Raimundo
Albuquerque de Pinho é filho de uma tradicional família de Madalena, nascido em
1930. Quando jovem, trabalhou na Fazenda Teotônio, um complexo agro-industrial,
pertencente à época ao Sr. Gerardo Câmara. O Teotônio era um oásis de
prosperidade em meio à pobreza sertaneja. Depois largou-se mundo afora e
percorreu os quatro cantos do país, passando por Paraná, São Paulo, fixando-se
depois em Goiás onde trabalhou como ‘candango’ na construção de Brasília. Mesmo
distante de seu torrão, Albuquerque de Pinho procurou manter a sua identidade
sertaneja, alimentando-se com as histórias de sua gente, sem jamais perder de
vista a sua Madalena querida.
Era
afilhado de batismo do casal Raimundo Chagas e Almerinda Viana, pais do Dr. Galileu
Viana Chagas. Ao Galileu, devo a gentileza de uma cópia xerocada de um livro de
memórias escrito por Albuquerque de Pinho (Histórias
da Minha Terra), publicado em 2002, onde aparecem algumas crônicas bem
interessantes como “O canguçu da Itataia”,
que conta a origem do nome da localidade de Queimada da Onça; “A divina tragédia”, que narra as
peripécias de um pai-de-chiqueiro desembestado, puxando o andor de São Gonçalo
numa procissão e muitas outras crônicas interessantes onde desfilam personagens
irreverentes como Manezim Ilia (Elias),
Nogueira da Barra-Nova, Assis Macena, Mané do Óleo e Fama Roseira. O meu bisavô
Fitico aparece em duas histórias, ambas bem humoradas.
Raimundo Chagas, padrinho de Albuquerque de Pinho
Na
primeira delas o autor narra as peripécias que envolveram a sua primeira
comunhão, ocorrida por volta de 1940, ministrada pelo padre Jaime Felício.
Quando estava na fila da confissão, diz ele que ouviu “um tilintar de medalhas,
acompanhado de cochichos, sussurados por uma voz quase em lamento” que lhe
chamou atenção. Era meu bisavô Fitico, agarrado a um rosário e seguido de perto
pelo seu genro Mané Aderaldo. Assim diz o autor: “ambos, em atitude de extremo
respeito e piedade, de mãos espalmadas sobre o peito, contritos, desfiavam as
contas de seus rosários e com os olhares contemplativos, quase em êxtase,
olhando para o altar, pediam a Deus e à Virgem Padroeira, perdão para os crimes
que nunca cometeram.” O desfecho do conto é hilário... O padre ordena que o
menino conte os seus pecados e o coitado cai na besteira de dizer que havia
furtado umas canas e algumas frutas da propriedade de um tio. O padre ergue-se
do confessionário visivelmente exasperado o chamando de “ladrãozinho safado!”
Depois pergunta se ele “já conhecia mulher”. Ora, o coitado, longe de imaginar
o sentido capcioso da pergunta, lembrou-se que conhecia a mãe, a avó, as tias,
as vizinhas e respondeu desembaraçado:
—
Conheço, sim senhor!
Deixemos
o próprio Albuquerque de Pinho narrar o desfecho da tragédia:
“O
padre Jaime arregalou os olhos, estufou o peito, que de tão magro, mais parecia
a titela duma peitica, para fora do confessionário e, para espanto dos que
estavam na fila (no caso o Fitico e o Manezinho Aderaldo), pegou a minha
orelha, torceu-a até quase encostar a minha cara no chão e berrou:
—
Taí, seu safado, para você deixar de ser tão sem-vergonha e nunca mais fazer
isto!”
O
resultado foi uma penitência aloprada,
composta por dezenas de Padre-Nossos e Ave-Marias. O coitado do garoto mijou
nas calças, de tanto medo, e saiu dali encolhido, morto de vergonha, arrastando
os chinelos mijados pela nave da igreja.
* * *
A
outra anedota é intitulada “O NÓ DA GRAVATA” e tem o Fitico como um personagem
ativo da história. Como já foi dito anteriormente, Francisco de Assis de Souza,
o Fitico, esmerava-se no vestuário e jamais dispensou paletó e gravata. Isso pode
ser comprovado em todas as fotografias em que aparece, mesmo nas mais antigas.
Gostava de um bom terno de linho branco e uma gravata de cor para arrematar o
visual. Esse modo de vestir-se poderia até ser comum na capital e nas cidades
mais evoluídas do interior, mas naqueles cafundós sertanejos era uma notável
excessão.
A
história documentada por Albuquerque de Pinho lhe foi repassada pelo José
Raimundo da Vaca Serrada e teria ocorrido, segundo o autor, nas primeiras
décadas do Século XX. O Capitão Joaquim Felício de Castro, dono da fazenda
Açude, bisneto de um imigrante italiano que dera com os costados em
Quixeramobim no final do Século XVIII, herdara de seu ancestral um vistoso
suéter de couro de puma, que para não ser comido por traças e polias vinha sendo
conservado com pó de enxofre e breu, o que certamente lhe deixou impregnado de
um “cheiro de múmia”.
Joaquim
Felício era muito amigo de um certo João Macambira que morava no Pitanguá.
