sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

MAIS DO MESTRE CASCUDO


Ilustrações: JÔ OLIVEIRA


Mestre Cascudo e O Livro das Velhas Figuras


A obra de Mestre Luís da Câmara Cascudo me fascina. Não apenas por sua identificação com as raízes culturais do povo brasileiro, sua variedade de cores e assuntos, mas, sobretudo pela forma magistral como escrevia, numa linguagem acessível e gostosa como água de quartinha. De uns tempos para cá tenho me interessado bastante pela série intitulada O livro das velhas figuras. E, a pedido do meu querido amigo Salomão Rovedo, leitor assíduo e divulgador desse blog, vou iniciar a publicação de algumas “Actas Diúrnas” extraídas dessa obra.

     O livro das velhas figuras é uma coletânea das Actas diurnas, escritas por Cascudo para o Diário de Natal entre os anos de 1947 a 1952. Já foram publicados cerca de 10 volumes enfeixando essas crônicas deveras saborosas e interessantes.

     Inicialmente publicaremos três dessas crônicas e prometemos outras mais no decorrer deste ano. Algumas delas já foram publicadas no site http://www.memoriaviva.com.br, porém existem outras que pretendo digitar e trazer ao conhecimento dos leitores do blog Mala de Romances. A principal preocupação durante a escolha foi mostrar as várias faces de Cascudo: historiador, folclorista, professor, advogado, jornalista, biógrafo, antropólogo, etnólogo, etc. Vamos a elas:


Acta Diurna 12 
Natal-RN, 1 de agosto de 1947 



Satanás pregando quaresma

     Alguns jornais falam da “intolerância” católica e da necessidade da Igreja viver no tempo moderno com as chamadas idéias modernas. Dizem que há muita velhice emperrada e teimosa no mecanismo religioso do Vaticano e por isso a marcha ré é lenta e difícil no mundo atual. O Sr. Carlos Duarte da Costa, ex-bispo de Botucatú, ex-bispo de Maura, mereceu o privilégio de ser o primeiro Bispo brasileiro a ser excomungado no decurso de quatrocentos anos. Sobre sua cabeça branca caiu o raio manejado pela Sagrada Congregação do Santo Ofício em decisão de 24 de julho de 1947, a excomunhão maior, vitande, isto é, a segregação de todos os católicos do mundo, a ordem do Papa que nenhum fiel à Igreja Católica tenha comunicação com o sr. Carlos Duarte da Costa e todos o evitem, vitando. Essa sentença zangou muita gente e se diz que o excomugado vai passando otimamente, sagrando bispo e ordenando padres e na Igreja Nacional que ele fundou e que conta com o noticiário da imprensa e o carinho de um homem de intenção cinzenta. Não deixará o travesso ancião de comer, beber, rir, viajar e pregar na sua seita, bem livre do castigo que lhe caberia se estivesse na Idade Média, onde a excomunhão maior era a morte-civil.

     Apenas nenhuma força de lógica culpará de rigorismo, intolerância e ferocidade a sentença do Santo Ofício. O Sr. Carlos Duarte da Costa era general que abandonou seu Rei em plena batalha e não somente negou o julgamento à bandeira como arregimentou uma patrulha e está combatendo estandartes e Rei de sua pátria originária e legítima. Em nenhum país do mundo essa atitude será exaltada exceto pelo adversário que recebeu sua adesão. Por causa do "colaboracionismo" de homem a homem, generais e escritores, ricos e pobres, estão entrando no fuzil. Os jornais que protestam são os mesmos a fazer berreiro estridente se um correligionário se passa para o chefe político adverso. Imagine-se em matéria sagrada de sacerdócio... O dever do Santo Ofício foi cumprido. Admoestação, excomunhão preliminar e depois a maior, vitando. Acabou-se. A ovelha que chegara a pastor foi excluída do redil porque se tornara lobo.



Ilustração de Jô Oliveira para o romance O BOI MISTERIOSO


Acta Diurna 13 
Natal-RN, 2 de setembro de 1947 

Literatura popular

     Há dias voltei a rever minhas notas sobre a literatura popular a fim de escrever uma série de estudos para um jornal do Rio de Janeiro.

     É um assunto sugestivo mas não tem merecido as simpatias dos eruditos. Estes, por vias de regra, são filólogos e a aproximação se verifica no plano dos monumentos fontes da língua, cimelios venerandos, cartapácios ilustres dos séculos XIII e XV, desafiando coragem e sabedoria. A literatura popular é mais simples e fácil. Conta dos livrinhos lidos pelo povo e desdenhados pelos letrados, pelos "cléricos" na acepção de Julien Benda. Que lê o povo, quando lê? Lê Donzela Teodora, Imperatriz Porcina, João de Calais, Princesa Magalona, Carlos Magno e os Doze Pares de França, Roberto do Diabo, etc.

