O DIA
EM QUE CONHECI
RIBAMAR LOPES
A vida tem me ensinado que nada acontece por
acaso. A partir de 1998 eu passei a ver a Literatura de Cordel com seriedade, porque
antes me considerava apenas um leitor e poeta diletante. Fazia por brincadeira,
sem a preocupação de publicar e não obedecia qualquer critério comercial com
relação à escolha dos temas. Somente quando resolvi enfeixar parte da minha
produção no meu livro de estreia, “O Baú da Gaiatice”, é que constatei que 90%
do que havia produzido até ali era tão pessoal, tão restrito ao meu círculo de
amizades, que o leitor comum ficaria a ver navios, sem entender patavina. É que
antes de deixar Canindé para batalhar pela vida em Fortaleza, os temas de
nossos cordéis surgiam nas rodas boêmias ou no balcão da velha Casa Marreiro.
Fazíamos uma pequena tiragem na “xerox” e nos dávamos por satisfeitos.
Tanto que ao chegar numa agência de propaganda,
onde trabalhavam pessoas da capital e também do Rio de Janeiro, São Paulo,
Bahia, eu era considerado um bicho do mato, um legítimo matuto, coisa que a
princípio me causava algum constrangimento, mas depois, refletindo bem,
tornou-se motivo de orgulho. Aqui, acolá, diziam, em tom de gozação:
— Esse bicho saiu do sertão, mas o sertão não
saiu dele.
Geralmente, tais comentários eram feitos quando
eu aparecia na agência com um folheto de cordel ou com LP’s de Luiz Gonzaga e
Jackson do Pandeiro, em plena era do CD e outras mídias digitais!
À medida que eu colecionava folhetos, ia
escrevendo meus textos e procurando temas mais abrangentes, que fossem
compreensíveis a qualquer tipo de público. A sátira política era um de meus
temas favoritos, mas também comecei a me enveredar pelo romance de 16, 24 e até
32 páginas, exercitando a minha poética de forma consciente. Fiz várias pelejas
imaginárias, sozinho ou ao lado de parceiros, para testar outras modalidades,
como o martelo, o beira-mar, o cantador de vocês, o oitavão rebatido e outros
gêneros da cantoria.
Quando me preparava para lançar a “Coleção
Cancão de Fogo”, uma caixa com dez folhetos, meus e de Pedro Paulo Paulino,
passei na gráfica Simões, que ficava na rua Agapito dos Santos (Centro de
Fortaleza), e peguei alguns exemplares dos quatro primeiros títulos que
acabavam de ser impressos. Minutos depois passei numa banca de revistas da
Praça do Liceu e deparei com um senhor grisalho, de estatura mediana, magro,
usando uns óculos grossos e arredondados. A figura me pareceu familiar, embora
nunca o tivesse visto pessoalmente. Procurei nos escaninhos da mente e acabei
deduzindo que havia visto a sua foto no jornal, em matéria assinada pelo
jornalista Eliézer Rodrigues, divulgando o lançamento de seu livro “Cordel,
Mito e Utopia”. Era o poeta e pesquisador Ribamar Lopes, organizador da melhor
antologia de Literatura de Cordel de que se tem notícia no Brasil, aquela
lançada pelo Banco do Nordeste.
Hesitei alguns minutos antes de me apresentar,
mas, percebendo que ele já se despedia do Bandeira, dono da banca de revistas,
adiantei-me e fiz a pergunta que já estava engatilhada:
— O senhor é o escritor Ribamar Lopes?
— Em carne e osso, disse ele.
— Muito prazer. Tenho ouvido falar de suas
pesquisas sobre Literatura de Cordel. No momento estou empenhado na publicação
de uma caixa de folhetos.
— Uma caixa de folhetos?!
— Sim, respondi. Como eu e meu parceiro já
dispomos de vários títulos, resolvemos lançá-los numa coleção, como aquela de
Patativa do Assaré, organizada pelo professor Gilmar de Carvalho, que foi
lançada pela SECULT-CE.
Ribamar me olhou meio desconfiado, como que
duvidando do meu talento, e rebateu:
— Muito bem. Mas, vocês já têm bagagem para
isso? Já publicaram alguma coisa?
— Acabo de receber da gráfica alguns exemplares
dos quatro primeiros...
— Deixa eu ver. Se prestar eu digo. Se não prestar...
Posso ver?
Meti a mão lá na “aduana”, como diz o Kid
Morangueira, e saquei os seguintes títulos: Luiz
Gonzaga, o Rei do Baião, Encontro de FHC com Pedro Álvares Cabral, Peleja de
Franciné Calixto com Pedro Tatu e
Debate de Zé Limeira com os profetas do fim do mundo. Os dois últimos em
parceria com Pedro Paulo, que, salvo engano, também estava presente a esse
encontro, ocorrido em julho ou agosto de 1999.
Ribamar esboçou um sorriso maroto, ajustou os
óculos na ponta do nariz e abriu o primeiro folheto, lendo-o em voz alta:
Eu admiro o cangaço,
Apesar da violência
Dos engenhos o bagaço
Porque a minha vivência
Tem sido nesse sertão
Pesquisando Lampião
Padim Ciço e Conselheiro,
Cultura que não se esmaga
E ouvindo Luiz Gonzaga
Nosso maior sanfoneiro.
