assim é
impossível:
Te salvar, sem merecer.
ALMA: Rainha, Mãe
Amorosa
Esperança dos mortais
Quem recorre a vosso
nome
Sei que não
desamparais
Eu pegando em vossos
pés
Sei que não largo eles
mais
(In O Castigo da Soberba)
(...)
A alma viu-se apertada
De angústia e agonia
Saiu dos pés de Jesus
Para os da Virgem
Maria
Para ver se como mãe
Ela ainda o socorria.
Maria, Virgem Maria
Mãe de meu Deus
Redentor
Mãe de Deus e mãe de
Cristo
Mãe do Padre Salvador
Rogai por mim a teu
filho
Que nesta hora me
condenou!
— Alma sai-te dos meus
pés
Para que vem valer-te
de mim?
Que meu filho, reto
juiz
Não faz o que é ruim...
Lucifer se levantou
Disse: ― Alma, que
viesse ver cá?
Manuel já deu a
sentença
Maria jeito não dá,
Aquilo que Manuel faz
Não é pra Maria
desmanchar.
— Senhora, tem
compaixão
De minha necessidade
Já que o pecado roubou
A minha felicidade.
(de A Peleja da Alma)
O
personagem JOÃO GRILO é o amarelinho astucioso, originário dos contos populares
da Península Ibérica, documentados desde o século XVII. Presepeiro, astucioso e
cínico como Pedro Malasartes e Cancão de Fogo, apresenta, em sua versão
nordestina, os traços físicos das nossas crianças atingidas pela seca e a
miséria:
João Grilo foi um
cristão
que nasceu antes do
dia,
criou-se sem
formosura,
mas tinha sabedoria
e morreu depois da
hora
pelas artes que fazia.
E nasceu de sete
meses,
chorou no bucho da
mãe;
quando ela pegou um
gato
ele gritou: "não
me arranhe!
não jogue neste animal
que talvez você não
ganhe".
(...)
Porém João Grilo criou-se
pequeno, magro e
sambudo
as pernas tortas e
finas
a boca grande e
beiçudo.
No sítio onde morava,
dava notícia de
tudo....
- Veja mais em https://educacao.uol.com.br/disciplinas/cultura-brasileira/literatura-de-cordel-2-proezas-de-joao-grilo.htm
Esse
mesmo João Grilo será reaproveitado no Auto da Compadecida, transformado em
filme em 2000 por Guel Arraes, com Mateus Nachtergaele (João Grilo) e Selton
Melo (Chicó) nos papéis principais.
MAKING OFF DE 'O AUTO DA COMPADECIDA'
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