sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

O CORDEL INTERAGE

A presença do Romanceiro Popular Nordestino no teatro, no cinema e na televisão.




OS FOLHETOS QUE INSPIRARAM
“O AUTO DA COMPADECIDA”

Arievaldo Vianna


Ariano Suassuna sempre admitiu que a principal fonte de inspiração de suas peças teatrais foi a cultura popular nordestina, em especial o nosso romanceiro, também chamado de Literatura de Cordel. O livro que o motivou a beber nessa fonte inesgotável foi “Violeiros do Norte”, do folclorista cearense Leonardo Mota, cuja primeira edição, de 1926, traz uma dedicatória ao pai do dramaturgo, o então governador da Paraíba João Suassuna.

Três dessas histórias estão contidas no livro de Leota: “O dinheiro – O testamento do cachorro”, de Leandro Gomes de Barros, publicado em 1909; “O cavalo que defecava dinheiro”, também de Leandro, “O Castigo da Soberba”, atribuído a Silvino Pirauá de Lima, mas que Leota recolheu da boca do cantador cearense Anselmo Vieira de Sousa (1867 – 1926). Leonardo Mota, após a transcrição do poema, informa que no Cancioneiro do Norte (Tip. Minerva, Fortaleza-CE, 1903), de Rodrigues de Carvalho, foi registrado um poema parecido com o título de “A Peleja da Alma”.

Além dos folhetos citados, convém acrescentar, é claro, o clássico “As proezas de João Grilo”, do pernambucano João Ferreira de Lima, que data do início da década de 1930, numa versão de apenas 8 páginas (intitulada “As palhaçadas de João Grilo”), ampliada posteriormente para 32 páginas pelo poeta Delarme Monteiro da Silva, a pedido do editor João Martins de Athayde.
Embora Mestre Ariano tenha se utilizado de muitos temas populares na elaboração de sua peça mais famosa, estes poemas são as fontes principais.

O primeiro ato, em que João Grilo inventa um testamento quando o padre se recusa a benzer o cachorro da mulher do padeiro, foi baseado no folheto O Dinheiro ou O Testamento do Cachorro, de Leandro Gomes de Barros. Há um exemplar desse folheto, datado de 1909, no acervo da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Link para cópia digitalizada:



Capa: Klévisson Vianna


É interessante notar como o poeta satiriza o sotaque do inglês, proprietário do dito cachorro. Leandro conviveu de perto com eles, pois revendia seus folhetos nos trens da estrada de ferro Great Western.* 

(...)

Um inglês tinha um cachorro
De uma grande estimação
Morreu o dito cachorro
E o inglês disse então:
― Mim enterra esse cachorro
Inda que gaste um milhão

Foi ao vigário, lhe disse:
― Morreu cachorra de mim
E urubu do Brasil
Não poderá dar-lhe fim
― Cachorro deixou dinheiro?
Pergunta o Vigário assim...

― Mim quer enterrar cachorra!
Disse o vigário: ― Oh! Inglês!
Você pensa que isto aqui
É o país de vocês?
Disse o inglês: ― Oh! Cachorra
Gasta tudo desta vez

Ele antes de morrer
Um testamento aprontou
Só quatro contos de réis
Para o vigário deixou
Antes de o inglês findar
O vigário suspirou

― Coitado! ― disse o vigário,
De que morreu esse pobre?
Que animal inteligente!
Que sentimento mais nobre!
Antes de partir do mundo
Fez-me presente do cobre

Leve-o para o cemitério
Que eu vou encomendar
Isto é, traga o dinheiro
Antes dele se enterrar
Estes sufrágios fiados
É factível não salvar.

* Sobre a Great Western é interessante ver esse link da Fundação Joaquim Nabuco: http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=268

O Cavalo que defecava dinheiro, na visão do Ilustrador Jô Oliveira


O segundo ato é baseado na obra O Cavalo que Defecava Dinheiro, também de Leandro, mas Suassuna transforma o cavalo da história original em um gato.  Ariano, certamente, achou que seria mais fácil colocar um gato em cena, no palco de um teatro, que a figura agigantada de um cavalo. Encontra-se nesse folheto também o enredo da rabeca mágica (transformada em gaita, na peça de Ariano) que "ressuscita" os mortos.

(...)

Aí chamou o compadre
E saiu muito avexado
Para o lugar onde tinha
O cavalo defecado
O duque ainda encontrou
Três moedas de cruzado.

Então exclamou o velho:
— Só pude achar essas três
Disse o pobre: — Ontem à tarde
Ele botou dezesseis
Ele já tem defecado
Dez mil réis mais de uma vez.

Enquanto ele está magro
Me serve de mealheiro
Eu tenho tratado dele
Com bagaço de terreiro
Porém, depois dele gordo
Não há quem vença o dinheiro.

Disse o velho: — Meu compadre
Você não pode tratá-lo
Se for trabalhar com ele
É com certeza matá-lo
O melhor que você faz
É vender-me este cavalo.

(...)

O velho muito contente
Tornou então repetir:
A rabeca já é minha
Eu preciso a possuir
Ela para mim foi dada
Você não soube pedir.

