DAQUELE QUE NOS LEGOU
UMA IMENSA
POESIA
Fonte: Revista
SUPLEMENTO PERNAMBUCO
Escrito por Gisa Carvalho (imagens: Maria
Júlia Moreira)
Eu sou pesquisadora da poesia de
cordel. Já conversei com um monte de poetas, li incontáveis folhetos. No
percurso, sempre aparece Leandro Gomes de Barros, encantado há 100 anos. Me
falam dele como “pai” da poesia, por ter inaugurado a forma impressa da poesia
popular. São pessoas gratas, dizendo que ele é um gênio. Eu chamaria de
empreendedor – o que não lhe suprime a genialidade. Sem recursos financeiros
para investir em uma editora, haveria de usar a criatividade para pensar em um
formato barato, fácil de transportar, e que mantivesse a aura da poesia oral,
que já era o “jornal” do Sertão. E aí ele é quem oferece o folheto colibri.
Leve e volante. Capaz de chegar aos mais distantes territórios.
De início, pensei que isso se
devia só ao seu pioneirismo. Que, depois, tudo teria se transformado e que
essas homenagens constantes eram um esforço de engessamento da poesia de
cordel, um apego ao passado e uma resistência ao futuro, com medo da morte do
cordel. Como se fosse a criação de uma figura heroica, quase santificada, a
quem os poetas poderiam se apegar para reivindicar a própria legitimidade
poética. Principalmente, quando eu ouvia falar sobre sua obra conservadora,
machista e preconceituosa. Mas eu estava enganada. Ainda bem.
Me permiti a leitura de suas
obras. Politicamente, mantenho uma criticidade, por exemplo, diante de seus
folhetos sobre a figura da sogra. Mas cedi à qualidade técnica – ora, se é uma
técnica poética desenvolvida por ele, claro que ela seria brilhante. E li mais.
Percorri os clássicos que me foram sugeridos pelos vendedores de Fortaleza. A
Orfã, Pedro Cem, Cancão de Fogo são protagonistas que me despertam simpatia. E
eu desço do alto da minha pretensão de não ouvir os poetas e de julgar Leandro.
O que hoje se convencionou chamar
de cordel é uma prática que decorre da poesia criada, impressa e vendida por
ele. Com maestria, ele falou das mais diversas temáticas: política, sociedade,
religião. Escreveu romances que se transformaram nos clássicos da poesia de
cordel e criou protagonistas que inspiraram muitos outros personagens de seus
contemporâneos e continuam inspirando os poetas de hoje.
Boêmio, dotado de uma
criatividade e um senso crítico aguçado, o poeta falava dos temas mais tensos,
como a política da época, em tons de humor. A sátira é uma marca que permeia
sua obra, principalmente quando se refere às suas antipatias: a figura da
sogra, os padres e os protestantes. Os traços de machismo e de conservadorismo
de sua obra são reveladores da transição entre os séculos XIX e XX. São marcas
daquele cotidiano que permanecem até hoje, inclusive no cordel contemporâneo.
Não sei se o machismo tão frequente na poesia de cordel de hoje, também é uma
característica que se deve a essa inspiração. Mas, certamente, essas
manifestações associadas à comicidade têm apoio literário em sua obra.
Apesar disso, a obra de Leandro
Gomes de Barros não se restringe aos sexismos e aos preconceitos. Assim como a
poesia de cordel que vivemos. Ela transpassa tais aspectos e é resistência. É
instrumento de luta, é política e é o deleite literário, que tanto já se tentou
negar.
O que causa espanto, até hoje, em
quem se aventura pelos laços da vida com a obra do autor, era a sua pouca
escolaridade. Formalismos são mantidos como preconceito contra as artes não moldadas
pela escrita e contra os processos criativos livres de amarras técnicas. A
falta do ensino formal apontada pelos admiradores não foi definidora do poeta.
Sua formação foi oferecida pelo tio, Frei Francisco de Assis Xavier da Nóbrega,
dono da biblioteca que foi o portal para um mundo novo, que o poeta
reconstruiria mais adiante em seus versos.
Indisciplinado, o poeta emprestou
traços de sua própria personalidade à forma literária que lançaria. Ele era
afrontoso, o que também define o cordel, que permanece sendo um insulto à
poderosa e elitista literatura canônica. Seu tom jocoso alfinetava as pessoas
poderosas e as instituições que rejeitava, o que atribuía acidez às suas obras.
Em pequenas comunidades, falar sobre exageros do Estado e da Igreja parecia
insulto demais. E Leandro, com uma criatividade sagaz e reconhecida até hoje,
conseguia dosar sua poesia para que ela permanecesse.