Certo dia, voltando com um comboio da Serra do Baturité, hospedou-se na
propriedade desse cidadão e daí nasceu uma grande amizade que foi cultivada
pelos anos seguintes. Depois da terrível Seca do Quinze (1915), o Capitão
recebeu certo dia um convite especial enviado por seu amigo do Pitanguá, para
participar do novenário do Divino Pai Eterno, que ali se celebrava da noite do
natal (24 de dezembro) ao dia 06 de janeiro, dia da Festa de Santo Reis.
Assegura
Albuquerque de Pinho, que o Capitão entendeu de comparecer a tal festejo
envergando uma camisa de seda e o tal casaco de couro de puma, herança do seu
antepassado. O problema era o nó da gravata, que o Felício não acertava e que
ninguém sabia fazer em roda de pelo menos umas duas ou três léguas. Foi aí que
ele lembrou-se de seu amigo Fitico do Castro, que residia bem distante de sua
moradia mas que era perito em dar qualquer espécie de nó, especialmente em
gravatas.
Depois
de cavalgar seis léguas, três pra lá, três pra cá, Joaquim Felício retornou
feliz da vida, com a sua gravata perfeitamente acomodada em volta do pescoço.
Dormiu assim e no dia seguinte empreendeu viagem para o Pitanguá, a fim de
atender o convite do amigo. Deixemos a cargo do próprio Albuquerque o desfecho
da história:
“Ali,
lhe estava reservado tudo o que havia de melhor: desde uma rede branca de
varandas, aos melhores petiscos da mesa. Foram quinze dias em que os dois
amigos deram vasta dimensão ao conhecimento de seus costumes e as origens de
suas cepas ancestrais.
No
último dia, porém, estava reservada ao visitante ilustre, uma surpresa. Seria o
pregoeiro do leilão, que culminaria com o encerramento daquela animada e
cerimoniosa festa. O Capitão estava impecável dentro do seu suéter que exalava
um intolerável odor balsâmico.
E,
entre os: ‘quem dá mais?’ (...), a vibração do martelo sobre a mesa, uma boa
dose de zinebra, com tira gosto de coxa de peru recheado, mais uma apertada no
nó da gravata que, a a estas alturas, depois de quinze dias e noites, presa ao
seu gogó, já não era possível distinguir suas franjas, assemelhando-se, no
dizer do Zé Raimundo, a um papo de urubu-rei”.
Concluindo
a história, Joaquim Felício retornou à sua fazenda Açude ainda com a maldita
gravata no pescoço e ao chegar em casa, depois de despir o velho suéter,
calças, e borzeguins, viu-se às voltas com o nó da gravata que não cedia nem a
custa de reza. Baldados todos os esforços, lembrou-se mais uma vez do seu amigo
Fitico:
“Depois
do almoço, montou mais uma vez o seu cavalo cansado e estropiado e dirigiu-se à
casa do seu Fitico, que depois de paciente malabarismo, conseguiu com um
pontudo sovelão de chifre de veado, arrancar do seu pescoço aquela histórica e
malvada gravata que, daquele dia em diante, nunca mais apertou o pomo de Adão
do Capitão Joaquim Felício.”
Eu
não conheci o bisavô Fitico, mas cheguei a conhecer o tal sovelão de chifre de
veado a que se refere o Albuquerque de Pinho. Na sala de costura da minha avó,
ficava também o ‘santuário’ (um pequeno oratório de madeira escura, feito pelo
Chico Tomé) com as imagens dos santos de sua devoção, uma velha penteadeira e a
banca do rádio, um pequeno móvel com gaveta, onde estavam, dentre outras
relíquias, os óculos de aro de tartaruga que pertencera ao Fitico, o seu
exemplar do Escudo Admirável, poderoso livro de orações e o tal sovelão de chifre
de veado que eu gostava de usar para aplicar cutucões nas costelas de algum
primo distraído. O velho rádio a válvula, da marca Zilomag era um companheiro diário que divertia e informava,
sintonizado desde as primeiras horas da manhã até a boca-da-noite na Difusora
Cristal de Quixeramobim, Rádio Tupinambá de Sobral, Assunção e Uirapuru de
Fortaleza, quando cedia lugar às conversas do alpendre ou a leitura dos
folhetos de cordel na sala de jantar. Foi nesse aparelho que ouvi, pela
primeira fez, as cantigas de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Marinês, Ari
Lobo, Trio Nordestino e a sanfona inconfundível do Noca do Acordeón, embora
minhas tias preferissem os programas de “Jovem Guarda” com o “Rei” Roberto
Carlos e seu séquito de cafonas. Sinto saudades de locutores como Aurélio
Brasil, Guajará Cialdini, Wilson Machado e José Lisboa, homens de prosa fluente
e agradável, que valorizavam a verdadeira música popular brasileira. Dos
remanescentes dessa “Velha Guarda” da radiofonia cearense, ainda temos a honra de
escutar as vozes marcantes de Cid Carvalho e Narcélio Limaverde, falando de um
tempo bom que não existe mais.
Aparelho receptor de rádio da marca ZILOMAG
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