1974: O ano em que me entendi por gente – Parte
II
NO TEMPO EM
QUE EU “GUEGUELAVA”
Minha
tia Heliodória chegara do Rio Grande do Norte e trouxera um namorado. O fato
causou certo espanto, pois ela havia saído de casa para um colégio de freiras,
a fim de seguir a carreira religiosa. Quando todos pensavam que ela chegaria
envergando o hábito de Carmelita descalça, eis que a “Dodóia” aparece com um
noivo a tiracolo. O rapaz era o Gabriel. Gabriel Lopes da Silva, de São Paulo
do Potengi, município do Rio Grande do Norte. Figura agradável, de prosa farta
e fluente, conquistou a simpatia de todos (ou quase todos). Gostava de
conversar com as crianças, propunha brincadeiras, era prestativo com os
adultos, enfim, diziam que seu único defeito era mentir.
Eu,
particularmente não acho que isso seja um defeito, conquanto não se utilize a
mentira para prejudicar os outros. O Gabriel apenas enfeitava as histórias com
muito engenho e arte. Seria um literato dos bons, caso tivesse se dedicado ao
ofício. Como o Chicó, personagem de Ariano Suassuna, o Lopim mentia por amor a
arte, sem o intuito de ofender ou prejudicar ninguém. As histórias contadas ao
pé da letra, do jeito que realmente acontecem são tão enfadonhas. Nesse caso, a
mentira é uma vara de condão que transforma uma abóbora chocha e acanhada numa linda
e resplandecente carruagem e um punhado de camundongos fedorentos num séquito
de elegantes cocheiros e lacaios, como na história da Gata Borralheira.
Nosso
parente Raimundo Pereira Viana havia reinado absoluto no ofício, antes da
chegada do Lopim. Em certos momentos, lembrava o Pantaleão, personagem do Chico
Anysio, que por sua vez fora inspirado em Alexandre, de Graciliano Ramos, um
potoqueiro de peso e medida. O Pereira era um profissional competente. Mesclava
histórias reais e bem verossímeis com outras bem cabeludas. E se alguém
duvidava ele se remexia na cadeira, temperava a garganta, batia nas pernas com
as palmas da mão e dizia:
—
Pois foi com toda real certeza!
Ninguém
duvidava mais. Exceto minha avó, que fazia um leve ar de riso e balançava a cabeça
de maneira quase imperceptível. Eu não perdia um detalhe dessas conversas e
comecei a me especializar também na arte de enfeitar histórias. Havia um
parente nosso, que não cheguei a conhecer, que era profissional dos mais
gabaritados, o tio Miguel Viana, irmão de minha bisavó Mercês. Quando eu
preguei as primeiras mentiras vovó arregalou os olhos e disse:
—
Esse menino puxou à bênção do tio Miguel Viana. Esse negócio não foi desse
jeito. Conte essa história direito, meu filho...
Lá
se ia eu remendar a história e contar como realmente acontecera: insossa,
desenxabida, medíocre e sem graça. Por que não me deixavam exercitar as artes
de “literato”, como faziam livremente o Raimundo Viana e o Gabriel? Até o João
da Graça, empregado do meu avô, podia contar suas meias verdades impunemente, a
céu aberto. Com o passar do tempo, a referência ao tio Miguel Viana virou um
verbo. O verbo Miguelar ou “gueguelar”, como preferia a Alzirinha, minha avó:
—
Esse menino está “gueguelando”.
Eu
ficava meio sem graça, mas não me emendava. E os outros pegavam carona no
chiste criado pela vovó. Tudo que eu dizia era motivo para alguém retrucar:
— Tá
gueguelando, hein?
Mesmo
quando eu não estava. Mesmo quando a verdade saia pura e cristalina. Foi aí que
minha avó me contou a fábula do pastorzinho mentiroso que gritava pelos
companheiros:
—
Acudam, acudam, tem um lobo atacando o rebanho!
Quando
os outros chegavam, em seu socorro, o tal pastorzinho bolava de rir, pois não
havia lobo nenhum. E isso se repetiu muitas vezes. Mas um dia o lobo veio mesmo
e começou a devorar as melhores crias do rebanho. O pastorzinho apavorado
gritava pelos companheiros, mas ninguém veio em seu socorro. Era o preço da
mentira, dizia a vovó. A lição me serviu e passei a evitar a mentira. Em
compensação passei a arremedar os outros. Nos gestos, na fala, nos tiques.
Triste daquele que eu me punha a imitar. Eu copiava o que havia de mais
desajeitado ou ridículo e elevava ao cubo. À quintessência. As pessoas morriam
de rir e eu aproveitava a ocasião para fazer uma coleta de moedas para o meu
cofrinho de lata.
Por
esse tempo eu já beirava os sete anos e havia saído da barra das saias das
matriarcas da família. A influência de minha avó, de mamãe e da tia Augediva,
que cuidava de mim na maior parte do tempo, ia diminuindo a cada dia, sobretudo
depois que tio Everardo me deu um
trinchete de presente e me botava na garupa do cavalo ou na lua da sela,
para incursões pelos arredores do Ouro Preto. Era nos balcões das bodegas que
eu me abastecia de um repertório novinho em folha de boas histórias para
contar. Contar causos arremedando os outros era a minha especialidade.
* * *
Tudo
corria mais ou menos nesse pé. O inverno tornava-se mais rigoroso a cada dia. O
pessoal do Pau D’Arcal, cliente da bodega do vovô, queixava-se que a terra
estava toda brejada e que teriam grande prejuízo, pois as plantações amofinavam
por excesso de chuva. As mercadorias não chegavam para repor o estoque da
bodega porque as estradas estavam todas cortadas. O paiol de rapadura virou um
melaço, com a friagem. Caíram muitas pontes e as estradas carroçáveis se
transformaram em terríveis atoleiros. Dona Clara, esposa do “seu” Zé Canhoto,
morador de meu avô estava em dias de ganhar menino. Foi um sufoco danado. Parto
difícil. A mulher estava às portas da morte por falta de socorro. Meu tio José
Oswaldo passou a perna num cavalo e foi na Madalena buscar o velho Benoni, um
dentista prático que também fazia vezes de parteiro. Foi uma novela para transpor
o atoleiro dos “Sete Pecados” e a travessia do Rio Cacimbinha foi feita numa
balsa. Em Macaóca ele teve que subir numa jangada improvisada: uma porta
amarrada sobre a câmara de ar de um pneu de trator.
Já
de volta, outro problema. Mestre Benoni ficou indeciso quando viu a cheia do
rio e a fragilidade da embarcação. Foi preciso ministrar-lhe uma terça de
cachaça da mais braba que havia e botá-lo quase a força em cima do pequeno
transporte fluvial. Titio que gostava de botar uma pitada de humor em tudo que
dizia, contava que o velho Benoni parecia um cururu tei-tei, encarapitado em cima da balsa. Quando chegou à casa da
parturiente, o bebê já havia morrido no ventre da mãe e foi extraído a muito
custo. Dona Clara sobreviveu, para alegria do marido e da filharada, que já
passava de dez.
* * *
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