Ilustrações: JÔ OLIVEIRA
Mestre Cascudo e O Livro das Velhas Figuras
A obra de Mestre Luís
da Câmara Cascudo me fascina. Não apenas por sua identificação com as raízes
culturais do povo brasileiro, sua variedade de cores e assuntos, mas, sobretudo
pela forma magistral como escrevia, numa linguagem acessível e gostosa como
água de quartinha. De uns tempos para cá tenho me interessado bastante pela
série intitulada O livro das velhas
figuras. E, a pedido do meu querido amigo Salomão Rovedo, leitor assíduo e
divulgador desse blog, vou iniciar a publicação de algumas “Actas Diúrnas”
extraídas dessa obra.
O
livro das velhas figuras é uma coletânea das Actas diurnas, escritas por
Cascudo para o Diário de Natal entre os anos de 1947 a 1952. Já foram
publicados cerca de 10 volumes enfeixando essas crônicas deveras saborosas e
interessantes.
Inicialmente publicaremos três dessas crônicas
e prometemos outras mais no decorrer deste ano. Algumas delas já foram
publicadas no site http://www.memoriaviva.com.br,
porém existem outras que pretendo digitar e trazer ao conhecimento dos leitores
do blog Mala de Romances. A principal preocupação durante a escolha foi mostrar
as várias faces de Cascudo: historiador, folclorista, professor, advogado,
jornalista, biógrafo, antropólogo, etnólogo, etc. Vamos a elas:
Acta Diurna 12
Natal-RN, 1 de agosto
de 1947
Satanás pregando quaresma
Alguns jornais falam da “intolerância”
católica e da necessidade da Igreja viver no tempo moderno com as chamadas
idéias modernas. Dizem que há muita velhice emperrada e teimosa no mecanismo
religioso do Vaticano e por isso a marcha ré é lenta e difícil no mundo atual.
O Sr. Carlos Duarte da Costa, ex-bispo de Botucatú, ex-bispo de Maura, mereceu
o privilégio de ser o primeiro Bispo brasileiro a ser excomungado no decurso de
quatrocentos anos. Sobre sua cabeça branca caiu o raio manejado pela Sagrada Congregação
do Santo Ofício em decisão de 24 de julho de 1947, a excomunhão maior, vitande,
isto é, a segregação de todos os católicos do mundo, a ordem do Papa que nenhum
fiel à Igreja Católica tenha comunicação com o sr. Carlos Duarte da Costa e
todos o evitem, vitando. Essa sentença zangou muita gente e se diz que o
excomugado vai passando otimamente, sagrando bispo e ordenando padres e na
Igreja Nacional que ele fundou e que conta com o noticiário da imprensa e o
carinho de um homem de intenção cinzenta. Não deixará o travesso ancião de
comer, beber, rir, viajar e pregar na sua seita, bem livre do castigo que lhe
caberia se estivesse na Idade Média, onde a excomunhão maior era a morte-civil.
Apenas nenhuma força de lógica culpará de
rigorismo, intolerância e ferocidade a sentença do Santo Ofício. O Sr. Carlos
Duarte da Costa era general que abandonou seu Rei em plena batalha e não
somente negou o julgamento à bandeira como arregimentou uma patrulha e está
combatendo estandartes e Rei de sua pátria originária e legítima. Em nenhum
país do mundo essa atitude será exaltada exceto pelo adversário que recebeu sua
adesão. Por causa do "colaboracionismo" de homem a homem, generais e
escritores, ricos e pobres, estão entrando no fuzil. Os jornais que protestam
são os mesmos a fazer berreiro estridente se um correligionário se passa para o
chefe político adverso. Imagine-se em matéria sagrada de sacerdócio... O dever
do Santo Ofício foi cumprido. Admoestação, excomunhão preliminar e depois a
maior, vitando. Acabou-se. A ovelha que chegara a pastor foi excluída do redil
porque se tornara lobo.
Ilustração de Jô Oliveira para o romance O BOI MISTERIOSO
Acta Diurna 13
Natal-RN, 2 de
setembro de 1947
Literatura popular
Há dias voltei a rever minhas notas sobre
a literatura popular a fim de escrever uma série de estudos para um jornal
do Rio de Janeiro.
É um assunto sugestivo mas não tem
merecido as simpatias dos eruditos. Estes, por vias de regra, são filólogos e a
aproximação se verifica no plano dos monumentos fontes da língua, cimelios
venerandos, cartapácios ilustres dos séculos XIII e XV, desafiando coragem e
sabedoria. A literatura popular é mais simples e fácil. Conta dos livrinhos
lidos pelo povo e desdenhados pelos letrados, pelos "cléricos" na
acepção de Julien Benda. Que lê o povo, quando lê? Lê Donzela Teodora,
Imperatriz Porcina, João de Calais, Princesa Magalona, Carlos Magno e os Doze
Pares de França, Roberto do Diabo, etc.
