quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

PAPO DE ESCRITORES



Para quem gosta de ler e, principalmente, para quem gosta de escrever, trechos das agradáveis conversas de Graciliano Ramos com o jornalista e escritor sergipano Joel Silveira:



Graciliano Ramos



Joel Silveira


GRACILIANO RAMOS
Conversas com Joel Silveira (I)

A resistência de Graciliano, fazendo corpo mole e sempre adiando o prometido, e, por outro lado, a minha determinação de arrancar dele a entrevista de qualquer maneira, acabou nos aproximando. Pelo menos duas vezes por semana lá estava eu na José Olympio, aporrinhando-o.

– ‘Seu’ Graciliano, e a entrevista?
E vinha a mesma resposta de sempre:
– Me dá mais um tempo. Ando atolado na leitura de uma montanha de originais, dezenas e dezenas de literatos que querem o “Prêmio Humberto de Campos”, aqui da José Olympio, não tenho tido tempo para mais nada, varo a madrugada. Nunca vi tanta porcaria junta. Me dê mais uns dias.
Eu dava o tempo, voltava:
– Sabe, ‘seu’ Graciliano, é que eu queria iniciar a série com a sua entrevista. Combinei isso com o Magalhães Júnior, ele concordou, e agora vive me cobrando.
Ele se esquivava:
– Bobagem. Por que começar comigo? Tem aí o Zé Lins, o Jorge, o Marques, o Lúcio (Cardoso), uma porção de outros. Comece com um deles, me deixe para o fim.
– Mas ‘seu’ Graciliano…
– E pare com esta besteira de me chamar de ‘seu’ Graciliano. Graciliano basta.

Como disse, de tantos encontros na José Olympio, acabamos amigos. Talvez fosse fantasia, mas o fato é que eu sentia de sua parte uma certa simpatia por mim, embora me tratasse com aquele jeito áspero e cru que era o seu. Algumas vezes, quando não estava ensimesmado, curtindo sozinho a sua acidez, gostava de puxar conversa, pulava de um assunto para o outro, baforando forte ou segurando entre os dedos a guimba do cigarro ordinário. Outras vezes, e eu percebia logo isso só de ver a sua carranca, não queria muita conversa, me despachava com um seco “ainda não tive tempo, vou ver se faço hoje à noite”, e nessas ocasiões eu sabia que não devia insistir, ia embora.

Uma manhã, e era sempre pela manhã que eu o procurava na livraria, lá nos fundos, território que ele fizera seu e que ninguém ousava disputar, pois, como ia dizendo, uma manhã lá estava eu a chateá-lo e mal ia entrando no assunto da entrevista, quando ele me perguntou, abrupto:

– Você sabe por que o Brasil não é e nunca será uma potência digna deste nome?
Eu não sabia:
– Pois lhe digo.
Baforou forte, continuou:
– Não será potência neste século nem nos séculos vindouros. Nunca.
– Mas por que, Graciliano? Somos um país imenso, temos três fusos horários, somos donos de mais da metade de toda a floresta amazônica, nosso subsolo, segundo dizem, é riquíssimo em minerais, temos os maiores rios do mundo e até o petróleo já começa a esguichar lá em Lobato, nas portas de Salvador.

Ele me ouvia calado, cigarro entre os dedos. Esperou que eu acabasse minha peroração ufanista, disse:

– Não adianta. Nem que fôssemos donos da maior mina de ouro do mundo, de todos os diamantes e platinas existentes na terra, nem com isso tudo seriamos uma potência. E por um simples motivo.
Por mais que forçasse a cabeça eu não podia adivinhar que motivo seria esse. Perguntei:
– Mas por que, qual o motivo? Não me ocorre nenhum.
Ele deu uma baforada, explicou:
– O motivo é simples: não temos golfo.
– Golfo?
– Exatamente. O Brasil não tem golfo. E não existe uma só potência no mundo que não tenha pelo menos um golfo. é só consultar o mapa. Estados Unidos, Rússia (apesar de comunista, ele jamais dizia União Soviética), França, Itália, Japão, todos têm golfo. E procure depois os países que não têm golfo: são todos sem importância, como é o caso do Brasil.
Naquele tempo eu cultivava um acendrado patriotismo juvenil e protestei:

– Me desculpe, Graciliano, mas você está sendo radical demais. Não posso concordar. Com este tamanhão todo e com todas suas riquezas, as que já se conhecem e as que serão conhecidas, é claro que o Brasil certamente será uma potência no futuro. Tem que haver uma solução.
Ele atalhou:
– E há.
– Qual?
– Simples. O Brasil tem que ter um golfo, fazer por conta própria o golfo que a natureza lhe negou.
Ri, pensando que ele estava pilheriando, mas a cara séria dizia o contrário.
– Repito, temos que fazer um golfo. E para isso a solução existe.
– Qual é?
– Veja você o caso de nossas respectivas terras, Alagoas e Sergipe. Para que servem Alagoas e Sergipe? Para nada, são zero à esquerda. Então, pergunto: por que não cavar Sergipe e Alagoas e no lugar fazer um golfo? O Golfo das Alagoas!
A solução era obviamente inviável, mas de qualquer maneira, atingido nos meus brios de sergipano ainda intacto, protestei:
– Por que Golfo das Alagoas? Por que não Golfo de Sergipe?
Ele desconversou:
– Isso de nome não tem importância. O importante é fazer o golfo. Para a escolha do nome, faz-se um plebiscito.

