Fortaleza - Praça José de Alencar (anos 1970) - Do site Fortaleza Antiga
Dividi um livro de memórias que estou escrevendo em três capítulos: GÊNESIS
SERTANEJA (onde trato da origem dos meus ancestrais até as novas gerações);
ÊXODO RURAL (do abandono da terra de origem rumo ilusão das capitais) e LIVRO
DAS CRÔNICAS (relembranças da infância). O "Livro das Crônicas" ganhava
novas pinceladas a cada dia. A tela da memória é fragmentada e nem sempre
apresenta as imagens com nitidez ou por ordem cronológica. São peças de um quebra-cabeças que
já se perdeu na poeira do tempo. É preciso paciência para reconstituí-lo e,
mais ainda, torná-lo palatável para o leitor. Andei lendo, confesso, as memórias de José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Humberto de Campos, Viriato Correia, Gustavo Barroso, Herman Lima e outros autores menos famosos. Em cada um deles a gente identifica traços em comum com aquilo que retemos na lembrança. Essa crônica singela que ora reproduzo, retrata meu primeiro encontro com o trem, em Quixeramobim e minha primeira visita à capital, à bordo de uma composição da RFFSA, que fazia a linha Maracanaú-Fortaleza:
Estação Ferroviária de Maracanaú
O TREM –
PRIMEIRA VEZ EM FORTALEZA
A
primeira vez que vi o trem foi no Quixeramobim. Eu tinha uns três ou quatro
anos e naquele momento meus pais visitavam o Acrísio da Tia dos Reis, que
residia num casarão próximo à ponte metálica. Em dado momento sai da vista dos
adultos e fui brincar na linha férrea. Naquele tempo os trens de passageiros
ainda cruzavam os nossos sertões e a sua presença era um deslumbramento para os
matutos que vinham lá dos cafundós. Quando a locomotiva apitou para dar a
partida foi que meus pais perceberam a minha falta e me encontraram justamente
nos trilhos, onde a máquina haveria de passar. Fui salvo pelo gongo, ou melhor,
pelo apito do trem. Para falar a verdade eu nem sabia o que era aquela fila de
“casinhas” com rodas, cheias de cabeças nas janelas. Só quando a locomotiva se
pôs em movimento é que percebi tratar-se de uma fila de carros atrelados,
puxados por uma máquina barulhenta e fumegante, verdadeiro monstrengo que
bufava em nossa direção, soltando apitos estridentes e colunas de fumaça pelo
ar.
Passei
então a ter um misto de medo e fascínio pelo trem, mas a primeira viagem só
aconteceria bem depois, mais precisamente em janeiro de 1978, quando vim
estudar em Maracanaú. Minha mãe precisava comprar meus livros e algumas peças
do meu enxoval, já que dali em diante iria morar na casa alheia. Compramos os
nossos bilhetes cedinho, na estação de Maracanaú e fizemos um animado trajeto
até a Estação Central, em Fortaleza, com várias paradas pelo caminho. Eu só conhecia Fortaleza através de vagas
informações de parentes ou referências de livros didáticos que davam como
fundadores Martins Soares Moreno e/ou o holandês Mathias Beck, o homem que
ergueu o Forte Schoonenborch, no topo da colina Marajaitiba.
Foi
um deslumbramento entrar em Fortaleza pela primeira vez numa manhã ensolarada,
vendo tudo pela janela do trem. Mondubim, Parangaba e depois o Centro, com suas
lojas imensas e movimento tão intenso como eu só havia visto parecido nos
festejos de São Francisco, em Canindé.
Agarrei-me
a mão de minha mãe com medo de ser atropelado. Minhas primas, acostumadas com o
trânsito de Fortaleza, sabiam o que era mão única. Eu, por prudência e
desconfiança, só atravessava quando olhava para os dois lados. Aí foi a vez de
visitar as lojas de departamento, subir e descer em escadas rolantes e namorar
com os estojos de tinta guache, pincéis atômicos, réguas, compassos e outros
materiais de desenho. Me deram um livro ilustrado com a história do Rei Midas,
que li de um só fôlego assim que cheguei em casa.
Fiquei
chateado porque não deu tempo ver o mar. Na verdade, a visita limitou-se ao
centro da cidade. Praças da Estação, José de Alencar e do Ferreira e as ruas
principais do centro histórico. Curioso, como sempre fui, procurei guardar na
memória alguns pontos de referência, para o caso de um dia precisar andar
sozinho por ali. Meses depois vim na companhia do meu pai e falei novamente do
desejo que tinha de ver o mar. Era uma manhã de domingo. O centro estava vazio
e esquisito, as lojas fechadas, tudo bem diferente daquela vez anterior. Descemos
ali em direção à Santa Casa de Misericórdia e das varandas do Passeio Público
tive a primeira visão do Atlântico. Um despropósito, uma imensidão de água em
movimento, despejando ondas na areia da praia. Um deslumbramento para um menino
nascido e criado no sertão.
Entrar
na água, nem pensar. Como sempre eu andava de calça comprida e sapato. Nem meu
pai estava a fim de prolongar aquele passeio. Foram somente uns quinze minutos
de contemplação dos verdes mares bravios, mas foi amor à primeira vista. Ainda
hoje me encanto diante do mar que banha a “Loura desposada do sol”.
Arievaldo Vianna
P.S. - E como se diz no anedotário popular, foi essa a primeira vez que vi o “açudão do governo”, Deu até vontade perguntar naquele momento:
—
Pai, onde é que fica a parede desse bichão?
Nenhum comentário:
Postar um comentário