O poeta teve a teimosia
necessária à resistência, que traz o cordel até os dias de hoje, com todas as
transformações tecnológicas que pareciam ser limitadoras. Mas o apego ao
passado é estético e os poetas sabem que devem continuar nos rastros
empreendedores de Leandro e se apropriar das mídias como aliadas.
Tanto que é a internet o espaço
mais fácil de encontrar seus folhetos. Os acervos virtuais da Fundação Casa de
Rui Barbosa, do Fonds Cantel e da Fundação Joaquim Nabuco têm cordéis
digitalizados e com acesso livre. Seus títulos também vêm sendo reeditados,
impressos e vendidos em feiras. A editora Tupynanquim é a que tem mais folhetos
reeditados atualmente, e vem publicando títulos do poeta, que são vendidos em
feiras e bancas. Difícil mesmo é encontrar bancas de folhetos espalhadas pelo
Brasil.
Mas, no Nordeste, onde o cordel é
parte do cenário, Leandro figura entre os autores mais procurados e vendidos.
As editoras Luzeiro e Queima-Bucha também reeditaram seus cordéis. Os folhetos
circulam pelos mesmos espaços por onde Leandro transitava vendendo suas
produções: são bancas, feiras, rodoviárias.
Como formas de divulgar esses
folhetos, a professora Ione Severo me contou que mantém a cordelteca Leandro
Gomes de Barros em Pombal (326Km de João Pessoa), com cerca de mil títulos
doados por poetas colaboradores, que reconhecem a importância da obra. O
trabalho dela tem sido fundamental para a valorização da poesia popular do
Nordeste. A visibilidade nacional vem com Ariano Suassuna, que se inspirou nos
folhetos O cavalo que defecava dinheiro e O dinheiro ou O testamento do
cachorro para sua peça O auto da Compadecida. Os créditos foram dados nas
diversas palestras de Ariano.
Além da grande influência para o
Movimento Armorial, Leandro também causou fascínio em Carlos Drummond de
Andrade, que o comparou a Olavo Bilac como Príncipe dos Poetas brasileiros, em
1976 no Jornal do Brasil. E Mário de Andrade, amante da cultura popular, afirma
no Diário Nacional, em 1931, ter se inspirado na obra de nosso poeta para a
criação de seu Macunaíma. Em ambos os casos, os escritores modernistas mostram
o exercício de valorização do folclórico que, na época, era tão desmerecido.
Sua pouca escolaridade formal, ou
sua poesia de folhetos por muitos considerada de baixa qualidade não
aprisionaram a qualidade técnica, estética e criativa do poeta. Que, além do
reconhecimento de figuras do cânone da literatura nacional, permanece até hoje
ensinando poetas a fazerem versos de cordel, e estes o referenciam diariamente.
O pioneirismo de Leandro está na
publicação de folhetos impressos na forma como eles são identificados hoje.
Tanto com relação à métrica e às rimas (sextilhas e septilhas, rimadas na forma
ABCBDB ou ABCBDDB), como também pelo formato de folhetos (11x16 cm). Costuma-se
dizer que a nomenclatura cordel vem de uma herança portuguesa, em que os
primeiros cordéis eram vendidos pendurados em cordas. Mas já conhecemos uma
diversidade “genética” do cordel mais ampla e essa dita herança ibérica é
somente a mais próxima, por ter vindo na mala da Coroa Portuguesa, fugida para
o Brasil em 1808. São os folhetos mais antigos dos quais se tem registro.
A história do Brasil e, mais
especificamente, do Nordeste têm em Leandro um marco: o da efetivação de uma
literatura que, de tão rica, não se consegue definir como gênero, como formato,
nem se consegue dizer exatamente o que a define. Porque essa literatura, que
chamamos de cordel, escapa inclusive das amarras literárias, das escolas e dos
padrões.
O cordel é o imaginário que o
poeta organizou em folhetos. O que nós acadêmicos chamamos de transdisciplinar,
porque é usado como registro do cotidiano, como objeto de ensino, como
documento historiográfico, como forma de conhecimento. O imaginário do Nordeste
que é narrado na poesia do autor retorna ao mágico mundo real construindo novos
imaginários.
O marco zero da poesia de cordel
é impossível de ser definido. Desde que existe ser humano no mundo, há uma
necessidade imanente da consciência de construir narrativas. E cada comunidade
trabalha suas histórias a partir dos recursos que dispõem. No Nordeste
brasileiro, muitas histórias foram contadas em rimas, acompanhadas por violas,
configuraram disputas poéticas (os repentes). Essas poesias são a base da
estrutura poética do cordel, que é a forma impressa das poesias orais que já
foram os jornais do Sertão. O autor é o grande marco da escrita no processo
poético do cordel.
