domingo, 10 de junho de 2018

CONTO DE GUSTAVO BARROSO



Ilustração: Arievaldo Vianna (Direitos reservados)

MARIALVA SERTANEJO
Gustavo Barroso

Um touro grande, cor da treva, de aguçadas pontas ligeiramente recurvas. Chamava-se Azulão, como o pássaro do mesmo nome, que também e negro. Talvez o apelido lhe viesse dos reflexos espelhantes do pêlo à luz do sol, que às vezes davam levemente a impressão do azul. Animal bonito e, sobretudo, famoso. Conhecia-o de nome o sertão todo, como o mais terríivel e mocambeiro novilho dos que o coronel Paulo deixava amontados pelas senotas, a fim de prometer prêmios aos vaqueiros que os trouxessem mortos ou vivos, quando o tempo, a perseguição e a liberdade os tornavam verdadeiras feras.

Todos os anos, após a ferra do gado, o grande fazendeiro escolhia um novilhote entre os mais possantes e dava ordem para abandoná-lo nas catingas aos seus instintos. O animal ficava selvagem e ele tentava a vaqueirama das ribeiras próximas a dar-lhe caça. O vaqueiro que lhe trazia a "bassoura" do barbatão morto a tiros, ou o próprio pegado a laço derrubado a "mussica" recebia cinco patacões de velha prata portuguesa e divertia-se em grande festa, na fazenda, durante a qual os melhores cantadores o louvavam ao pé da viola. Havia quarenta anos que o coronel se dedicava a esse folguedo, começado logo que herdara as terras do pai, aos trinta de idade. Mas nunca espicaçara os sertanejos dos arredores atrás de bicho mais terrível que o Azulão.

Aquele touro bravo era o pior de que havia notícia nas tradições do sertão. Rápido como o pensamento e valente como as armas, já matara dois cavalos de campo e estripara um vaqueiro. O coronel Paulo prometera vinte patacões a quem o trouxesse vivo ao seu curral, cuja cerca de pau a pique, no alto dum teso, se mirava nas águas vagarosas do rio.

Dois vaqueiros irmãos, os melhores campeadores da região, Matias e Teófilo Sussuarana, puseram-se-lhe no piso, deram-lhe quedas e mais quedas nas várzeas para onde o tangeram e, depois de o fatigarem, o laçaram, trazendo-o para o curral, de madrugada, dificilmente, enleado em peias, de "máscara", e chocalho, para maior vergonha de sua denota.

Mal o dia amanheceu, preveniram o coronel que o Azulão estava ali. Saiu de casa radiante, os lábios vermelhos sorrindo entre as revoltas barbas brancas, e foi olhar a fera cativa, encerrada no menor dos currais de apartação, laivado o dorso negro de arranhões, olhos afuzilando por trás do couro cru da "màscara", escarvando o chão, enervado pelo continuo tinir do chocalho aviltante. E deu ordem para se convidar muita gente à festa que celebraria, desde a tarde até alta noite, o triunfo dos dois rapazes.

Horas depois, à sombra das árvores do terreiro, não havia mais lugar para amarrar cavalos. Celeremente se espalhara a nova da captura do animal e toda a vizinhança vinha ver o "fama" da ribeira.

O vento da tarde começara a rumorejar devagarinho na folhagem dos comarus e dos frei-jorges robustos, que circulavam o pátio, e a ardência do sol diminuíra, quando o cativo começou a dar sinais da terrível fúria. Passara o dia sempre escarvando o solo, porém embezerrado, acuado a um canto, olhos em brasa. Agora, não. Arremetia contra os "varaus" da porteira, agitava o "cupim", marrava a cerca, mugia lentamente, babava-se, estremecia todo, a complicada musculatura sacudida em crispações fugazes e violentas como descargas elétricas. E os olhares humilhantes de dezenas de vaqueiros, trepados nos moirões, excitavam magneticamente o animal prisioneiro.

