quarta-feira, 2 de setembro de 2015

DO LIVRO DAS CRÔNICAS - Parte V

1974: O ano em que me entendi por gente – Parte II
NO TEMPO EM QUE EU “GUEGUELAVA”

Minha tia Heliodória chegara do Rio Grande do Norte e trouxera um namorado. O fato causou certo espanto, pois ela havia saído de casa para um colégio de freiras, a fim de seguir a carreira religiosa. Quando todos pensavam que ela chegaria envergando o hábito de Carmelita descalça, eis que a “Dodóia” aparece com um noivo a tiracolo. O rapaz era o Gabriel. Gabriel Lopes da Silva, de São Paulo do Potengi, município do Rio Grande do Norte. Figura agradável, de prosa farta e fluente, conquistou a simpatia de todos (ou quase todos). Gostava de conversar com as crianças, propunha brincadeiras, era prestativo com os adultos, enfim, diziam que seu único defeito era mentir.
Eu, particularmente não acho que isso seja um defeito, conquanto não se utilize a mentira para prejudicar os outros. O Gabriel apenas enfeitava as histórias com muito engenho e arte. Seria um literato dos bons, caso tivesse se dedicado ao ofício. Como o Chicó, personagem de Ariano Suassuna, o Lopim mentia por amor a arte, sem o intuito de ofender ou prejudicar ninguém. As histórias contadas ao pé da letra, do jeito que realmente acontecem são tão enfadonhas. Nesse caso, a mentira é uma vara de condão que transforma uma abóbora chocha e acanhada numa linda e resplandecente carruagem e um punhado de camundongos fedorentos num séquito de elegantes cocheiros e lacaios, como na história da Gata Borralheira.
Nosso parente Raimundo Pereira Viana havia reinado absoluto no ofício, antes da chegada do Lopim. Em certos momentos, lembrava o Pantaleão, personagem do Chico Anysio, que por sua vez fora inspirado em Alexandre, de Graciliano Ramos, um potoqueiro de peso e medida. O Pereira era um profissional competente. Mesclava histórias reais e bem verossímeis com outras bem cabeludas. E se alguém duvidava ele se remexia na cadeira, temperava a garganta, batia nas pernas com as palmas da mão e dizia:
— Pois foi com toda real certeza!
Ninguém duvidava mais. Exceto minha avó, que fazia um leve ar de riso e balançava a cabeça de maneira quase imperceptível. Eu não perdia um detalhe dessas conversas e comecei a me especializar também na arte de enfeitar histórias. Havia um parente nosso, que não cheguei a conhecer, que era profissional dos mais gabaritados, o tio Miguel Viana, irmão de minha bisavó Mercês. Quando eu preguei as primeiras mentiras vovó arregalou os olhos e disse:
— Esse menino puxou à bênção do tio Miguel Viana. Esse negócio não foi desse jeito. Conte essa história direito, meu filho...


Lá se ia eu remendar a história e contar como realmente acontecera: insossa, desenxabida, medíocre e sem graça. Por que não me deixavam exercitar as artes de “literato”, como faziam livremente o Raimundo Viana e o Gabriel? Até o João da Graça, empregado do meu avô, podia contar suas meias verdades impunemente, a céu aberto. Com o passar do tempo, a referência ao tio Miguel Viana virou um verbo. O verbo Miguelar ou “gueguelar”, como preferia a Alzirinha, minha avó:
— Esse menino está “gueguelando”.
Eu ficava meio sem graça, mas não me emendava. E os outros pegavam carona no chiste criado pela vovó. Tudo que eu dizia era motivo para alguém retrucar:
— Tá gueguelando, hein?
Mesmo quando eu não estava. Mesmo quando a verdade saia pura e cristalina. Foi aí que minha avó me contou a fábula do pastorzinho mentiroso que gritava pelos companheiros:
— Acudam, acudam, tem um lobo atacando o rebanho!
Quando os outros chegavam, em seu socorro, o tal pastorzinho bolava de rir, pois não havia lobo nenhum. E isso se repetiu muitas vezes. Mas um dia o lobo veio mesmo e começou a devorar as melhores crias do rebanho. O pastorzinho apavorado gritava pelos companheiros, mas ninguém veio em seu socorro. Era o preço da mentira, dizia a vovó. A lição me serviu e passei a evitar a mentira. Em compensação passei a arremedar os outros. Nos gestos, na fala, nos tiques. Triste daquele que eu me punha a imitar. Eu copiava o que havia de mais desajeitado ou ridículo e elevava ao cubo. À quintessência. As pessoas morriam de rir e eu aproveitava a ocasião para fazer uma coleta de moedas para o meu cofrinho de lata.
Por esse tempo eu já beirava os sete anos e havia saído da barra das saias das matriarcas da família. A influência de minha avó, de mamãe e da tia Augediva, que cuidava de mim na maior parte do tempo, ia diminuindo a cada dia, sobretudo depois que tio Everardo me deu um trinchete de presente e me botava na garupa do cavalo ou na lua da sela, para incursões pelos arredores do Ouro Preto. Era nos balcões das bodegas que eu me abastecia de um repertório novinho em folha de boas histórias para contar. Contar causos arremedando os outros era a minha especialidade.

* * *

Tudo corria mais ou menos nesse pé. O inverno tornava-se mais rigoroso a cada dia. O pessoal do Pau D’Arcal, cliente da bodega do vovô, queixava-se que a terra estava toda brejada e que teriam grande prejuízo, pois as plantações amofinavam por excesso de chuva. As mercadorias não chegavam para repor o estoque da bodega porque as estradas estavam todas cortadas. O paiol de rapadura virou um melaço, com a friagem. Caíram muitas pontes e as estradas carroçáveis se transformaram em terríveis atoleiros. Dona Clara, esposa do “seu” Zé Canhoto, morador de meu avô estava em dias de ganhar menino. Foi um sufoco danado. Parto difícil. A mulher estava às portas da morte por falta de socorro. Meu tio José Oswaldo passou a perna num cavalo e foi na Madalena buscar o velho Benoni, um dentista prático que também fazia vezes de parteiro. Foi uma novela para transpor o atoleiro dos “Sete Pecados” e a travessia do Rio Cacimbinha foi feita numa balsa. Em Macaóca ele teve que subir numa jangada improvisada: uma porta amarrada sobre a câmara de ar de um pneu de trator.
Já de volta, outro problema. Mestre Benoni ficou indeciso quando viu a cheia do rio e a fragilidade da embarcação. Foi preciso ministrar-lhe uma terça de cachaça da mais braba que havia e botá-lo quase a força em cima do pequeno transporte fluvial. Titio que gostava de botar uma pitada de humor em tudo que dizia, contava que o velho Benoni parecia um cururu tei-tei, encarapitado em cima da balsa. Quando chegou à casa da parturiente, o bebê já havia morrido no ventre da mãe e foi extraído a muito custo. Dona Clara sobreviveu, para alegria do marido e da filharada, que já passava de dez.


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