Ilustração: Jô Oliveira
UM PROVINCIANO INCURÁVEL
Luís da Câmara Cascudo
Nunca pensei em deixar minha terra.
Queria saber a história de todas as
cousas do campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos ,
sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos.
Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do
passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço. Percepção
medular da contemporaneidade. Nossa casa no Tirol hospedou a Família Imperial e
Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo. Intimidade com a velha
Silvana, Cebola quente, alforriada na Abolição. Filho único de chefe político,
ninguém acreditava no meu desinteresse eleitoral. Impossível para mim dividir
conterrâneos em cores, gestos de dedos, quando a terra é uma unidade com sua
gente. Foram os motivos de minha vida expostos em todos os livros. Em outubro
de 1968 terei meio século nessa obstinação sentimental. Devoção aos mesmos
santos tradicionais.
Meu povo tem a mesma idade para o
interesse e a valorização afetuosa.
Dois homens quiseram fixar-me fora de
Natal: - Getúlio Vargas no Rio de Janeiro e Agamenon Magalhães no Recife.
Jamais os esquecerei, porque nada pedira. Alguém deveria ficar estudando o
material economicamente inútil. Poder informar dos fatos distantes na hora
sugestiva da necessidade.
Fiquei com essa missão. Andei e li o possível
no espaço e no tempo. Lembro conversas com os velhos que sabiam iluminar a
saudade. Não há um recanto sem evocar-me um episódio, um acontecimento, o
perfume duma velhice. Tudo tem uma história digna de ressurreição e de
simpatia. Velhas árvores e velhos nomes, imortais na memória.
Em 1946 fiz parte de uma comissão
enviada pelo Ministério das Relações Exteriores ao Uruguai. Éramos três:
Aloísio de Castro, Angione Costa e eu, único sobrevivente.
Voltando, contou-me Aloísio de Castro
que Afrânio Peixoto, sabendo da expedição cultural, dissera num leve riso – “E
ele deixou o Rio Grande do Norte? Câmara Cascudo é um provinciano incurável!”
Encontrara meu título justo, real,
legítimo.
PROVINCIANO INCURÁVEL !
Nada mais.
(Este texto, escrito pelo próprio Cascudo, foi
publicado pela primeira vez no livro Província, editado pela Fundação José
Augusto, em 1969. Desde então, tem sido presença obrigatória em qualquer obra
sobre Cascudo).
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