* * *

Outra história, recolhida numa daquelas manhãs, não foi nem história, mas uma lição que nunca esqueci, o que não quer dizer que a tenha aprendido. Me disse Graciliano, depois de folhear um livro qualquer, não lembro qual:
– Este cavalheiro pensa que escreve. Não escreve, escrevinha.
E continuou:
– Escrever é uma coisa, escrevinhar é outra.
E lá se foi:
– Aqui no Brasil os nossos críticos vivem a dizer que fulano tem estilo”, “o estilo de sicrano”. É Bobagem. Estilo quem tem é Stendhal, são os russos do século passado, é Dickens. Quem tem estilo aqui no Brasil? Machado, talvez.
Enquanto ele ia falando, eu me dizia: “Se ele não me der a entrevista, alinhavo em cinco laudas tudo isto que ele está dizendo, resolvo o problema”.
Graciliano continuou:
– Os escritores brasileiros, e falo dos ficcionistas de agora e mesmo os do passado, podem no meu entender ser divididos em duas categorias: os que têm uma “maneira” de escrever, e são poucos, e os que têm “jeito”, que são alguns mais numerosos. O resto é porcaria.
Provoquei:
– E Graciliano Ramos tem maneira ou jeito?
– Jeito.


Revista Vamos Ler! - Entrevista de Graciliano Ramos a Joel Silveira




* * *

Outra lição dele, noutra manhã. (Devo dizer que logo eu saía daqueles encontros corria a passar para o papel tudo o que ele havia me dito: a entrevista tinha que sair de qualquer maneira). Falava-se do ofício de escrever, ele disse:
– Quem escreve deve ter todo o cuidado para a coisa não sair molhada.
Também não entendi. Ele explicou:
– Quero dizer que da página que foi escrita não deve pingar nenhum palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal.
E prosseguiu — naquela manhã estava de língua solta:
– Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Sabe como elas fazem?
– Não.
– Elas começam com uma primeira lavada. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam, e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer.



* * *

Certa vez fiquei com muita raiva dele, embora não a tivesse manifestado. É que na noite anterior, lá no torreão, eu havia enfim terminado um conto que vinha escrevendo há dias. Estava no maior entusiasmo. Levei as laudas datilografadas para Graciliano ler e opinar. Depois da leitura, que me pareceu terrivelmente lenta, e sem dizer uma só palavra, Graciliano foi rasgando as laudas, uma por uma, metodicamente, até reduzir tudo a uma infinidade de pequenos quadrados e triângulos. Eu fervi: não tinha sequer tirado uma cópia da obra-prima. Imperturbável, sem levar em conta o meu visível desconforto, Graciliano rasgou tudo, sem pena. Em seguida, me convidou:
– Vamos ao Mourisco.
Tomamos um cafezinho, depois do cafezinho ele entornou um cálice de conhaque, voltamos caminhando devagar, parando nas bancas de jornais para ler as manchetes. Falou-se de assuntos vários, nada de ele se referir ao conto que minutos antes reduzira a farelos. E não seria eu que ousaria no assunto, embora estivesse me roendo por dentro: “Merda, nem uma crítica, uma observação, dizer por que não gostou, que bosta!”
Fiquei dias sem procurá-lo. Depois esqueci a tragédia, e somente anos depois, quando voltamos a nos encontrar numa solenidade qualquer, não me lembro qual nem onde, é que arrisquei:
– Aquele conto que você destruiu com tanto furor, lembra-se?
– Claro que lembro.
– Era tão ruim assim?
– Uma porcaria. Tinha gerúndio demais. Gerúndio só quando absolutamente necessário. Dos supérfluos a gente deve fugir como o diabo da cruz.
No caso de Graciliano Ramos - e ainda hoje penso assim - o gerúndio é que fugia (foge) dele.

IN: SILVEIRA, Joel. Na fogueira: memórias. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p.281-285.

Fonte: http://graciliano.com.br/site/2013/01/jan-13-conversas-com-joel-silveira-i/

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

KLÉVISSON VIANA nas Paginas Azuis | O Povo


"Minha arte sempre estará 

a serviço dos mais fracos"


| TRAJETÓRIA | Artista multilinguagens, o cearense Klévisson Viana relembra momentos de sua carreira e reafirma seu compromisso com a arte como canal de transformação social


Foto: Alex Gomes


"O artista nunca tá satisfeito". Assim resume Klévisson Viana quando perguntado acerca de seu metiê. Caçula de cinco irmãos, sendo todos crescidos na zona rural de Quixeramobim, o menino - de rebelde na escola a falador que só a mulher da cobra, como diz o ditado - sempre soube qual seria seu destino: "Pra quem acredita em reencarnação, não tem outra explicação. Sempre quis ser desenhista", não titubeia em dizer. O ano de 2018 serviu de mote para que o cearense celebrasse três décadas de trajetória, que lhe renderam popularidade, respeito e inúmeros prêmios.
Aos 46 anos de idade "com carinha de 30", Klévisson já perdeu a conta de quantos livros vendeu. "Mas já passou de um milhão", garante. Em entrevista ao O POVO, numa tarde do início de dezembro, concedida em sua casa - que também serve de lojinha - na Parquelândia, o escritor, quadrinista, editor, cordelista e, acima de tudo, "um contador de histórias", trouxe à tona seus primeiros rabiscos, a mudança definitiva para a capital cearense, sua Tupynanquim Editora, mas também uma certa apreensão em relação ao futuro, sobretudo da cultura.


