1974: O ANO EM QUE
ME ENTENDI POR GENTE
O ano de 1974 foi atípico. A começar
pela experiência do dia de Santa Luzia, realizada por minha avó na noite de 12
para 13 de dezembro do ano anterior, a primeira do gênero que testemunhei. Vovó
pegou uma tábua de pinho, colocou seis pedrinhas de sal e escreveu a lápis os
nomes dos seis primeiros meses do ano vindouro. Cheio de curiosidade, perguntei
como funcionava aquela experiência e ela explicou-me pacientemente. No dia
seguinte, as pedrinhas seriam examinadas e se estivessem úmidas haveria bom
inverno. Se amanhecessem secas, contudo, seria justamente o contrário. Torci
para que amanhecessem alagadas pois meu avô havia preparado um enorme terreno
para o plantio de um roçado e vivia pedindo chuva todo santo dia. Acho que até
novena fizeram, pedindo bom inverno, fartura de gêneros, muita água e pasto
para o gado. Em seguida, vovó pôs a dita tábua no frechal da cozinha e fomos nos deitar. De manhãzinha acordei com
suas exclamações de espanto:
— Manuel, venha cá! Veja isso... As
pedrinhas derreteram todas. Vamos ter o maior inverno dos últimos tempos no ano
que vem.
— Louvado seja Deus, minha velha!
Estamos mesmo precisando de chuva...
Levantei-me às pressas, com os olhos
ainda embaraçados pelo sono e dirigi-me à cozinha onde meus avós testemunhavam
os efeitos da dita experiência. Seguindo a velha crença popular, seria inverno
de cabo a rabo. Nos meses de março e abril as pedras haviam se dissolvido de
tal maneira, que a salmoura escorria pelas bordas da tábua. A partir de então,
todas as pessoas que chegavam eram convidadas a ver aquele pequeno fenômeno do
misticismo sertanejo, sempre taxado de crendice e abusão pelos entendidos da
Ciência. Religiosidade à parte, penso eu que as pedras de sal servem para medir
a umidade relativa do ar no período que antecede a quadra invernosa.
Profetas da Chuva - evento promovido pela UNILAB
Naquele tempo vovô não andava bem de
saúde. Padecia dos sintomas de uma gastrite renitente, fumava compulsivamente e
zangava-se com facilidade. Vovó dizia que ele andava enfezado e impertinente e
procurava tratá-lo com brandura, para não exasperá-lo. Eram sintomas de uma
úlcera que quase o levou a morte, mas, felizmente, tudo foi superado. Falarei
sobre isso mais adiante.
Eu já tinha seis anos de idade e
começava a compreender melhor o ambiente que me cercava. Sempre fui observador
e procurava me inteirar de tudo. Naquele tempo, minha maior preocupação era
ajuntar moedas numa lata vazia de leite em pó, para gastar na noite de Natal,
em Canindé. Eu sabia exatamente o que desejava comprar com aquele dinheiro,
poupado ao longo dos meses. Ninguém escapava à minha coleta. Os namorados de
minhas tias eram minhas vítimas preferidas quando se tratava de arranjar mais
um níquel para o meu cofrinho improvisado.
Foi mais ou menos por esse tempo que
começaram a me alfabetizar e o meu fetiche eram os versos e romances da maleta
de minha avó. Até àquela época ninguém chamava folheto de feira de “cordel”.
Foi um apelido bem tardio, posto por pesquisadores europeus que andaram por
aqui procurando chifre em cabeça de cavalo. Eu queria adquirir novos títulos
nos festejos de Canindé e, se possível, um brinquedo também, com aquelas moedas
que vinha ajuntando pacientemente. Mal sabia eu que mamãe tinha outros projetos
e praticamente obrigou-me a comprar um par de sapatos com as minhas moedas.
Quando falei em brinquedo ela foi taxativa:
— Maaaaarrrrr menino!... Seu dinheiro acabou!
— Acabou? Como?
— Ora mais esta... Mal deu para
comprar o seu par de sapatos. Deixe de aperrear senão da próxima vez não lhe
trago mais para Canindé.
A revelação feita assim, a queima
roupa, pareceu-me uma machadada no quengo de um bode magro. A sorte é que meu
avô me deu mais uns trocados e pude, finalmente, adquirir os tão desejados
folhetos de feira, que estavam espalhados sobre uma lona na Praça Thomaz
Barbosa, centro de Canindé. Eram centenas de títulos, das duas editoras de
Juazeiro e também de João José e Manoel Camilo dos Santos. O folheteiro era um profissional
bem traquejado no ofício e cantava trechos dos romances. No ápice da leitura,
fechava o folheto e dizia:
— Quem quiser saber o resto, vai ter
que comprar o livrinho.
Quase todo mundo comprava. Eu me
peguei com “O Príncipe do Barro Branco e a Princesa do Reino do Vai-não-torna”,
de Severino Milanês da Silva e um exemplar de “O grande debate de Lampião com
São Pedro”, do genial José Pacheco da Rocha. Ainda quis adquirir os dois
volumes do Cancão de Fogo mas o dinheiro não deu. Ficou para outra ocasião.
Lembro-me que algumas pessoas da família me criticavam dizendo que eu tinha mania
de gente velha, que na minha idade seria normal adquirir um livro infantil, uma
revista em quadrinhos e não aqueles romances com cheiro de coisa passado. Os
matutos já procuravam se modernizar, renegando Luiz Gonzaga, Jackson do
Pandeiro e a poesia popular, substituindo-os pelas canções da Jovem Guarda e até mesmo por estrelas da
música internacional.
Eu já nasci teimoso. E autêntico. Eu
gostava mesmo era de forró e não perdia uma audição do programa “Guajará no
Varandão”, onde o apresentador (o saudoso Guajará Cialdini) costumava declamar
poemas de Zé da Luz, Patativa do Assaré, Jotamaro e Alberto Porfírio. Por ali
desfilavam as canções de Luiz Gonzaga, Marinês, Ary Lobo, Jackson do Pandeiro,
Dominguinhos e Trio Nordestino. A linguagem do apresentador não tinha aqueles
floreios urbanos que a gente escutava nos demais programas. Era uma prosa telúrica,
com gosto de café torrado no caco.
Chegou o compadre Janeiro, como
diziam os matutos e o inverno veio mesmo. Torrencial, abundante, desabusado
como havia predito a experiência das pedrinhas de sal. O bom presságio fora
também confirmado pela barra do alegre Natal. De repente as chuvas começaram a
cair em excesso e as preocupações de meu avô foram aumentando a cada dia,
agravando ainda mais o seu quadro de saúde. Foi no meio dessa invernada, com
estradas encharcadas de lama, pontes quebradas, açudes arrombados, serras
derretendo a olhos vistos, que meu avô caiu de cama gravemente enfermo. Com
tanta coisa acontecendo ao meu redor comecei gradativamente a afastar-me das
brincadeiras despreocupadas de criança e, pela primeira vez, pensei no futuro.
O que seria de nós sem o vovô, mola mestra daquela família? Dizem que aos sete
anos a criança começa a tomar consciência de seus atos... Antes disso as memórias
que guardo da primeira infância são fragmentadas, encobertas por uma névoa difusa.
Depois tudo ficou claro como uma pedra de malacacheta rebrilhando ao sol. Para
mim, 1974 foi um ano que ficou na história.
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