Lunário Perpétuo, de Jerônymo Cortez
UM CHÁ DE BINGA DE CACHORRO
Lendo o Lunário Perpétuo, Geral e Particular para Todos os Reinos e Províncias,
composto por Jerônymo Cortez, Valenciano, edição impressa em Lisboa em meados
do Século passado cheguei ao capítulo intitulado “Memória de remédios
universais para as enfermidades ordinárias” a partir de anotações de Carlos
Estevão e João Lihaut, médicos da cidade de Paris. Ali encontrei as fórmulas mais
disparatadas e escatológicas que já vi. Os ingredientes das meizinhas são
lesmas trituradas com açúcar, fumo de sapatos velhos queimados, fezes de
animais, perna de grilo, asa de barata, fuligem de chaminé, unhas de jumento, ossos e
cabelos humanos, tudo isso para ser ingerido como chá ou aplicado como
emplastros. No segundo caso, usa-se farinha e clara de ovo para dar
consistência ao preparado. Vocês calculem quantos pacientes morreram ou tiveram
suas moléstias agravadas por tais “remédios”.
O Lunário Perpétuo foi um livro muito popular no Nordeste de outrora. Lendo tais fórmulas, lembrei-me então de um remédio que quiseram me dar quando era menino: o chá de binga de cachorro. Segundo o meu amigo Santiago, cartunista famoso de Porto Alegre-RS, por lá essa beberagem tem o nome de “Jasmim de Cachorro”, porém o ingrediente é o mesmo: fezes caninas ressecadas pelo sol.
O Lunário Perpétuo foi um livro muito popular no Nordeste de outrora. Lendo tais fórmulas, lembrei-me então de um remédio que quiseram me dar quando era menino: o chá de binga de cachorro. Segundo o meu amigo Santiago, cartunista famoso de Porto Alegre-RS, por lá essa beberagem tem o nome de “Jasmim de Cachorro”, porém o ingrediente é o mesmo: fezes caninas ressecadas pelo sol.
Isso foi pelos idos de 1975 ou 76. Estávamos
no período da safra do algodão e vovô havia ensacado toda a sua produção. E
também a colheita que comprara dos vizinhos ou recebera como pagamento de
antigas contas na mercearia. Eu já sabia ler e contar e ajudava na
contabilidade da bodega, fazendo anotações na caderneta dos fiados, somando
contas, apesar de não ser muito bom em matemática. Mas com esforço e a ajuda de
uma tabuada acabei desasnando com os números.
Nesse tempo eu era bem pequeno e
brincava na companhia de uma prima sobre as sacas de algodão empilhadas no
alpendre. Algumas chegavam a tocar o madeiramento do teto da moradia. Aquilo
era uma aventura e tanto. Eu me pendurava nos caibros e ficava balançando no
espaço, com risco de me estatelar no chão e quebrar um braço ou uma perna. Mas,
felizmente, isso não ocorreu. O que aconteceu de fato foi uma surra caprichada
que levei de meu avô, mas por motivo bem diferente.
Eu fazia a ponta dos meus lápis de
cor com um canivete, que no momento estava ali, bem ao alcance da mão. A minha
prima desafiou-me a cortar um dos sacos para ver as “tripas” do algodão. Na
verdade era uma cilada, mas eu não me dei conta. Eu era muito inocente para
entender as suas reais intenções. Relutei a princípio, mas ela continuava me
instigando a fazer “malinação”.
— Eu sabia que você não tinha coragem. Vamos, taque
o canivete, rasgue o bucho do saco de algodão!
Peguei corda. Dei a primeira estocada e um capucho
branquinho começou a sair pelo furo. Criei gosto e dei a segunda facada. Nesse
exato instante a minha prima saiu de fininho e foi enredar ao meu avô:
— Vovô, o Arievaldo está rasgando os sacos de
algodão com um canivete!
— Que história é essa, menina?
— Venha ver! Está bem ali...
