quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O VELHO RIBA

O DIA EM QUE CONHECI 
RIBAMAR LOPES


A vida tem me ensinado que nada acontece por acaso. A partir de 1998 eu passei a ver a Literatura de Cordel com seriedade, porque antes me considerava apenas um leitor e poeta diletante. Fazia por brincadeira, sem a preocupação de publicar e não obedecia qualquer critério comercial com relação à escolha dos temas. Somente quando resolvi enfeixar parte da minha produção no meu livro de estreia, “O Baú da Gaiatice”, é que constatei que 90% do que havia produzido até ali era tão pessoal, tão restrito ao meu círculo de amizades, que o leitor comum ficaria a ver navios, sem entender patavina. É que antes de deixar Canindé para batalhar pela vida em Fortaleza, os temas de nossos cordéis surgiam nas rodas boêmias ou no balcão da velha Casa Marreiro. Fazíamos uma pequena tiragem na “xerox” e nos dávamos por satisfeitos.
Tanto que ao chegar numa agência de propaganda, onde trabalhavam pessoas da capital e também do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, eu era considerado um bicho do mato, um legítimo matuto, coisa que a princípio me causava algum constrangimento, mas depois, refletindo bem, tornou-se motivo de orgulho. Aqui, acolá, diziam, em tom de gozação:
— Esse bicho saiu do sertão, mas o sertão não saiu dele.
Geralmente, tais comentários eram feitos quando eu aparecia na agência com um folheto de cordel ou com LP’s de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, em plena era do CD e outras mídias digitais!
À medida que eu colecionava folhetos, ia escrevendo meus textos e procurando temas mais abrangentes, que fossem compreensíveis a qualquer tipo de público. A sátira política era um de meus temas favoritos, mas também comecei a me enveredar pelo romance de 16, 24 e até 32 páginas, exercitando a minha poética de forma consciente. Fiz várias pelejas imaginárias, sozinho ou ao lado de parceiros, para testar outras modalidades, como o martelo, o beira-mar, o cantador de vocês, o oitavão rebatido e outros gêneros da cantoria.
Quando me preparava para lançar a “Coleção Cancão de Fogo”, uma caixa com dez folhetos, meus e de Pedro Paulo Paulino, passei na gráfica Simões, que ficava na rua Agapito dos Santos (Centro de Fortaleza), e peguei alguns exemplares dos quatro primeiros títulos que acabavam de ser impressos. Minutos depois passei numa banca de revistas da Praça do Liceu e deparei com um senhor grisalho, de estatura mediana, magro, usando uns óculos grossos e arredondados. A figura me pareceu familiar, embora nunca o tivesse visto pessoalmente. Procurei nos escaninhos da mente e acabei deduzindo que havia visto a sua foto no jornal, em matéria assinada pelo jornalista Eliézer Rodrigues, divulgando o lançamento de seu livro “Cordel, Mito e Utopia”. Era o poeta e pesquisador Ribamar Lopes, organizador da melhor antologia de Literatura de Cordel de que se tem notícia no Brasil, aquela lançada pelo Banco do Nordeste.


Hesitei alguns minutos antes de me apresentar, mas, percebendo que ele já se despedia do Bandeira, dono da banca de revistas, adiantei-me e fiz a pergunta que já estava engatilhada:
— O senhor é o escritor Ribamar Lopes?
— Em carne e osso, disse ele.
— Muito prazer. Tenho ouvido falar de suas pesquisas sobre Literatura de Cordel. No momento estou empenhado na publicação de uma caixa de folhetos.
— Uma caixa de folhetos?!
— Sim, respondi. Como eu e meu parceiro já dispomos de vários títulos, resolvemos lançá-los numa coleção, como aquela de Patativa do Assaré, organizada pelo professor Gilmar de Carvalho, que foi lançada pela SECULT-CE.
Ribamar me olhou meio desconfiado, como que duvidando do meu talento, e rebateu:
— Muito bem. Mas, vocês já têm bagagem para isso? Já publicaram alguma coisa?
— Acabo de receber da gráfica alguns exemplares dos quatro primeiros...
— Deixa eu ver. Se prestar eu digo. Se não prestar... Posso ver?
Meti a mão lá na “aduana”, como diz o Kid Morangueira, e saquei os seguintes títulos: Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, Encontro de FHC com Pedro Álvares Cabral, Peleja de Franciné Calixto com Pedro Tatu e Debate de Zé Limeira com os profetas do fim do mundo. Os dois últimos em parceria com Pedro Paulo, que, salvo engano, também estava presente a esse encontro, ocorrido em julho ou agosto de 1999.
Ribamar esboçou um sorriso maroto, ajustou os óculos na ponta do nariz e abriu o primeiro folheto, lendo-o em voz alta:

Eu admiro o cangaço,
Apesar da violência
Dos engenhos o bagaço
Porque a minha vivência
Tem sido nesse sertão
Pesquisando Lampião
Padim Ciço e Conselheiro,
Cultura que não se esmaga
E ouvindo Luiz Gonzaga
Nosso maior sanfoneiro.

