sábado, 2 de fevereiro de 2019

PAPO DE ESCRITORES (2)



Conversas de Graciliano Ramos
com Joel Silveira (II)

Aqui vai o texto de Graciliano Ramos, tal e qual me foi entregue e tal e qual foi publicado na Vamos Ler”:
“Nasci em 27 de outubro de 1892, em Quebrangulo, Alagoas, donde saí aos dois anos. Meu pai, Sebastião Ramos, negociante miúdo, casado com a filha de um criador de gado, ouviu os conselhos de minha avó, comprou uma fazenda em Buique, Pernambuco, e levou para lá os filhos, a mulher e os cacarecos. Ali a seca matou o gado - e seu Sebastião abriu uma loja na vila, talvez em 95 ou 96. Da fazenda conservo a lembrana de Amaro Vaqueiro e de José Baía. Na vila conheci André Laerte, cabo José da Luz, Rosenda lavadeira, padre José Inácio, Felipe Benício, Teotônio Sabiá e familia, seu Batista, dona Marocas, minha professora e mulher de seu Antônio Justino, personagem que utilizei muitos anos depois.
“Aprendi a carta de ABC em casa, aguentando pancada. O primeiro livro, na escola, foi lido em uma semana, mas no segundo encrenquei: diversas viagens à fazenda de um avó interromperam o trabalho, e logo no começo do volume antipático, a história besta dum Miguelzinho que recebia lições com os passarinhos fechou-me, por algum tempo, o caminho das letras. Meu avô dormia numa cama de couro cru, e em redor da trempe de pedras, na cozinha, a preta Vitória mexia-se, preparando comida, acocorada. Dois currais, o chiqueiro das cabras, meninos e cachorros numerosos, soltos no pátio, cobras em quantidade. Nesse meio e na vila passei os meus primeiros anos. Depois seu Sebastião aprumou-se e em 99 foi vier em Viçosa, Alagoas, onde tinha parentes. Aí entrei no terceiro livro e percorri várias escolas, sem proveito. Como levava uma vida bastante chata, habituei-me a ler romances. Os indivíduos que me conduziram a esse vício foram o tabelião Jerônimo Barreto e o agente do correio Mário Venâncio, grande admirador de Coelho Neto e também literato, autor dum conto que principiava assim: “Jerusalém, a deicida, dormia sossegada à luz pálida das estrelas. Sobre as colinas pairava uma tênue neblina, que era como o hálito da grande cidade adormecida”. Um conto bonito, que elogiei demais, embora intimamente preferisse o de Paulo de Kock e o de Júlio Verne. Desembestei para a literatura. No colégio de Maceió, onde estive pouco tempo, fui um aluno medíocre. Voltei para Viçosa, fiz sonetos e conheci Paulo Honório que em um dos meus livros aparece com outro nome. Aos dezoito anos fui com a minha gente morar em Palmeira dos Índios. Fiz algumas viagens a Buíque, revi parentes do lado materno, todos em decadência. Em começo de 14, enjoado da loja de fazendas de meu pai, vim para o Rio, onde me empreguei como foca de revisão. Nunca passei disso.

Em fins de 1915, embrenhei-me de novo em Palmeira dos Índios. Fiz-me negociante, casei-me, ganhei algum dinheiro, que depois perdi, enviuvei, tornei a casar, enchi-me de filhos, fui eleito Prefeito e enviei dois relatórios ao Governador. Lendo um desses relatórios, Schmidt (Nota: Augusto Frederico Schmidt, o poeta e editor) imaginou que eu tinha algum romance inédito e quis lança-lo. Realmente, o romance existia, um desastre. Foi arranjado em 1926 e apareceu em 1933. Em princípio de 1929 larguei a Prefeitura e dias depois fui convidado pra diretor da Imprensa Oficial. Demiti-me em 1931. No começo de 1932 escrevi os primeiros capítulos de São Bernardo”, que terminei quando saí do hospital. As recordações do hospital estão em dois contos publicados ultimamente, um em Buenos Aires, outro aqui. Em janeiro de 1933 nomearam-me diretor da Instrução Pública de Alagoas à disparate administrativo que nenhuma revolução poderia justificar. Em março de 1936, no dia em que me afastava desse cargo, entreguei  à datilógrafa as ultimas páginas de Angústia”, que saiu em agosto do mesmo ano, se não estou enganado, e foi bem recebido, não pelo que vale, mas porque de algum modo me tornei conhecido, infelizmente.
“Mudei-me para o Rio, ou antes, mudaram-me para o Rio, onde existo agora. Aqui fiz o meu último livro, história mesquinha - um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos. Certamente não ficarei na cidade grande. Projetos não tenho. Estou no fim da vida, se é que a isto se pode dar o nome de vida. Instrução quase nenhuma. José Lins do Rego tem razão quando afirma que a minha cultura, moderada, foi obtida em almanaque”.