As influências de Leandro Gomes
de Barros para a literatura estão no espaço definidor da poesia de cordel. Que ele
não precisou “inventar”, mas, pela escrita, ofereceu-lhe uma proposta de
permanência que foi aceita e incorporada. Desde seus contemporâneos, como
Manoel de Almeida Filho, Manoel Camilo dos Santos e José Camelo de Melo
Rezende, passando por poetas que viveram no final do século XX e começo do
século XXI, como por Manoel Monteiro e José Alves Sobrinho, até poetas atuais,
como Leila Freitas, Maestro Rafael Brito, que continuam se inspirando em sua
obra e tomando-a como padrão de qualidade formal e estética.
Os versos de Leandro são
estudados nas escolas. Professoras e professores utilizam a poesia de cordel em
aulas de literatura e como referência lúdica na educação. Há alegria nos versos
e isso chama a atenção de crianças em fase de aprendizagem da leitura. Os
exercícios despertam, inclusive, a vontade de fazer composições poéticas,
porque essas crianças se deparam com uma linguagem que é acessível a elas e que
tem uma estrutura que facilita seus processos de memorização.
Sua genialidade, como a de muitos
poetas, artistas e pessoas de outras atividades cotidianas, não passa pela
educação formal. É a sagacidade de ler e interpretar o mundo, e fazer dele
poesia. Uma poesia que dispensa saberes acadêmicos e socialmente legitimados,
dispensa a literatura canônica e empreende em um mercado editorial excludente,
propondo uma produção alternativa que permanece em plena vitalidade mais de 120
anos depois.
A cabeça, um tanto grande e bem redonda,
O nariz, afilado, um pouco grosso:
As orelhas não são muito pequenas,
Beiço fino e não tem quase pescoço.
(Peleja de Manoel Riachão com o Diabo).
Leandro tem uma biografia escrita
pelo poeta cearense Arievaldo Viana. Esta obra é uma referência tanto
historiográfica quanto poética sobre a vida do pioneiro do cordel, que abriu
caminho para muitos outros cantadores e editores que trabalharam em suas
próprias tipografias. Além do livro de Arievaldo, outros estudiosos e
pesquisadores da poesia e cordel se propuseram a contar sua vida, mas em âmbito
acadêmico ou como parte de outras histórias, as quais ele atravessa. Conto aqui
um pedaço do que admiradoras e admiradores do poeta me falaram sobre ele. Foram
as conversas plenas de entusiasmo que me ajudaram em meu percurso de
relacionamento com Leandro.
O poeta nasceu no sítio Melancias,
no município de Pombal, na Paraíba, em 1865 e seus primeiros folhetos datam de
1893, quando abriu sua tipografia, depois de comprar máquinas impressoras que
estavam em desuso nas grandes cidades. Quando começou a imprimir folhetos, ele
já morava em Pernambuco, em Vitória de Santo Antão, a 55 Km do Recife. Em
seguida, mudou-se para Jaboatão e viveu a maior parte de seus dias na capital.
Leandro casou-se com dona
Venustiniana Eulália de Sousa, provavelmente, segundo Arievaldo Viana, no mesmo
ano em que teria publicado seu primeiro folheto, 1893. O casal teve três filhas
um filho: Raquel Aleixo, Esaú Eloy, Julieta e Herodías. O sustento da família
vinha da venda dos folhetos produzidos por ele, que circulavam nas feiras e nos
trajetos de ônibus que ele realizava. Podia também enviar folhetos por correios
e os anúncios dos títulos apareciam nas contracapas.
O poeta era “bom de copo”, mas
evitava uísque por rejeitar costumes ingleses – que criticava em versos sobre a
população do Recife. Detestava a figura da “sogra”, assim como daqueles a quem
chamava de “nova seita”, os protestantes.
Uma rivalidade de tons comerciais
foi nutrida entre Leandro Gomes de Barros e João Martins de Athayde, que
comprou os diretos autorais de sua obra, em 1921, depois de sua morte. Athayde
ficou conhecido pela admiração que tinha ao poeta, pelas inspirações que
tomava, mas também por, depois de comprar os diretos de publicação da obra de
Leandro, suprimir o nome do autor e deixar somente o próprio nome nas capas dos
folhetos, causando grandes confusões posteriores, decorrentes dos conflitos de
autoria. Athayde chegava a alterar os acrósticos (última estrofe do cordel tem
cada verso iniciado com uma letra do nome do poeta), para retirar as
assinaturas dos folhetos.
Olhos grandes, bem azuis, têm cor
do mar:
Corpo mole, mas não é tipo
esquisito –
Tem pessoas que o acham muito
feio,
Mas a mamãe, quando o viu, achou
bonito!
(Peleja de Manoel Riachão com o
Diabo).
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