Os contos que li na infância
Como
já disse repetidas vezes, o primeiro tipo de literatura que tive acesso foram
os romances de cordel de minha avó, guardados numa maleta empoeirada que jazia
abandonada em cima do caixão da farinha, no quarto grande da casa velha. Uma
vez, ao tentar descer desse caixão, acabei escorregando de mal jeito, com as
costas contra a parede e, como estava sem camisa, fiquei sem uma tira de couro
do espinhaço. Essa casa fora a antiga habitação de meus avós quando vieram do
Castro para o 'Toco Preto', rebatizado oportunamente de Fazenda Ouro Preto,
nome que permanece até hoje. Era terreno inóspito, desabitado, quando o casal
resolveu desbravá-lo na companhia de uma numerosa prole de filhos ainda
pequenos.
A
casa velha era para mim o que significa um
shopping de luxo para os meninos de hoje. Era um reflexo da famosa feira de
Caruaru. Ali eu encontrava uma infinidade de quinquilharias que me serviam de
brinquedo. Até um caixão de livros e cordéis, como já foi dito.
No
meio dessa tralha tinha também alguns livros escolares, que pertenceram às
minhas tias e na casa dos meus pais os livros de minha mãe, que fora estudante
do Colégio Gustavo Barroso, em Maracanaú, no início da década de 1960. No meio desses livros da fase escolar de minha mãe, havia um volume que reunia contos
de José Lins do Rego, Viriato Correia, Coelho Neto, Olavo Bilac, Lima Barreto, Padre Dubois,
Malba Tahan, Machado de Assis e muitos outros. Foi naquela velha brochura que li pela primeira vez
o conto Um apólogo, do Bruxo do Cosme Velho e tomei conhecimento das Histórias da Velha Totonha e de O Homem que calculava.
Depois
dos folhetos de cordel, esses contos eram a minha leitura predileta. Havia um conto humorístico delicioso, intitulado O Coronel Rodapé,
que há poucos dias descobri ser de Humberto de Campos, também autor de O brinquedo roubado, texto sentimental
que me levou às lágrimas, a primeira vez que o li. Ontem, pesquisando sobre a
Literatura Infanto-Juvenil do Século XIX deparei-me com esse belo conto do
maranhense Coelho Neto, que havia lido quando criança num compêndio escolar:
Coelho Neto
Quem tudo quer, tudo perde
Coelho Neto
— Parece
que bateram! — disse o carvoeiro.
— Foi
o vento, — respondeu a mulher.
Efetivamente,
a velha cabana, levantada junto às primeiras árvores da floresta, parecia
gemer, e tremia, abalada pelo vendaval, que levantava, em torvelinho, as folhas
secas, arrancava robustas árvores, deixando-as tombadas, com as raízes
retorcidas à flor da terra.
Os
filhos do carvoeiro, três rapazitos e uma menina, que era a mais nova,
cercavam-no, pálidos de medo, persignando-se toda vez que um relâmpago alumiava
a cabana.
A
chuva jorrava com fragor e na floresta crescia o barulho das árvores.
De
novo o carvoeiro disso:
— Parece
que bateram! Talvez seja algum viajante fugindo à tempestade!
Nenhum
dos pequenos se atreveu a ir à porta, que rangia aos empurrões do vento.
A
pequenita, porém, enchendo-se de coragem, decidiu a ver se havia alguém.
Justamente
chegava à porta, quando, de novo, bateram clamando:
—Dai-me
um agasalho, pelo amor de Deus!
Sem
hesitar, a pequenita virou o ferrolho, e, com uma lufada violenta, ao clarão de
um relâmpago, um velho precipitou-se no interior humilde.
Era
alto e magro, estava coberto de andrajos. No lugar em que se deteve, ainda
atordoado, ficou uma poça d’água, tão encharcado estava.
O
carvoeiro levantou-se para recebê-lo; o velho, depois de abençoar a pequenita,
abeirou-se do lume, tiritando, a falar da devastação que a tempestade ia
fazendo por aquelas terras.
Deram-lhe
do que havia no armário: pão, queijo e frutas, e o peregrino, confortado,
tomando ao colo a pequenita, pôs-se a afagá-la carinhosamente.
Lá
fora a tormenta continuava a rugir.
— Habitais
um sítio muito arredado e triste, disse o velho carvoeiro.
— É
verdade, é bem triste! Dá-me a floresta que vendo, a água que bebo, e a caça de
que me nutro. O lugar é melancólico, mas nunca nos faltou o necessário, porque
o meu trabalho o sabe tirar das árvores e das tocas.
Depois
de um silêncio, em que pareceu meditar, o velho disse, alisando os cabelos da
pequenita:
— Tendes,
entretanto, a fortuna muito perto de casa. Na caverna da floresta há um tesouro
guardado desde os tempos do rei Salomão. Quem lá for, e tirar, de cada vez,
quando possa conduzir sem fadiga, tornará ao lar tranqüilamente; aquele porém
que se exceder na carga, terá no próprio sítio o castigo da ambição.
— O
que dizeis é verdade!? — exclamou o carvoeiro alvoroçado.