No município de Exu
Divisa com o Ceará,
Nos Sertões do Pajeú,
Do Juazeiro pra lá
Nasceu este nordestino,
Artista desde menino,
Orgulho do meu sertão
Dia treze de dezembro
De doze, ainda me lembro,
Nasceu o REI DO BAIÃO.
O mestre arregalou os olhos, abriu-se num
sorriso largo e sincero e perguntou:
— É tudo em dez pés?
— Não, respondemos. Tem folhetos em sextilha,
setilha, e também pelejas com outras modalidades da cantoria.
Ribamar leu mais algumas estrofes de outro
folheto e acenou com o polegar para cima, como faziam os romanos no Coliseu,
quando queriam salvar a vida de um gladiador. Entabulamos um papo animado e ele
percebeu, de imediato, que não éramos neófitos nem penetras naquela seara.
Então, fez-nos um convite:
— Meninos, eu tenho o que fazer em casa. Moro
nesse prédio, quase defronte à banca de revistas. Querem me fazer uma visita?
— Agora?
— Sim, por que não?
Seguimos o Ribamar, e a partir daquele instante
estávamos crismados como poetas populares, sagrados cavaleiros das rimas por
uma das maiores autoridades no assunto. Quando adentramos no apartamento em que
ele morava, não nos surpreendemos com a quantidade de livros nas estantes que havia
na sala, no corredor, no seu gabinete de trabalho e outros cômodos da casa. O
que nos deixou basbaques, boquiabertos, foi a coleção de folhetos de cordel,
composta de quase seis mil títulos, organizada em dois armários de ferro com
amplos gavetões, cuidadosamente organizados por assunto, autores, editores etc.
Coisa metódica, de um pesquisador sério e organizado.
E que alegria reencontrar folhetos que havíamos
lido na infância e que haviam se extraviado, levados por empréstimo, destruídos
pela ação do tempo ou perdidos em faxinas e mudanças.
Quis pedir alguns emprestados, mas achei que
estaria abusando da confiança do novo amigo e deixei para uma visita futura,
que aconteceu logo na semana seguinte. Ribamar, um pouco desconfiado, pegou
alguns títulos que tinha em duplicata e me emprestou, dizendo que forneceria
outro lote, assim que eu devolvesse o primeiro. Foi assim que pude reler todos
os clássicos que havia lido na infância e travar contato com outros títulos
igualmente preciosos, como a obra dos poetas Delarme Monteiro e Manoel Camilo
dos Santos, que eu mal conhecia. De Delarme só havia lido, até então, “O sino
da Torre Negra” e de Camilo apenas o clássico “Viagem a São Saruê”, que aparece
um duas ou três antologias. Em setembro daquele mesmo ano, no dia do meu
aniversário, o Velho Riba me presenteou com um exemplar da terceira edição da
Antologia do BNB, obra espetacular, onde os folhetos aparecem de forma
fac-similar, algo que lhe custou muito trabalho, pois na época não se conhecia
o scanner e outras ferramentas de
tratamento de imagem.
Para encurtar a conversa, além de amigo dileto,
Ribamar tornou-se, a partir dali, revisor de minhas obras e, mais das vezes,
contribuiu com sugestões maravilhosas. Caso dos livros “São Francisco de Canindé
na Literatura de Cordel” e “Acorda Cordel na Sala de Aula”, para os quais
escreveu o prefácio, fez a revisão e ainda sugeriu a inclusão de alguns
assuntos.
Foi uma perda muito sentida, a sua partida
inesperada em janeiro de 2006. Na véspera tivemos um encontro no Fabiano da
Panelada, ali na Praça do Liceu, e o Riba, jovialmente, recordou muitos episódios
da sua infância em Pedreiras-MA e de sua juventude, na capital São Luís. Poeta
de esmerado talento, contista imaginoso e ensaísta consagrado, Ribamar nos
deixou um legado literário que, infelizmente, vai sendo aos poucos esquecido,
nesse país de desmemoriados. Dentre as amizades que cultivou, os que sempre o
relembram em conversas, além de mim, figuram o escritor Raymundo Neto, que o
homenageou numa crônica belíssima e o poeta Rouxinol do Rinaré, que adaptou
alguns de seus contos para o Cordel.
José Ribamar Lopes nasceu no dia 8 de novembro
de 1932 em Pedreiras (Maranhão) e faleceu em Fortaleza (Ceará) aos 24 de
janeiro de 2006.
Contista, poeta e ensaísta, nas últimas décadas
vinha desenvolvendo grande atividade como pesquisador e incentivador da
Literatura de Cordel. Deixou publicado os seguintes livros: "Literatura de
Cordel (Antologia)", "Quinze Casos Contados" (Contos);
"Viola da Saudade" (Poesia) e "Sete Temas de Cordel"
(Ensaio), "Viola da Saudade" (Poesia, livro póstumo), além do inédito "O Dragão da Literatura de Cordel", cujos
originais foram confiados à Tupynanquim Editora.
Arievaldo Vianna
(do livro NO TEMPO DA LAMPARINA)
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