OP - O menino Klévisson, lá em Quixeramobim, era uma exceção entre os demais por conta desse interesse pelos livros, desenhos, etc?
Klévisson Viana - Esse menino tinha uma característica: lá em casa, a gente não dispunha de material de desenho; essas coisas eram muito escassas. A gente tinha algum material dos meus irmãos - eu era o caçula de cinco. Então uma das características desse menino era ficar desenhando com o dedo. Ficava contornando as pessoas por horas ou então me deitava e ficava contornando as coisas no céu; se eu via uma paisagem, ficava sempre contornando com os dedos. Era uma coisa que, mesmo antes de eu me entender por gente, eu já queria fazer isso. Pra quem acredita em reencarnação, não tem outra explicação. Sempre quis ser desenhista. Agora o lance da poesia sempre esteve presente na minha vida porque o meu pai (Evaldo Lima, 78 anos) é agricultor e poeta. Chegava do roçado e lia literatura de cordel e declamava verso pra gente. Ele é uma enciclopédia da poesia popular, tem muito conhecimento! Nunca publicou nada, mas sempre foi uma pessoa que gostou de escrever e tem a mania de receber as pessoas sempre com estrofe. E isso é uma herança porque o avô dele, Fitico, já tinha esse costume. Então essa coisa da poesia veio do meu pai. Mas o desenho, não. Meu irmão mais velho, Ari (Arievaldo Vianna), veio muito cedo morar em Maracanaú pra estudar, mas nós não tínhamos quase contato. Então a gente desenvolveu esse gosto morando em lugares distintos. E foi uma surpresa! Uma vez ele veio de férias e chegou lá em casa com uma revista em quadrinhos do Pernalonga, e eu não sabia o que era uma história em quadrinhos. Eu conhecia alguns personagens da Disney porque, nos anos 1970, circularam os personagens numas tampinhas de refrigerante - se eu não me engano, era Pepsi, Teem e Guaraná Wilson. Televisão, a gente não sabia nem o que era! Ele chegou lá com uma história em quadrinhos e eu me apropriei e não deixei mais ele levar embora. Mas o que mais me fascinava, em se tratando de desenho, era um primo que meu pai tinha chamado Zé Miguel, que era vaqueiro, e a casa dele era aquela casa sertaneja, cheia de alpendres, mas era cheia de desenhos as paredes! Ele desenhava aquelas cenas dele do cotidiano, da lida com o gado e tal, e ele reproduzia. E todo dia, não sei por qual razão, eu fiquei indo durante algum tempo, e o que me motivava de ir à casa dele era olhar pra esses desenhos.
OP - Foi em Canindé que você completou os estudos?
Klévisson - Em Canindé, eu fui matriculado no Colégio Frei Policarpo, que ficava mais próximo da minha casa. Aí eu tinha uma dificuldade tremenda de ficar na escola. Era que nem aquela música do Raul Seixas: "Ao chegar do interior/ Inocente, puro e besta..." (risos) É porque eu era matuto demais, era selvagem demais! Então minha mãe tinha que ir e ficar me pastorando porque eu chorava... Mas isso foi só nos primeiros meses, depois eu fui me ambientando. Mas lá eu fiz até o Fundamental.
OP - Hoje em dia, o Klévisson é muita coisa: cordelista, ilustrador, quadrinista, editor, etc. Como você gosta de ser chamado? Melhor, como você gostaria de ser lembrado?
Klévisson - Como um contador de histórias. Porque eu acho que tudo que você faz que lida com a Comunicação é contação de histórias. Quando você vem aqui pra conversar comigo e quer saber da minha vida, você está querendo saber pra contar a minha história. Quando eu assisto a um filme, é uma história que está sendo contada. O objetivo da maioria das músicas é contar uma história e por aí vai.
OP - Teu primeiro cordel foi escrito ainda em Quixeramobim?
Klévisson - Não, foi em Canindé e era pra mangar dos colegas de aula. Hoje ninguém pode mais fazer isso, que é bullying. O título era A História de Zé Persival, que era um menino muito feio, mas metido a galã, paquerador. E, por sinal, tinha muita sorte com as mulheres! E o Zé Persival não envelhecia! Era uma espécie de Dorian Gray porque passou várias gerações e ele tinha a mesma cara! Eu devia ter uns 11 pra 12 anos e fiz junto com um amigo chamado Carlos Magno, que virou policial depois.
OP - Você bebe em quais fontes? De onde vem a inspiração?
Klévisson - Minha inspiração é o cotidiano, são as pessoas... Eu tenho uma facilidade muito grande de conversar com as pessoas de todos os níveis sem enquadrar ninguém dentro de uma fôrma. Pra mim, tanto faz o presidente da República como o varredor da rua: pra mim tem o mesmo grau de importância. Aliás, eu gosto mais de tratar as pessoas mais humildes com mais atenção porque eu acho que são elas as que mais precisam da atenção da gente. Tem uma frase do Belchior - pra mim, o maior poeta urbano do Nordeste - que eu gosto muito que diz: "Meu amor pelos humildes não me deixará mentir". Gosto muito porque o poder passa, né, mas essas pessoas, elas têm uma sabedoria que é pra vida toda. E a gente aprende muito com elas.
OP - Como é a tua rotina? Todo dia você desenha, escreve...?
Klévisson - Tu acredita que eu não sou um desenhista aficionado por desenho?! Eu só desenho quando tem um objetivo. Eu nunca fui um artista experimental, de ficar rabiscando sem necessidade. Só faço um trabalho quando há um destino, uma demanda. Aí eu sento e faço. Senão, eu passo um mês, dois, três, sem lembrar nem que existe! E outra coisa: mesmo que eu não esteja desenhando, eu estou aprendendo porque gosto muito de ler, de ver histórias em quadrinhos.
OP - Em que momento surgiu a Tupynanquim Editora?
Klévisson - Eu sempre fui editor. Quando eu trabalhava lá em Canindé, já fazia essas revistas por conta própria, já editava e tudo... Aliás, é algo que eu sempre quis fazer na vida, mesmo quando não entendia qual era o papel do editor, já brincava de fazer isso. Já fiz muito trabalho de encomenda e de coisas 'nada a ver'. De 1996 a 1999, fiz 45 livros pra Unicef; fiz muita coisa pra Governo, pra Escola de Saúde Pública, muita cartilha... Mas tenho também textos em prosa e tenho um livro de fábulas inédito pra publicar, que também é em prosa. Eu trabalhava no jornal O POVO e fiquei cinco anos lá. Eu digo que fiquei cinco anos, mas tô ligado à empresa até hoje. Porque eu continuo como autor até hoje, da Fundação Demócrito Rocha e da Editora Dummar, com vários títulos publicados. A Tupynanquim, ela é de 1995 pra cá. Tem 23 anos... Quando eu trabalhava no O POVO, eu já tinha o logotipo da Tupynanquim dentro da minha gaveta porque eu já estava me preparando pra, no dia que eu saísse do jornal, fazer um trabalho editorial.
OP - Mas a tua editora também serve como um canal para que escritores de primeira viagem que não têm por onde publicar...
Klévisson - Sim, muitos! E não só os de primeira viagem, como muitos consagrados também. Porque, além de publicar os meus próprios trabalhos, eu publico de mais uma centena de autores. O Bule-Bule, de uns 15 anos pra cá, praticamente quase tudo que ele publicou foi por meu intermédio.
OP - Teu trabalho, então, já se encontra em quantos países?
Klévisson - Bastantes! Eu comecei a participar dos salões internacionais de humor como cartunista e participei na Bélgica, Turquia, Holanda, Itália, Israel e têm também os livros que trazem ensaios sobre o meu trabalho. Porque eu já ganhei todos os prêmios importantes que uma pessoa poderia ter ganhado nessas duas áreas que eu atuo. Mas a maior premiação que eu tenho não é essa: é o fato de ter leitores. Porque eu já vendi mais de 1,2 milhão de livros - e eu não tô contando os cordéis, só os livros! Só o Lampião... Era o Cavalo do Tempo Atrás da Besta da Vida (Ed. Hedra, 2006) vendeu 500 mil exemplares porque ele ganhou vários prêmios seguidos.
OP - Como tu analisa essa crescente onda de intolerância, não só em termos de religião, mas também de gênero e, mais especificamente, em relação a nós, nordestinos? É assunto que tem servido de tema para os cordéis que você escreve ou edita?
Klévisson - Eu gosto sempre de ficar do lado mais fraco. Não tenho nenhum fascínio em ter poder pelo poder. Pra mim, o poder só faz algum sentido se for pra tornar o mundo um pouco menos ruim do que já é. Essa onda de intolerância é, sem dúvida alguma, um fenômeno mundial e o Brasil é um país muito hipócrita. Estamos vivendo um "mundo-cão". Aqui as pessoas fingiam tolerar negros, nordestinos, homossexuais... E, sobretudo, pobres. Mas bastou alguém com características preconceituosas ascender ao poder pra que uma parcela significativa da população deixasse cair sua máscara de tolerante e passasse a cometer os maiores absurdos, as maiores atrocidades. Nesse momento, infelizmente, estão achando que podem tudo! Atirar em mendigos, trucidar animais por puro sadismo, matar negros e homossexuais, invadir templos religiosos e destruir os objetos de culto. A minha arte sempre estará a serviço e em defesa dos mais fracos, dos oprimidos, dos excluídos. E como editor tenho muito interesse em publicar material que possa vir a contribuir para melhorar essa situação. Muitos poetas têm escrito trabalhos em defesa dos excluídos e eu tenho vários trabalhos nessa linha, sobretudo em defesa das crianças, dos pobres, do meio-ambiente e dos animais.