O fazendeiro contemplava os progressos rápidos daquela raiva e, de repente, obedecendo ao seu temperamento estouvado e ardente, gritou:

- Duzentos mil-réis aos que pegarem o bicho a unha, dentro do curral!

A soma era por demais tentadora. Aqueles homens nunca tinham visto tanto dinheiro. Todos os olhos faulharam de cobiça. O vaqueiro da casa fez correr alguns paus da porteira, convidando sorridente:

- Vamos! Quem é homem para entrar?

O Azulão pareceu adivinhar o que contra ele se preparava. Recuou, bebendo mais, até o fundo do curral e ficou novamente imóvel, pontas em riste, sacudido pelos estremeções nervosos. Sentia-se do longe o fogo do seu olhar.

Os vaqueiros silenciosos, emocionados, olharam-no e não tiveram coragem de entrar. Então, o velho apregoou, sorrindo:

- Dou os mesmos duzentos mil-réis a quem o atacar peito a peito e o matar a faca!

Outra vez, o vaqueiro da casa fez o convite irônico:

- Vamos! Quem é homem para entrar?



Os vaqueiros levaram as mãos, maquinalmente, aos cabos das afiadas parnaíbas e logo as deixaram cair, sem ânimo de dar um passo. Os mesmos que o tinham perseguido e pegado no mato não ousaram mais que os outros. No campo, na primeira luta, o touro não tinha ainda a fermentada cólera de agora. Vendo aquela indecisão geral, o coronel encolheu os ombros e falou, com desprezo:

- Vocês são todos uns maricas! Súcia de medrosos!

Foi como uma chicotada que os vergastasse a todos, nas faces! Aqueles homens rudes, de rostos abaçanados sob os grossos chapéus de couro, não se atiraram ao insultador detidos pelo respeito feudal ao ancião, senhor da terra e do gado. Porém um, mais jovem e audaz, replicou:

- Se vosmicê não entra também, coronel, é tão medroso como nós.

O velho caminhava já para casa, em cuja alpendrada a mulher e a filha o esperavam para jantar. Deteve-se e fulminou o rapaz com um olhar formidável, arrancou do cinto do homem que lhe ficava mais próximo a comprida faca de arrasto e disse, serenamente, ao seu vaqueiro:

- Jerome, abra a porteira!

Fez-se grande silêncio. Ao fundo do curral, o touro negro arfava. E diante dos vaqueiros, respeitosamente descobertos, aquele homem de setenta anos de idade, de longas barbas brancas, penetrou sem medo no recinto temível!

A mulher e a filha deitaram a correr, gritando, da casa para os currais; mas, quando ali chegaram, já ele estava no meio do cercado, de faca nua na mão, olhando corajosamente o touro. Ninguém se atrevia a dar uma palavra. Pareciam suspensas as respirações e os arrulhos distantes das juritis ecoavam como gemidos fúnebres.

O Azulão distendeu a poderosa musculatura num salto felino sobre o fazendeiro, que evitou o bote, pulando de lado e golpeando-lhe com a faca o pescoço de aço. Num repelão, o monstro voltou à carga. Já o velho se encostava à cerca, defendendo as costas. Veio sobre ele numa investida delirante, não lhe dando tempo a esquivar-se. Houve um arrepio; depois, um grito de horror da assistência inteira.

O animal cravara as pontas finas no ventre do ancião, comprimindo-o de encontro aos moirões. Viu-se-lhe o braço nervudo erguer e abaixar a lâmina espelhante. Então, ficaram imóveis o homem e o touro.

Todos precipitaram-se no cercado e, quando se aproximaram do grupo petrificado, viram que o coronel estava morto, trespassado pelos chifres, cujas pontas fundamente se cravaram nos madeiros. Por isso, mantinha-se de pé o imenso corpo do Azulão; mas as pernas traseiras pouco a pouco cediam até que a vasta mole de carne e músculos abateu de vez. A facada do fazendeiro fora certeira e mortal: penetrara em cheio no cabelouro!

(Alma sertaneja, 1923.)

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