     Esses opúsculos têm séculos e séculos de existência e continuam sendo editados por anos, tendo público, admiradores, devotos e mercado certo.

     Ninguém atina com essa simpatia e a fidelidade coletiva e uma meia dúzia de livrinhos seculares, através de modas, escolas, temperamentos. Enquanto os literatos brigam e os jornais consagram nomes que duram tão pouco, o povo segue lendo seus heróis, rindo com as velhas galhofas, entusiasmando-se com as valentias e admirando penitências e arrependimentos. Esses volumes existem e são renovados quase anualmente. São reeditados em São Paulo e no Rio de Janeiro e quase todos possuem versões poéticas, decoradas e declamadas. Essas versões são, em maioria nortistas, impressas no Recife e em Belém.

     Todos esses contos que o povo lê tem origens dignas de pesquisa e conforto. E foram pesquisados e confrontados pelos grandes mestres da novelística alemã, francesa, espanhola, portuguesa. Donzela Teodora e Roberto do Diabo vêm do século XIII. Porcina, na redação portuguesa, do tempo do rei D. Sebastião. Magalona estava impressa no Brasil antes de ser encontrado. Carlos Magno é ainda mais antigo. João de Calais é o mais moço; vem de meados do século XVIII.

     Cantos e cantos de autos, novelas, contos, patranhas foram espalhados nas terras americanas desde o descobrimento. Esses foram os sobreviventes, os vitoriosos no tempo, guardadas pela leitura popular. Merecem o respeito dos estudiosos. Valem como obras primas, douradas pelas predileção coletiva.


Acta Diurna 9 
Natal-RN, 11 de agosto de 1947 



Um brinquedo de vinte séculos

     Há dias parei na esquina da Juvino Barreto vendo uns garotos brincando o “jogo da pedrinha”. Não me julguem desocupado em deter andadura para examinar brincadeira de menino. A brincadeira, o jogo infantil, é um elemento precioso de informação. Mais, cheio de notícias do passado, que um num livro de histórias. Ninguém admira como esses processos de divertir uma criança tenham atravessado séculos, utilizados por milhares de criaturas humanas, transmitidos oralmente, mecanicamente, de geração a geração.

     Essa vitória sobre o tempo é um sinal de vitalidade, de resistência, de força pragmática irresistível. Só o útil mesmo útil em certa espécie, vence o tempo chega ao conhecimento de outros grupos humanos alheios à origem.

     O menino estava atirando para o ar umas pedrinhas a parando-as com as costas da mão. Conforme o número que ficasse no dorso, jogaria outras para o alto, apanhando rapidamente uma ou mais, das restantes que ficasse no solo.

     Um jogo complicado mas divertido e absorvente porque os três guris estavam alheiados a tudo, seguindo com os olhos as reviravoltas das pedrinhas. No Museu Nacional de Nápoles há uma linda e grande âncora grega com um grupo de mulheres desenhadas. Uma das mulheres está jogando as pedrinhas como o menino da Rua Juvino Barreto.

     Os gregos chamavam a este jogo “Astragalissimo” e em Roma “Pentalia”, alusivo ao número dos tentos que eram cinco. O nome oficial e popular no Império Romano era Jogo dos Ossinhos. Os legionários romanos eram doidos pelos ossinhos e levaram o jogo por todos os recantos do mundo.

     Duzentos anos antes de Jesus Cristo nascer, o escritor grego Policles fez a bonita “Astragalizonte”, uma mocinha jogando os ossinhos, os estragalos que são ossos do pé, na parte do tarso. A estátua está, ou estava, no Museu de Berlim. Os ingleses e norte-americanos dizem no “Kadchlebones” e na Espanha é Chinas y Chinos como na Beira portuguesa. Conhecem-no por vários nomes em Portugal: Bato, Chocos, Jogas, Bodelhas, também Pedras e Pedrinhas, o nome que veio e se fixou no Brasil. Em França é o “Osselet”.

     Ninguém jamais o aprendeu nos livros mas vendo, tomando parte no atirar e aparar as pedrinhas. Jaime Lopes Dias estudou-o em Portugal e dona Maria Cadilla de Martinez em Puerto Rico.

     Quem diria que esse joguinho infantil durasse mais do que muita glória humana!



Nenhum comentário:

Postar um comentário