OP - Em que patamar se encontra o Ceará dentro desse universo da literatura de cordel em relação ao Brasil e até mesmo o restante do mundo?
Klévisson - Olha, o Ceará tem a maior quantidade de poetas em atividade. Em termos de quantidade e qualidade, não tem nenhum outro lugar do Brasil que se produza tanto quanto o Ceará e, em especial, Fortaleza. Pra você ter uma ideia, hoje nós temos uma média de uns 10 poetas de renome nacional e até internacional, e a maioria da zona rural do Ceará (Quixadá, Limoeiro, etc). Mas que residem em Fortaleza e muitos desses eu tive a felicidade de lançá-los, como o Rouxinol do Rinaré, o Evaristo Geraldo da Silva (irmão do Rouxinol), a própria filha dele, a Juliane Oliveira... Porque a literatura de cordel tem essas coisas: é a família de poetas. Lá em casa, todo mundo se quisesse escrever, escreveria. Sempre fui uma criança muito inventiva porque eu não tinha brinquedos. O estado de pobreza era tão grande que eu acho que o único brinquedo que eu possuí foi um cavalinho de talo de carnaúba. Era gado (feito) de osso... E ouvia Histórias de Trancoso, Histórias de Camões...
OP - Hoje em dia, quais os autores nos quais você mais se espelha?
Klévisson - Vou lhe dizer uma coisa: os autores que eu mais gosto são os que eu menos copio. Adoro o Ziraldo porque tudo que ele se meteu a fazer foi extraordinário! Nos quadrinhos, por exemplo, tem um autor brasileiro que é considerado o maior de quadrinhos do País, que é o Flávio Colin. Outro é o Shima (Júlio Shimamoto) que, dessa geração dele, é o único que ainda está vivo, eu acho. Ele é descendente de samurais. Outra figura extraordinária é o Mendes, Mário de Oliveira Mendes. Foi um caricaturista famoso no mundo inteiro, que é natural aqui de Baturité, e fez vários cartões pra Unesco, Unicef... Foi homenageado no mundo inteiro, mas nunca havia sido lembrado no Estado porque o Ceará sequer lembrava que ele era daqui! Aí eu trouxe o Mendez, mais o Tarcísio Matos, e fizemos o Salão Nacional de Humor de Fortaleza, na AABB, em 1991 e 1992. Trouxemos grandes mestres: o Jaguar teve conosco, o Paulo Caruso, o Amorim (d'O Pasquim), e o Mendez, nós fizemos uma baita exposição com ele e o trouxemos velhinho - tinha sofrido um derrame, mas estava lúcido - e o homenageamos. Então eu tive felicidade, tanto na área dos quadrinhos, da caricatura, do humor gráfico, quanto do cordel, a primeira coisa que eu fiz foi me aproximar dos mestres porque eu duvido que alguém possa evoluir sem tomar bênção a essas pessoas. É impossível um artista progredir sem reverenciar os mestres e sem procurar conhecer a obra deles.