No município de Exu
Divisa com o Ceará,
Nos Sertões do Pajeú,
Do Juazeiro pra lá
Nasceu este nordestino,
Artista desde menino,
Orgulho do meu sertão
Dia treze de dezembro
De doze, ainda me lembro,
Nasceu o REI DO BAIÃO.

O mestre arregalou os olhos, abriu-se num sorriso largo e sincero e perguntou:
— É tudo em dez pés?
— Não, respondemos. Tem folhetos em sextilha, setilha, e também pelejas com outras modalidades da cantoria.
Ribamar leu mais algumas estrofes de outro folheto e acenou com o polegar para cima, como faziam os romanos no Coliseu, quando queriam salvar a vida de um gladiador. Entabulamos um papo animado e ele percebeu, de imediato, que não éramos neófitos nem penetras naquela seara. Então, fez-nos um convite:
— Meninos, eu tenho o que fazer em casa. Moro nesse prédio, quase defronte à banca de revistas. Querem me fazer uma visita?
— Agora?
— Sim, por que não?
Seguimos o Ribamar, e a partir daquele instante estávamos crismados como poetas populares, sagrados cavaleiros das rimas por uma das maiores autoridades no assunto. Quando adentramos no apartamento em que ele morava, não nos surpreendemos com a quantidade de livros nas estantes que havia na sala, no corredor, no seu gabinete de trabalho e outros cômodos da casa. O que nos deixou basbaques, boquiabertos, foi a coleção de folhetos de cordel, composta de quase seis mil títulos, organizada em dois armários de ferro com amplos gavetões, cuidadosamente organizados por assunto, autores, editores etc. Coisa metódica, de um pesquisador sério e organizado.
E que alegria reencontrar folhetos que havíamos lido na infância e que haviam se extraviado, levados por empréstimo, destruídos pela ação do tempo ou perdidos em faxinas e mudanças.
Quis pedir alguns emprestados, mas achei que estaria abusando da confiança do novo amigo e deixei para uma visita futura, que aconteceu logo na semana seguinte. Ribamar, um pouco desconfiado, pegou alguns títulos que tinha em duplicata e me emprestou, dizendo que forneceria outro lote, assim que eu devolvesse o primeiro. Foi assim que pude reler todos os clássicos que havia lido na infância e travar contato com outros títulos igualmente preciosos, como a obra dos poetas Delarme Monteiro e Manoel Camilo dos Santos, que eu mal conhecia. De Delarme só havia lido, até então, “O sino da Torre Negra” e de Camilo apenas o clássico “Viagem a São Saruê”, que aparece um duas ou três antologias. Em setembro daquele mesmo ano, no dia do meu aniversário, o Velho Riba me presenteou com um exemplar da terceira edição da Antologia do BNB, obra espetacular, onde os folhetos aparecem de forma fac-similar, algo que lhe custou muito trabalho, pois na época não se conhecia o scanner e outras ferramentas de tratamento de imagem.
Para encurtar a conversa, além de amigo dileto, Ribamar tornou-se, a partir dali, revisor de minhas obras e, mais das vezes, contribuiu com sugestões maravilhosas. Caso dos livros “São Francisco de Canindé na Literatura de Cordel” e “Acorda Cordel na Sala de Aula”, para os quais escreveu o prefácio, fez a revisão e ainda sugeriu a inclusão de alguns assuntos.
Foi uma perda muito sentida, a sua partida inesperada em janeiro de 2006. Na véspera tivemos um encontro no Fabiano da Panelada, ali na Praça do Liceu, e o Riba, jovialmente, recordou muitos episódios da sua infância em Pedreiras-MA e de sua juventude, na capital São Luís. Poeta de esmerado talento, contista imaginoso e ensaísta consagrado, Ribamar nos deixou um legado literário que, infelizmente, vai sendo aos poucos esquecido, nesse país de desmemoriados. Dentre as amizades que cultivou, os que sempre o relembram em conversas, além de mim, figuram o escritor Raymundo Neto, que o homenageou numa crônica belíssima e o poeta Rouxinol do Rinaré, que adaptou alguns de seus contos para o Cordel.


José Ribamar Lopes nasceu no dia 8 de novembro de 1932 em Pedreiras (Maranhão) e faleceu em Fortaleza (Ceará) aos 24 de janeiro de 2006.
Contista, poeta e ensaísta, nas últimas décadas vinha desenvolvendo grande atividade como pesquisador e incentivador da Literatura de Cordel. Deixou publicado os seguintes livros: "Literatura de Cordel (Antologia)", "Quinze Casos Contados" (Contos); "Viola da Saudade" (Poesia) e "Sete Temas de Cordel" (Ensaio), "Viola da Saudade" (Poesia, livro póstumo), além do inédito "O Dragão da Literatura de Cordel", cujos originais foram confiados à Tupynanquim Editora.

Arievaldo Vianna
(do livro NO TEMPO DA LAMPARINA)


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