quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

POEMA DE ZÉ MARIA



O DISCURSO DO DEFUNTO
(Zé Maria de Fortaleza)

Meu sinhô, me arrepare,
Eu ando mêi disgostôso
Não é por minha pobreza
Que eu nunca fui orguiôso
É porque tenho sofrido
Por via d’eu sê medroso.

Um dia, me arresorvi
Saí lá donde eu vivia
Pra dá u’as riviravorta
Por onde eu não cunhecia.

Pensei logo cá cumigo:
Eu sô um rapaz sortêro
Ta certo, sô mêi feioso
Não sei lê nem tem dinheiro.

Mas quem sabe se eu saindo
Dos diabo dessas biboca
Num arranjo inté u’a nêga
Pra tirá minhas caroca.

Botei as roupa num saco
Às quatro da madrugada
Me arrecumendei aos santo
E prantei os pé na estrada.

Só sei que dessa isquipada
Eu andei uns quinze dia
Mas só no rumo da venta
Sem sabê pra donde ia...

Inté que um dia, de tarde
Eu atravessei um rio
Num ia pensando em medo
Mas me deu uns arrepio.

Aí foi que eu ispiêi
Achei tudo assim deserto
Cunhecí que ali num tinha
Uma só casa por perto.

Por via de num tê casa
Pro mode eu apernoitá
Vi u’a arve infoiada
Maginei: Se eu me atrepá
Sei que é mêi desajeitôso
Mas dá pra me agasaiá.

Subi na arve e fiquei
Ta certo que eu não drumia
Mas tava bem iscundido
Porque os gái me cobria
Se passasse argum vivente
De jeito nenhum me via.

Mas meu sinhô, quando foi
Mais ou menos doze hora
Eu ouvi uns alarido
Cuma quem canta ou quem chora.



Du arregalei os oi
E avistei u’a multidão
De gente com as voz rouca
Tudo de vela na mão
Eu maginei: é as alma
Fazendo uma procissão.

Na frente, avistei um pade
Cum a image do Sinhô
Um sacristão com água benta
Mas ninguém trazia andô.

Nesta hora eu respirei
Fiquei todo arripiado
Dispois notei que eles vinham
Caminhando pro meu lado.

Bateu-meu um medo tão grande
Que eu quage inté me afroxava
Quando eu vi que uns apontavam
Pra dita arve que eu tava.

Quando chegaram debaixo
Era dez pessoas ou mais
Uns preguntaram pros outro:
E agora, o que é que se faz?
Um respondeu: é subir
Pra ir buscar o rapaz.

Quando eu vi essas palavra
Peguei logo a me tremê
Mas mermo assim,  maginei:
- Eu num tenho que perde...
Respondi, batendo os dente:
Dêxe, eu mermo vou descê...

Ah, meu sinhô, me acredite
Eu falei mêi arrastado
Mas pode crê, nessa hora
Foi fê o espatifado.

O pade se assombrou
Jogou o santo no chão
O pobre do sacristão
No pade se pindurou

Uma veia inda gritou:
Joga água benta pra trás
Cada qual corria mais
Soltaram a image do Cristo
Parece que tinham visto
Careta do satanás.

Eu, vendo aquele istrupiço
Pulei ligêro no chão
Saí correndo também
Mas em outra direção.

Na frente eu parei pensando:
Ora essa, tava ruim
Era eu com medo deles
Eles com medo de mim.

Dispois que o dia amanheceu
Eu vortei no mesmo canto
Pra vê qual era o motivo
Daqule tão grande espanto

Pois né que de longe eu vi
Um home dipindurado
Bem pertinho donde eu tava
Tinha morrido enforcado.

Nessa hora eu compreendi
Qual era o sinificado
O povo vinha buscá
O home suicidado.

E quando viram eu falá
Dizendo que ia descer
Pensaram que era o defunto
Danaram a égua a correr.

Quando eu cheguei na cidade
Ninguém via outro assunto
Todo mundo só falava
No discurso do defunto.



As históra sempre aumenta
Uns dizia: é verdade
O morto falou nas guerra
Nos viço e nas vaidade
No mundo que se arrivira
E quem pensá que é mentira
É só preguntá ao pade.

Eu inda fui na eguage
De dizê o que passô
Mas fui descreditado
Ninguém me acreditou.

Uns cabôco inda disseram
Esse cabra é mentiroso
Quer se metê nas históra
Pra dizê que é corajoso.

Vamos dar-lhe umas esfrega
Quando eu vi esses cuchicho
Lasquei os pé na carrêra
Mas dispois fiz por capricho.

Maginando no castigo
Nunca mais contei históra
Voltei prás minha biboca
Porque lá tô sem perigo
E quem tiver qualquer segredo
Pode me contá sem medo

Que eu me lasco, mas não digo.


O autor do poema, Zé Maria de Fortaleza, com Mestre Azulão,
Arievaldo Vianna e Geraldo Amâncio.

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