OP - Até porque os mestres estão morrendo.

Klévisson - Exatamente! E eu sou responsável, sabe por quê? Porque eu fiz a ponte entre João Firmino Cabral e essa nova geração, entre Mestre Azulão e essa nova geração... Quem conviveu com eles o suficiente pra absorver parte do conhecimento deles e ter possibilidade de repassar alguma coisa pra essas novas gerações, é a minha geração. Sou eu, é Rouxinol do Rinaré, é o Evaristo, é o Marco Aurélio, é o Paiva... É esse pessoal que conviveu com os mestres porque, se eu não me engano, essa já é a quinta geração da literatura de cordel. Porque a primeira geração foi a de Leandro Gomes de Barros, de Francisco das Chagas Batista, de João Martins de Athayde, de José Camelo de Melo Resende... Eu conheci Fortuna, o Mendez, muito desses que já morreram, o Adail, essa galera do Pasquim... E tem coisas que nascem clássicos: Mestre Bule-Bule tava aqui em casa, descansando uns dias, quando Ariano Suassuna morre. A gente senta à mesa da cozinha e, em menos de duas horas, a gente tava com o folheto pronto! Eu disse: "Epa! A gente tá aqui com um problema: folhetos como esse vão sair uns 50 ou mais com essas mesmas características e o nosso vai ser apenas mais um". Era aquele folheto de reportagem. Eu disse: "Vamos fazer alguma coisa que fique". Fizemos A Chegada de Ariano Suassuna no Céu, que é como se fosse um auto. Aí eu fiz o caminho inverso: eu publiquei gratuitamente na Internet - fiz o impresso, mas publiquei gratuitamente na Internet - e o que é que aconteceu? Frei Leonardo Boff botou na coluna dele dizendo que nunca havia visto um texto mais engraçado; Valter Hugo Mãe publica no Instagram dizendo que estava encantado com esse texto; Paulo Henrique Amorim bota na página dele, etc. Aí você diz que o impresso deixa de vender... Ora, o impresso continua vendendo!



OP - Pois é... Você citou a Internet e eu queria que você me falasse dessa ligação da cultura popular com as novas mídias.