Pagou a rabeca e disse:
― Vou já mostrar à mulher
A velha zangou-se e disse:
― Vá mostrar a quem quiser
Eu não quero ser culpada
Do prejuízo que houver.

O senhor é mesmo um velho
Avarento e interesseiro
Que já fez do seu cavalo
Que defecava dinheiro?
Meu velho, dê-se ao respeito
Não seja tão embusteiro.

O velho, que confiava
Na rabeca que comprou
Disse a ela: — Cale a boca
O mundo agora virou
Dou-lhe quatro punhaladas
Já você sabe eu quem sou.

Ele findou as palavras
A velha ficou teimando
Disse ele: — Velha dos diabos
Você inda está falando?
Deu-lhe duas punhaladas
Ela caiu arquejando.

O velho muito ligeiro
Foi buscar a rabequinha
Ele tocava e dizia:
— Acorde, minha velhinha!
Porém a pobre da velha
Nunca mais comeu farinha.

Link para versão digitalizada pela FUNDAJ. O nome de João Martins de Athayde aparece na capa mas ele foi apenas editor da obra: http://digitalizacao.fundaj.gov.br/fundaj2/modules/visualizador/i/ult_frame.php?cod=1165&fbclid=IwAR3AK_AE3KPgfcbvSukfUupwLCtzOn5A00H2q5iGA1sCvG3cmgC6h0p8NOA


Desenho de Jô Oliveira


Finalmente o terceiro ato, em que João Grilo pede ajuda à Compadecida (Nossa Senhora) para convencer Manuel (Jesus Cristo) a não deixar o Diabo levá-lo para o inferno, foi tirado de duas versões de um mesmo auto popular, sobre o tema medieval do julgamento da alma, criadas por dois dos maiores cantadores de todos os tempos: O Castigo da Soberba, do cearense Anselmo Vieira de Souza, e A Peleja da Alma, do paraibano Silvino Pirauá de Lima. No folheto, quando a alma apela para Virgem Maria o “Cão” se mostra aborrecido e solta essa blasfêmia: - Lá vem a Compadecida / Mulher em tudo se mete!”

(...)

CÃO: ― Já Maria está puxando
A coisa se desmantela
Aquilo nunca se deu
Vejam que mentira aquela!
Eu vi que esta mulher
Todo mundo ilude ela.

Ela põe-se a esmiuçar
Puxa de diante pra trás
Pega com tanta pergunta
Também isso não se faz
Até aparecer coisa
Que ninguém se lembra mais.

ALMA: ― Mãe amada, me livrai
Das grandes rigoridade
Sei que gastei os meus dias
Envolvido em vaidade
Mas espero ser valido
Valei-me, por caridade!

MARIA: ― Alma, o que tu me pediste
Eu não posso prometer
Se tivesse em penitença
Com razão eu ia ver
Mas assim é impossível:
Te salvar, sem merecer.

ALMA: Rainha, Mãe Amorosa
Esperança dos mortais
Quem recorre a vosso nome
Sei que não desamparais
Eu pegando em vossos pés
Sei que não largo eles mais

(In O Castigo da Soberba)

(...)

A alma viu-se apertada
De angústia e agonia
Saiu dos pés de Jesus
Para os da Virgem Maria
Para ver se como mãe
Ela ainda o socorria.

Maria, Virgem Maria
Mãe de meu Deus Redentor
Mãe de Deus e mãe de Cristo
Mãe do Padre Salvador
Rogai por mim a teu filho
Que nesta hora me condenou!

— Alma sai-te dos meus pés
Para que vem valer-te de mim?
Que meu filho, reto juiz
Não faz o que é ruim...

Lucifer se levantou
Disse: ― Alma, que viesse ver cá?
Manuel já deu a sentença
Maria jeito não dá,
Aquilo que Manuel faz
Não é pra Maria desmanchar.

— Senhora, tem compaixão
De minha necessidade
Já que o pecado roubou
A minha felicidade.

(de A Peleja da Alma)

O personagem JOÃO GRILO é o amarelinho astucioso, originário dos contos populares da Península Ibérica, documentados desde o século XVII. Presepeiro, astucioso e cínico como Pedro Malasartes e Cancão de Fogo, apresenta, em sua versão nordestina, os traços físicos das nossas crianças atingidas pela seca e a miséria:

João Grilo foi um cristão
que nasceu antes do dia,
criou-se sem formosura,
mas tinha sabedoria
e morreu depois da hora
pelas artes que fazia.

E nasceu de sete meses,
chorou no bucho da mãe;
quando ela pegou um gato
ele gritou: "não me arranhe!
não jogue neste animal
que talvez você não ganhe".

(...)

 Porém João Grilo criou-se
pequeno, magro e sambudo
as pernas tortas e finas
a boca grande e beiçudo.
No sítio onde morava,
dava notícia de tudo....


Esse mesmo João Grilo será reaproveitado no Auto da Compadecida, transformado em filme em 2000 por Guel Arraes, com Mateus Nachtergaele (João Grilo) e Selton Melo (Chicó) nos papéis principais.


MAKING OFF DE 'O AUTO DA COMPADECIDA'



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