Só me lembro de ter visto o seu dedinho magro me
apontando e a cara de raiva do meu avô. O velho se aproximou com um chicote na
mão. Ou seria um chinelo? Não lembro direito qual o instrumento usado no
castigo. Sei que além de um baita carão ainda levei umas boas lapadas. Fiquei
muito ressentido. Era a primeira vez que ele me batia e quase não calo mais o
par de queixos, num choro contínuo e magoado. Minha tia Augediva, como sempre,
tomou as minhas dores e foi me consolar.
Adormeci. No
outro dia amanheci ardendo em febre e com manchas pelo corpo. Meu avô, muito
arrependido, ficou tomado de remorsos e veio falar comigo, de maneira branda e
afetuosa. Vendo o meu estado de saúde e querendo me agradar, despachou, incontinenti,
um portador para São José da Macaóca, a fim de comprar um medicamento para
febre, uma grade de Guaraná Champagne
e uma lata de biscoito Cream Craker.
Essa era a dieta daquele tempo. Um luxo! Embora que o doente não estivesse
disposto a regalar-se com ela, porque a minha febre também veio seguida de
vômito. Minha avó, ao examinar-me horas depois, constatou que eu estava com sarampo.
Ou seja, a doença não fora motivada pela surra, o que deve ter aliviado
bastante o remorso de meu avô.
Foram dias terríveis, em que passei o tempo
deitado, com as feridas do sarampo incomodando e coçando sem parar, as janelas
do quarto fechadas, as febres seguidas de vômito, o vozerio do povo da casa se
referindo a mim com uma dose de pena e comiseração:
— Tadinho do bichinho. Além da surra, o diabo deste
sarampo. O que será bom para curá-lo?
O tio Zequinha, que apareceu por lá certo dia, deu
uma receita que, segundo ele, era infalível. Faria o doente ficar bom em 24
horas.
— E que remédio é esse, tio Zequinha? — Perguntou a
titia.
— Um chá de ‘binga’ de cachorro! Você pega um cocô
de cachorro já velho e embranquecido pelo sol, ferve na água e dá para ele
beber. Vai ficar bom, com certeza!
Se eu não tivesse escutado a conversa, talvez
tivesse bebido o tal chá enganado, porém menino tem um ouvido apurado.
Sobretudo quando está doente. Quando a minha tia se aproximou fui logo dizendo:
— Tiazinha, pelo amor de Deus não me dê chá de
bosta de cachorro! Eu prefiro continuar doente, a beber uma porcaria dessas!
— Mas meu filho, o tio Zequinha garantiu que você
vai ficar bom!
— Quero o quê! Faça chá de binga de cachorro para aquele
cabra velho, para mim não! Não tomo de jeito nenhum!
A partir de então passei a vigiar toda e qualquer
bebida que me davam. Até o guaraná eu colocava contra a luz para ver se havia
vestígio de cocô de cachorro. Quando minha tia fazia um chá eu me punha ao lado
dela, à beira do fogão de lenha, observando atentamente os ingredientes que
eram colocados. Ela veio com um pozinho branco triturado num vidro, cujo rótulo
estava escrito “Flor de Sabugueiro”. Pedi o tal vidro para cheirar e ela
começou a rir:
— Meu filho, deixe de ser desconfiado. Tá vendo que
eu não vou lhe dar chá de cocô de cachorro? Isso é sabugueiro, tome que você
vai ficar bom.
Tomei e serviu. Dias depois estava brincando lépido
e fagueiro pelos terreiros, tomando o restinho do guaraná que havia sobrado.
Nesse tempo não havia geladeira nas fazendas do sertão. Esfriava-se o guaraná
no pé do pote ou dentro do tanque da cozinha. E até hoje ainda não pude saber
se o tal pozinho branco era mesmo sabugueiro ou binga de cachorro.
(Arievaldo Vianna – O Livro das Crônicas: II Volume de Memórias)
Chá de Sabugueiro
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