Klévisson - Eu tenho adotado a nova mídia dessa maneira. Eu vejo na Internet, mas com uma certa desconfiança e penso: tá aqui na Internet hoje, mas amanhã pode desaparecer. Eu quero ter o livro, eu quero ter o impresso. Então as pessoas confiam desconfiando. Por exemplo, quando o rádio surgiu, na década de 1930 e 1940: Ah! Vai acabar com todos os jornais impressos! Não acabou nada... Aí surgiu a TV, nos anos 1950. Nãããooo, agora acabou-se o rádio! Quem diabo que vai mais ouvir rádio e ler jornal? Nós temos a televisão... Até meados da década de 1980, poucas casas tinham aparelho de televisão. A gente assistia televisão na casa dos outros. E em Canindé, em 1980, 1981, a gente saía de porta em porta procurando uma casa que tivesse televisão e tinha casa que não deixava a gente entrar pra assistir e a gente ficava olhando pela brechinha da janela! (risos) Quanto às novas tecnologias, eu acho positivo porque, se você observar bem, poucos são os poetas hoje que não têm uma página na Internet. E isso foi de uma maneira extraordinária! Tem folhetos de notícias, por exemplo, que hoje praticamente quase não se faz mais o impresso. O poeta escreve, cria capa e bota disponível na rede porque o objetivo é chegar ao maior número de pessoas.
OP - Em relação a esse novo cenário que se apresenta no País, como você recebeu notícias, por exemplo, sobre a extinção do Ministério da Cultura?
Klévisson - Eu vejo que duas coisas não são importantes pra esse novo governo: a cultura e o trabalho, ou melhor, o trabalhador. São irrelevantes pra ele. Você vê que ele tem diálogo sempre para os empresários, mas até hoje não dirigiu uma palavra, um discurso ao trabalhador. Só fala em tirar direitos e agora tá dizendo que o emprego tem que se equiparar à informalidade. Quer dizer, o objetivo é esse: tirar todos os direitos dos operários. A coisa tá caminhando pra isso aí, pra você não ter direito algum. Então eu vejo dessa forma, que a extinção dos ministérios da Cultura e do Trabalho vai atrasar muito o nosso país porque a cultura, ao contrário do que muita gente pensa, ela gera milhões e milhões de empregos e muito dinheiro também! O próprio governo Temer reconheceu que a Lei Rouanet, ela é muito positiva e dá muito retorno ao País, gera milhões de Receita. Quer dizer, a cultura é muito positiva porque, além de educar, formar e humanizar as pessoas, ela é um produto que gera divisas, gera riquezas para o país. A gente não sabe como é que vai ficar, né? Mas que é um baque grande, é. A cultura, com certeza, perde e o país empobrece com isso.
OP - Esse momento de incertezas te deixa apreensivo de alguma forma, até mesmo em relação ao mercado editorial?
Klévisson - É, porque eu sempre fui um autor meio underground. Sempre fui meio à margem, sempre preferi fazer meu trabalho por outros vieses, por outros caminhos. Cheguei ao grande mercado através das grandes editoras, mas o meu trabalho enquanto editor foi marginal. Sempre fui um editor marginal. A minha distribuição é alternativa porque cada capital do Nordeste, e até mesmo do Sudeste, tem no mínimo um distribuidor de literatura de cordel. Então meu ponto de venda são esses distribuidores. E assim a gente vai costurando parcerias com outros editores, com outros poetas, com folheteiros de todo País e até mesmo pessoas que trabalham com livros e projetos alternativos, e a gente vai distribuindo essa produção por esse caminho. E como a minha editora é muito econômica, diga-se de passagem a mais econômica do Brasil, porque eu ilustro, diagramo, edito, domino todas as etapas do processo, então meu livro é barato. 
  
OP - A celebração é de 30 anos de carreira, mas você bem disse que são bem mais que isso. Num balanço desse tempo de profissão, você considera que chegou ao nível que queria?
Klévisson - O artista nunca tá satisfeito. O Flávio Colin é que dizia: "o artista nunca está pronto". Você sempre acha que pode ser melhor. A gente sempre pensa isso, que pode ser melhor. Quando você faz um trabalho e as pessoas gostam, a sua relação com aquele trabalho morre ali. Mas têm alguns trabalhos que eu me orgulho muito de ter feito. Você sabe por que eu me sinto um vencedor? Porque eu cheguei bem além do que eu esperava, muito mais longe. Só que eu digo uma coisa: com muito trabalho. Porque teve uma época que eu trabalhava uma média de 16 horas/dia. Mas não era um trabalho sacal, era uma coisa que me dava prazer em fazer. Aliás, hoje eu continuo assim. Eu sempre quis ter um escritório fora de casa (pra ter um certo profissionalismo) e, no dia que eu não vou, eu fico com peso na consciência. Eu acho que, quando eu fiz o Dom Quixote, eu tava numa forma de desenho simplesmente extraordinária. Eu tava tinindo! (risos) Mas a minha ideia, futuramente se eu viver um pouco mais, é organizar todos esses desenhos - que são milhares - num tipo de memorialzinho e doar para uma instituição pública, uma coisa que mantenha. O meu interesse de guardar essas coisas é muito mais pra ter um registro da memória. Acho bonito aquele trabalho do Nirez de guardar essas coisas! Porque muitos desenhos meus foram perdidos porque o jornal colava o original direto na página, naquele gabarito e, de lá, ia pro lixo.

Estreia oficial
O PRIMEIRO CORDEL publicado por Klévisson Viana foi A Botija Encantada e o Preguiçoso Afortunado (1998), lançado dez anos após a publicação de seu primeiro desenho no jornal intitulado A Voz do Povo, da cidade de Canindé

Parcerias
KLÉVISSON VIANA possui cinco títulos publicados pela Fundação Demócrito Rocha e Editora Dummar, sendo o mais recente A Princesa Encantada de Jericoacoara (2017), baseado numa clássica lenda ocorrida na famosa praia cearense

Almanaque
CERCA DE UMA semana após a entrevista, Klévisson saiu às bancas com Almanaque Tupynanquim (35 pág./ R$ 10). Nele, a reunião de várias fábulas, artigos, poemas e quadrinhos - todos inéditos - de sua autoria e de outros colaboradores

TERESA MONTEIRO

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

CONFISSÃO DE CABÔCO - ZÉ DA LUZ


Zé Maria, Azulão, Arievaldo e Geraldo Amâncio

Em 2003, quando estávamos gravando o CD do Projeto Acorda Cordel na Sala de Aula, com participação de Geraldo Amâncio, Zé Maria de Fortaleza, Mestre Azulão, Gonzaga da Viola, Judivan Macedo e Hildebrando do Acordeón, já tínhamos 09 faixas definidas, cinco das quais de minha autoria. As demais eram poemas de Rogaciano Leite, Alberto Porfírio e outros. Foi aí que ZÉ MARIA me apresentou uma fita K-7 contendo uma gravação magistral do poema CONFISSÃO DE CABOCLO, de ZÉ DA LUZ, que finda com a expressão: "QUE CRIME NÃO SABER LER". Era justamente a faixa que precisávamos para encerrar o disco. Zé Maria tentou regravá-la mas não conseguia dar o mesmo impacto da primeira gravação, e como a gravação antiga tinha ótima qualidade foi anexada ao repertório do CD.