—Só
a verdade vos digo, — afirmou o velho.
Os
pequenitos, que tudo ouviram, logo resolveram visitar, na manhã seguinte, a
caverna da floresta em procura do tesouro.
Caindo
a noite, amainada a borrasca, o velho, apesar das instâncias do carvoeiro e da
mulher, tomou o cajado, depois de agradecer a hospedagem e de abençoar a
pequenita.
Na cabana ninguém dormiu; e, aos primeiros
albores da madrugada, saíram todos — o carvoeiro, a mulher e os três rapazitos.
A
pequena ficou para guardar a casa e preparar a refeição.
Embrenhou-se
a família. Cada qual levava um saco, contando regressar com grande cópia de
ouro.
Chegaram
a caverna, que ficava em sítio temeroso, e vagarosamente, penetraram.
Bem
ao fundo viram como um monte de brasas que topetava com a abóbada — eram
luzentes barras de ouro.
Rojaram-se
todos, e, esquecidos das palavras prudentes do velho, puseram-se a encher os
sacos, sempre achando pouco o que guardavam.
O
carvoeiro levantou-se, e, com esforço, aos arrancos, arrastou seu saco até o
limiar da caverna, sem poder erguê-lo, tão superior às suas forças era a carga.
A
mulher mal se podia mover, tirava o seu saco aos empuxões, arquejando; o mesmo
faziam os pequenos com o exemplo dos pais.
Um
deles, porém, recordou as palavras do velho; mas o carvoeiro irritou-se:
— Ora,
o velho... se bem andou, longe vai! Quem sabe se eu me havia de abalar de casa
por uma barra de ouro! Temos a fortuna à mão, tolos seremos se a não
aproveitarmos!
Lentamente,
esforçadamente, chegaram ao limiar da caverna, mas logo se sentiram presos.
Os
pés afundaram no solo alongando-se em raízes, os corpos mudaram-se em troncos,
os braços estenderam-se em folhagem, e transformados em árvores, ali, ficaram,
bracejando ao vento.
Debalde
a pequenita esperou-os para o jantar. Em vez deles, chegou a noite.
Na
manhã seguinte, foi ela à floresta, procurou-os, chamou-os, e, guiando-se pelas
pegadas que haviam ficado na terra mole, foi ter à caverna.
Passou
pelas árvores, sem perceber que eram os seus parentes, e estacou deslumbrada
diante do cógulo de ouro.
Alegre,
rindo, apanhou três barras das mais luzentes; sentindo, porém, o peso
demasiado, e, lembrando-se da recomendação do velho, desfez-se de uma, e,
folgadamente, ia saindo, quando ouviu as vozes escarninhas:
— Por
tão pouco não valia a pena teres vindo de tão longe! Volta à caverna, e toma
outras barras de ouro!
Sem
dar ouvidos à sedução, a pequenita passou as árvores, e regressou à cabana.
No
dia seguinte, tornou à caverna, e com mais duas barras voltou contente.
Repetindo a viagem durante meses, tornou-se dona de todo tesouro.
Uma
tarde, sentada à porta da cabana, chorava, quando viu vir uma velhinha que
parava de instante em instante, fatigada.
Convidou-a
a descansar um momento, e deu-lhe do que tinha, e enquanto comia, a velha
pediu-lhe a razão das lágrimas que che arrasavam os olhos.
— Choro
os que perdi, meus pais e meus irmãos. Sou rica, riquíssima! Tenho mais ouro
nesta cabana do que tem o rei no seu erário; dá-lo-ia todo, de bom grado, pela
antiga pobreza, se, com ela, voltassem os que perdi!
Enquanto
ela chorava, ia a velha, astutamente, recolhendo as suas lágrimas em um
pequenino vaso de cristal. E disse-lhe, por fim:
— Vamos
à caverna! És digna de ser amerceada!
E
logo, ágil como se a levassem asas invisíveis, a velhinha transportou-se da
cabana à floresta, levando a pequenita.
À
entrada da caverna, pôs-se a aspergir as árvores com as lágrimas, e logo se
desfazia o encanto, e, um a um, reapareceram o carvoeiro, a mulher e os
rapazitos.
Antes,
porém, que eles se tirassem do espanto, disse a velha á pequena:
— Aqui
os tens! Leva-os contigo, e que lhes fique na memória este caso! Toda a ambição
é prejudicial. O homem não deve tentar o impossível: quem muito quer, tudo
perde; e é com perseverança e trabalho que se consegue a fortuna.
Como
um fumo que se dissolve, a velha desapareceu, e a pequenita, abraçando os pais
e os irmãos, reconduze-os à cabana, onde lhes mostrou a riqueza acumulada com
paciência se sem fadiga, com a qual passaram a viver na cidade, com o fausto
que o ouro lhes garantia.
E o
carvoeiro, bendizendo o coração da filha, referia-lhe os tormentos que haviam
sofrido, ele e os seus, durante o tempo que viveram metamorfoseados em árvores.
Fonte: BILAC, Olavo & NETTO,
Coelho. Contos Pátrios. Francisco
Alves, RJ, 1931, 27ª ed. (ilustrado por Vasco Lima)
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