Esses opúsculos têm séculos e séculos de
existência e continuam sendo editados por anos, tendo público, admiradores,
devotos e mercado certo.
Ninguém atina com essa simpatia e a
fidelidade coletiva e uma meia dúzia de livrinhos seculares, através de modas,
escolas, temperamentos. Enquanto os literatos brigam e os jornais consagram
nomes que duram tão pouco, o povo segue lendo seus heróis, rindo com as velhas
galhofas, entusiasmando-se com as valentias e admirando penitências e
arrependimentos. Esses volumes existem e são renovados quase anualmente. São
reeditados em São Paulo e no Rio de Janeiro e quase todos possuem versões
poéticas, decoradas e declamadas. Essas versões são, em maioria nortistas,
impressas no Recife e em Belém.
Todos esses contos que o povo lê tem
origens dignas de pesquisa e conforto. E foram pesquisados e confrontados pelos
grandes mestres da novelística alemã, francesa, espanhola, portuguesa. Donzela
Teodora e Roberto do Diabo vêm do século XIII. Porcina, na redação portuguesa,
do tempo do rei D. Sebastião. Magalona estava impressa no Brasil antes de ser
encontrado. Carlos Magno é ainda mais antigo. João de Calais é o mais moço; vem
de meados do século XVIII.
Cantos e cantos de autos, novelas, contos,
patranhas foram espalhados nas terras americanas desde o descobrimento. Esses
foram os sobreviventes, os vitoriosos no tempo, guardadas pela leitura popular.
Merecem o respeito dos estudiosos. Valem como obras primas, douradas pelas
predileção coletiva.
Acta Diurna 9
Natal-RN, 11 de agosto
de 1947
Um brinquedo de vinte séculos
Há dias parei na esquina da Juvino Barreto
vendo uns garotos brincando o “jogo da pedrinha”. Não me julguem desocupado em
deter andadura para examinar brincadeira de menino. A brincadeira, o jogo
infantil, é um elemento precioso de informação. Mais, cheio de notícias do
passado, que um num livro de histórias. Ninguém admira como esses processos de
divertir uma criança tenham atravessado séculos, utilizados por milhares de
criaturas humanas, transmitidos oralmente, mecanicamente, de geração a geração.
Essa vitória sobre o tempo é um sinal de
vitalidade, de resistência, de força pragmática irresistível. Só o útil mesmo
útil em certa espécie, vence o tempo chega ao conhecimento de outros grupos
humanos alheios à origem.
O menino estava atirando para o ar umas
pedrinhas a parando-as com as costas da mão. Conforme o número que ficasse no
dorso, jogaria outras para o alto, apanhando rapidamente uma ou mais, das
restantes que ficasse no solo.
Um jogo complicado mas divertido e
absorvente porque os três guris estavam alheiados a tudo, seguindo com os olhos
as reviravoltas das pedrinhas. No Museu Nacional de Nápoles há uma linda e
grande âncora grega com um grupo de mulheres desenhadas. Uma das mulheres está
jogando as pedrinhas como o menino da Rua Juvino Barreto.
Os gregos chamavam a este jogo
“Astragalissimo” e em Roma “Pentalia”, alusivo ao número dos tentos que eram
cinco. O nome oficial e popular no Império Romano era Jogo dos Ossinhos. Os
legionários romanos eram doidos pelos ossinhos e levaram o jogo por todos os
recantos do mundo.
Duzentos anos antes de Jesus Cristo
nascer, o escritor grego Policles fez a bonita “Astragalizonte”, uma mocinha
jogando os ossinhos, os estragalos que são ossos do pé, na parte do tarso. A
estátua está, ou estava, no Museu de Berlim. Os ingleses e norte-americanos
dizem no “Kadchlebones” e na Espanha é Chinas y Chinos como na Beira
portuguesa. Conhecem-no por vários nomes em Portugal: Bato, Chocos, Jogas,
Bodelhas, também Pedras e Pedrinhas, o nome que veio e se fixou no Brasil. Em
França é o “Osselet”.
Ninguém jamais o aprendeu nos livros mas
vendo, tomando parte no atirar e aparar as pedrinhas. Jaime Lopes Dias
estudou-o em Portugal e dona Maria Cadilla de Martinez em Puerto Rico.
Quem diria que esse joguinho infantil
durasse mais do que muita glória humana!
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