Poeta ZÉ DA LUZ


Segue o poema CONFISSÃO DE CABOCLO:



Confissão de Cabôco


Seu duotô, sou criminoso.
Sou criminoso de morte. 
Tou aqui pra mim intregá.
Voimicê fique sabendo:
– Quando a muié traz a sorte 
De atraiçoá o isposo
Só presta para se matá.

Nunca pensei, seu doutô
Qui a mão nêga do distino, 
Merguiasse as minhas mão
No sangue dos assarcino!

Vô li pidí um favô
Ante de vossamercê
Mim butá daqui pra fora:
– É a licença do doutô 
Pr’eu li contá minha histora.

Sinhô dotô delegado,
Digo a vossa sinhuria 
Qui inté onte fui casado 
Cum a muié qui im vida 
Se chamô ROSA MARIA.

Faz dez mês qui se gostemo, 
Faz oito qui fumo noivo
Faz sete qui nós casêmo.

Nós casêmo e nós vivia 
Cuma pobre, é verdade,
Mas a gente se sentia 
Rico de filicidade!

Pras banda qui nós morava, 
No lugá Chã da Cutia,
Morava tombém um cabra 
Chamado Chico Faria.

Esse cabra, antigamente,
Tinha gostado de Rosa,
Chegaro, inté a sê noivo,
Mas num fizero a “introza”
Do casamento, prumode
Mané Uréia de bode,
Qui era padrim de Maria
Tê dismanchado essa prosa.

Entoce, o Chico Faria,
Adispois qui nós casêmo,
In cunversa, as vez dizia,
Qui ainda mi dava fim
Pra se casá cum Maria.

Dessa coisa eu sabia,
Mas nunca dei importança.

Tinha toda cunfiança 
Na muié qui eu tanto amava,
Ou mais mió, adorava...
Cum toda a minha sustança!

Dispois disso, o meu custume
Era vivê trabaiando 
Sem da muié tê ciume.

A muié pru sua vez
Nunca me deu cabimento
Deu pensá qui ela fizesse
Um dia um farcejamento. 

Mas, seu doutô, tome tento
No resto da minha histora, 
Qui o ruim chegô agora:

Se não me farta a mimora, 
Já faz assim uns três mêis, 
Qui o cabra, Chico Faria, 
Todo prosa, todo ancho, 
Quage sempre, mais das vêz, 
Avistava o meu rancho.

Puralí, discunfiado
Como quem qué e não qué, 
Eu fui vendo qui o marvado
Tentava a minha muié.

Ou tentação ou engano, 
Eu fui vendo a coisa feia!
Pru derradêro eu já tava 
C’a mosca detrás da uréia.

Os tempo foi se passando
E o meu arriceiamento
Cada vez ia omentano.

Seu dotô, vá iscutano:

Onte, já de tardezinha
O meu cumpade, Quinca Arruda,
Mi chamô pra nós dança
Num samba – lá na Varginha,
Na casa do mestre Duda.

Mestre Duda é um cabôco, 
Um tocado de premêra.
É o imboladô de côco
Mió daquela rebêra.

Entonce Rosa Maria,
Sempre gostou de samba,
Mas, porém, de tardezinha 
Me disse discunfiada,
Qui pru samba ela não ia,
Qui tava munto infadada,
Percisava se deita...

Eu fiquei discunfiado
Cum a preposta da muié!

Dispois qui tomei café, 
Cuage puro sem mistura,
Cum a faca na cintura
Fui pru samba, fui sambá.

Cheguei no samba, dotô.
Repare agora, o sinhô,
Quem era qui tava lá?

O cabra Chico Faria.
Qui quano foi me avistando,
Foi logo mi preguntando:
– Cadê siá dona Maria,
Num veio não, pra dançá?

– Não sinhô. Ficô im casa.
Pru cabôco arrispondí.

Senti, entonce uma brasa
Queimano meu coração, 
Nunca mais pude tirá 
As palavra desse cabra
Da minha maginação.

Perdí o gosto da festa
E dançá num pude não.

O cabra, pru sua vez
Num dançava, seu doutô.
De vez im quando me oiva
Cum um oiá de traidô.

Meia noite, mais ou meno,
Se dispidino do povo
Disse: – Adeus, qui eu já vô.

Quando ele se arritirô,
Eu tombem me arritirei
Atraiz dele, sim sinhô.
Ele na frente, eu atrais.
Se o cabra andava ligêro,
Eu andava munto mais!

Noite iscura qui nem breu!

Nem eu avistava o cabra,
Nem o cabra via eu!

Sempre andando, sempre andando. 
Ele na frente, eu atrais.

Já nem se iscutava mais
A voz do fole tocando 
Na casa do mestre Duda!

A noite tava mais preta 
Qui a cunciênça de Judá!