IN: SILVEIRA, Joel. Na fogueira: memorias. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p.278-279.
Publicada originalmente na Revista Vamos Ler, início de 1939




Joel Silveira



Texto de PLÍNIO BORTOLOTTI

Graciliano Ramos, Joel Silveira, Mário de Andrade e os tostões da literatura
Plinio Bortolotti

Eu vou contar uma coisa para vocês. Para mim, não existe melhor escritor brasileiro do que Graciliano Ramos. Podem pôr de balaiada qualquer outro, incluindo Guimarães Rosa [Machado de Assis, este eu vou ficar quieto, pois estava na melhor das considerações do mestre Graça. De Rosa, ele votou contra o seu livro Sagarana em um concurso; depois se tornaram amigos – e Graciliano só tinha palavras gentis para Rosa.]
Sempre volto a Graciliano: inclusive porque ele tem muitas lições a dar a jornalistas – de como se deve escrever um texto. Eu tento ser aluno aplicado, mas não lhe serviria nem de escabelo.
Tenho-lhe a coleção completa.
Veio-me Graciliano devido a duas postagens recentes neste blog.
Sou mais Joel Silveira [em comparação com Gay Talese] e
Vale Cultura, Dimenstein e a elite cultivada
Pois fui me lembrar do mestre Graça por um texto dele, de 1939, em que ela fala justamente de Joel Silveira [só elogios] e sobre Mário de Andrade, que acusava “mau gosto” na literatura brasileira. Vejam diretamente na lavra de Graciliano:
Os tostões do sr. Mário de Andrade
Graciliano Ramos
O sr. Mário de Andrade, há algum tempo, lamentando o mau gosto e a imperícia que atualmente reinam e desembestam na literatura nacional, utilizou uma imagem espirituosa e monetária: dividiu os nossos escritores em duas classes – a dos contos de réis, pelo menos centenas de mil-réis, onde se metem alguns indivíduos que arrumam idéias com desembaraço, e a dos tostões, gavetinha que encerra criaturas de munheca emperrada e escasso pensamento. O sr. Joel Silveira, sergipano bilioso, incluiu-se modestamente na segunda categoria, tomou a defesa do troco miúdo, dos níqueis literários que enchem revistas, jornais, cafés, livrarias, cômodos ordinários em pensões do Catete.
Enquanto o autor de Macunaíma exige acatamento à tradição e à regra, o jovem contista de Onda Raivosa se mostra desabusado e rebelde: não chega a atacar a cultura, mas refere-se a ela com tristeza, julga-a remota e inacessível ao homem comum.
Há uma técnica na arte, diz o sr. Mário de Andre. Romain Rolland foi mais longe: afirmou, creio eu, que a arte é uma técnica. O moço nortista repele semelhantes exigências. Vivemos arrasados, o numerário foge, há dívidas abundantes e falta-nos vagar para os cortes, as emendas necessárias. Não faz mal que a produção artística saia capenga.
O que nos desagrada nessa questão, hoje morta, é notar que o crítico paulista, colando em alguns escritores etiquetas com preços muito elevados e rebaixando em demasia o valor de outros, vai tornar antipática a boa causa que defende, prepara terreno para o paradoxo sustentado pelo sr. Joel Silveira. E teremos então uma demagogia louca. “Somos tostões, perfeitamente, um considerável número de tostões. Some tudo isso e verão a quantia grossa que representamos.”
Não há nada mais falso. Mas os indivíduos que se imaginam com boa cotação no mercado naturalmente se encolhem, silenciosos por vaidade ou por não quererem molestar os níqueis comparando-se a eles. E as moedinhas devem andar rolando por aí, satisfeitas, areadas, brilhantes, pensando mais ou menos assim: “Joel Silveira é dos nossos, inteiramente igual a qualquer um de nós. Ignorante que faz medo, nunca leu um livro. Conversa mal, não vai além dessas pilhérias que a gente larga nos cafés. Mora numa casa cheia de pulgas, é amarelo como flor de algodão e tem a fala arrastada. Pobrezinho, com certeza come pouco ou não come. Pensa pouco ou não pensa. Um tostão como eu, como tu, como aquele. Podemos supor que Joel Silveira valha mais de um tostão? Não podemos, razoavelmente, porque ele chegou perto de nós e gritou: Eu sou um tostão. Entretanto Joel Silveira inventa uns negócios que sujeitos entendidos elogiam. Ora se Joel, tão arrastado, tão amarelo, tão barato, faz contos e crônicas interessantes, por que não faremos nós coisa igual? Mexamo-nos, fundemos sociedade e pinguemos em revistas os nossos cinco vinténs na literatura.”
Um desastre. É necessário pôr fim a essa confusão, que nos pode render muito prejuízo. Já existe por aí uma quantidade enorme de livros ruins. E o sr. Joel Silveira não é um tostão, nunca foi. Escreveu um excelente artigo para demonstrar que não sabe escrever.


Joel Silveira


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