Sempre andando, sempre andando.
Eu fui vendo, seu doutô, 
Qui o marvado ia tumando 
Direção da minha casa!

Minha casa!... Sim sinhô!

Já pertinho, no terrero
Eu mim iscundí pru detraiz
De um pé de trapiazêro.

Abaixadim, iscundido,
Prendi a suspiração,
Abri os óio, os ouvido,
Pra mió vê e ouvi
Qua era a sua intenção.

Seu doutô, repare bem:

O cabra oiando pra traiz,
Do mermo jeito, qui faiz
Um ladrão pra vê arguém,
Num tendo visto ninguém,
Na minha porta bateu!

De lá de dentro uma voiz 
Bem baixim arrispondeu...

Ele entonce, cá de fora:

– Quem ta bateno sou eu!

De repente abriu-se a porta!

Aí seu doutô, nessa hora
A isperança tava morta,
Tava morto o meu amô...

No iscuro uma voiz falô:

– Taqui, seu Chico, essa carta,
Qui a tempo tinha iscrivido
Pra mandá pra voismicê.
Pru favô num leia agora,
Vá simbora, vá simbora,
Qui quando chegá im casa
Tem munto tempo pra lê.

Quando minhas oiça ouviu,
As palavra qui Maria 
Dizia pru disgraçado,
Eu fiquei amalucado,
Fiquei quage cuma loco,
Ou mio, cumo um cabôco
Quando ta chêi de isprito!

Dum sarto, cumo um cabrito,
Eu tava nos pés do cabra
E sem querer dei um grito:

– Miserave! E arrastei
Minha faca da cintura.

Naquela hora dotô, 
Eu vi o Chico Faria,
Na bêra da sipurtura!

Mas o cabra têve sorte.

Sempre nessas circunstança 
Os home foge da morte.

Correu o cabra, dotô 
Tão vexado, qui dêxou
A carta caí no chão!

Dei de garra do papé,
O portadô da traição!

Machuquei nas minha mão,
A honra, douto, a honra
Daquela farsa muié!

Dispois oiando pra carta
Tive pena, pode crer,
De num tê prindido a lê.
Nas letra alí iscrivida 
O qui dizia Maria
Pru marvado traidô.

Tive pena, sim sinhô.
Mas, qui haverá de fazê
Se eu nunca prindí a lê?

Maria mi atraiçuô!

Essa muié qui um dia,
Juêiada nos pé do artá
Jurou im nome de Deus
Qui inquanto tivesse vida,
Haverá de mim honrá
E mim amá cum todo amo.

Cum perdão do seu doutô.

Quando eu vi a miserave 
Na iscurideza da noite
Dos meu oio se iscondê
Sem dêxá nem sombra inté
Entrei pra dentro de casa
Pra mi vingá da muié.

Douto, qui hora minguada!
Maria tava ajuêiada, 
Chorando, cum as mão posta
Cumo quem faz oração.
Oiando pra eu pedia,
Pelo cali, pela osta,
Pru Jesus crucificado,
Pelo amo qui eu li amava
Qui num fizesse isso não.

Eu tava, doutô, eu tava
Cego de raiva e paixão.

Sem dizê uma palavra,
Agarrei nas suas mão,
Levantei ela pra riba
E interrei inté o cabo,
O ferro da parnaíba
Pru riba do coração!

Sarvei a honra, doutô, 
Sarvei a honra, apois não!

Dispois qui vi a Maria
Caí sem vida no chão,
Vim fala cum vosmicê,
Vim cunfessá o meu crime 
E mim intregá as prisão.

Se o sinhô num acredita 
Se eu sô criminoso ou não,
Tá aqui a faca assarcina
E o sangue nas minhas mão.

Cumo prova da traição,
Tá aqui a carta, doutô.

Li peço um grande favô:

Ante de vossa-sinhuria 
Mi mandá lá para prisão
Me lêia aqui essa carta
Pr’eu sabê cumo Maria
Perparava essa trição!

A CARTA

“Seu Chico:

                 Chã da Cutia.

Digo a vossa senhoria
Que só lhe escrevo essa carta
Pru senhor ficar sabendo
Que eu não sou a mulher 
Que o senhor tá entendendo.

Se o senhor continuar 
Com os seus disbiques atrevidos
O jeito que tem é contar
Tudo, tudo a meu marido.

O senhor fique sabendo
Que com seu discaramento,
Não faz nunca eu quebrar
O sagrado juramento
Que eu jurei nos pés do altar,
No dia do casamento.

Se o senhor é inxirido,
Encontrou u’a mulher forte,
O nome do meu marido
Eu honro até minha morte!

Sou de vossa senhoria,

                   Sua criada.

                    MARIA.” 

– Doutô! Doutô mi arresponda
O qui é qui eu tô ouvindo?
Vosmicê leu a carta,
Ou num leu, ta mi inludindo?

– Doutô! Meu Deus! Seu doutô,
Maria tava inucente?
Me arresponda pru favo!

Inocente! Sim, senhor!

Matei Maria inucente!

Pru que, seu doutô, pru que?

Matei Maria somente
Pruque num aprendi a lê!

Infiliz de quem num leu 
Uma carta de ABC.

Magine agora o doutô,
Quanto é grande o meu sofrê!

Sou duas veiz criminoso,
Qui castigo, seu doutô!

Qui mizera! Qui horrô!
Qui crime num sabê lê!