Na lagoa (A sucuri)
Viriato Correa
(in Cazuza)
UM
MÊS ANTES da semana santa, o Ninico da Totonha comprometeu-se a levar-me à
lagoa que ficava no caminho do canavial. — Estou fazendo uma balsinha, informou-me, e, na balsa, a gente poderá
passear na lagoa toda. Eu dormia sonhando com o passeio.
Para
a meninada roceira
a semana santa
é uma das
quadras encantadoras d o ano. Fecha-se a escola durante
os sete dias. Na
segunda -feira o povoado começa
a encher-se. Comadres que moram longe,
vêm jejuar com as
comadres; afilhados vêm
tomar a bênção
aos padrinhos. Até a
quinta-feira, a vida é mais animada que nos outros dias. As crianças brincam
livremente nos terreiros. De manhã à
noite, à sombra das árvores, há
uma algazarra como d e pássaros soltos.
Mas, ao amanhecer de
sexta-feira, a mudança
é completa. No ar
e em tudo,
pesa um grande
silêncio. Parece que o
povoado está inteiramente
adormecido. Nas casas não
se ouve, sequer,
um riso de
criança. É o dia
sagrado em que Jesus morreu. Respeita-se religiosamente a paixão (1) de Jesus. Fala-se o
menos possível. Não
se permitem vozes
altas. Quando alguém quer falar, fala tão baixo que parece um
cochicho. O mais pequenino esforço é
pecado. É pecado varrer a casa. É pecado tomar b anho. Ralhar e castigar são
pecados também. Ninguém sai do
seu terreiro. Não se visita ninguém. Fica-se em casa, recolhido, para não
perturbar o "jejum". O
jejum da sexta-feira
da paixão é
um traço curioso
dos costumes matutos. Em dia
nenhum se come tanto como naquele dia de abstinência. É a mesa mais abundante,
a mais rica do ano. Ao meio-dia exato, começa o almoço. Come-se
devagar (é pecado naquele dia comer com gulodice e pressa), mas come-se abundantemente, incrivelmente. Leva-se à mesa nada menos de duas horas. Ao terminar o almoço, a família se
deita para passar em recolhimento o resto do dia sagrado. E, minutos depois, todo mundo ressona. O Ninico da Totonha havia combinado o passeio
à lagoa para depois
do almoço, quando
a povoação estivesse
ferra da no sono.
Iriam também conosco
o Juquinha, o
Maneco, o Quincas
e a Chiquitita. A lagoa
era um lugar
sombrio, onde sapos
coaxavam dia e noite. Mas, para as crianças,
tinham uma atração irresistível
aquela imensidade de água parada, a violenta
vegetação aquática das suas margens e, principalmente, a estonteante
multidão de garças, marrecos, maçaricos, seriemas e jaçanãs, que lhe nadavam
nas águas e lhe pousavam nas ilhotas. Os pais
proibiam que os
filhos pequenos fossem
sozinhos à lagoa.
Além de jacarés,
diziam haver lá dentro
sucurijus (2) enormes que
engoliam um boi inteiro.
Aquela sexta-feira santa era um desses dias abafados q ue
acabam sempre com
aguaceiro. A lagoa dormia a sesta, como que amolecida p elo calor. Tudo, tudo parado. A balsinha do Ninico
estava amarrada à beira dágua Defronte
ficava uma ilhota de areia alvíssima.
—
Vamos brincar naquela areia? lembrou o Quincas.
—
Vamos. O Ninico, com uma
vara comprida, dirigiu
a balsinha para a
ilhota. Era uma areia fina,
frouxa e fresca,
que dava ao
corpo uma sensação d eliciosa.
Metemos nela o corpo inteiro,
deixando d e fora apenas
a cabeça. E não
se passaram cinco
minutos, quando a Chiquitita, assustada e trêmula, agarrou fortemente a minha mão, perguntando baixinho:
—
Que é aquilo? A cem metros, um vulto enorme ondulava à flor dágua.
Toquei
no Ninico. Ele gaguejou com a voz ab
afada pelo terror:
—
Uma sucuriju! Diante de meus
olhos, movia-se uma
coisa imensa, muito grossa, como eu nunca tinha visto. Devia
ter dez metros, pelo menos. Deslizava
rumo da margem
q ue ficava à
frente, mas tão
sutil e cautelosa como se andasse
no encalço d e alguma presa.
—
Olha ali, olha! murmurou o
Juquinha, sem uma
pinga de sangue. Na margem
fronteira, a Mimosa bebia água. Mimosa era a bezerra querida da
meninada. Não tinha mãe e
vinha sendo cria da em casa pelo dono,
o Jorge Carreiro. Mansa que nem
um cachorrinho, vivia
em toda a
parte, mimada como se fosse um animal doméstico. Não tiramos mais os
olhos da margem. A sucuriju caminhou prudentemente à procura da bezerra. Vimo-la
aproximar-se de terra,
o cultando -se cuidadosamente
entre a folhagem. No tronco de um açaizeiro erguido
no meio da água, enrolou a cauda,
como para se
firmar. E ali
ficou enovelada, silenciosa e
vigilante. A novilha bebia
tranqüilamente, pachorrentamente. De repente, um silvo (3) e, no
mesmo instante, a
cobra se distendeu como se fosse feita de mola. Era o bote (4). A
Mimosa, apanhada de surpresa pelo pescoço, deu um berro de susto que reboou medonhamente
na lagoa, espantando as aves. A sucuriju
conseguiu fazer-lhe em derredor do
corpo a primeira rosca e puxou-a. A bezerra, um
instante depois, fincou os pés no fundo da água e arrancou para a terra, num
salto. A cobra contraiu-se e fez-lhe no corpo a segunda volta.
A
Mimosa soltou um grande urro de agonia. Sentia-se
que aquelas roscas a apertavam
mortalmente, quebrando-lhe os ossos.
Mais outro anel, mais outro, outro. A
bezerra debatia-se, urrando. Saltamos todos para cima da balsinha, tocando
para a margem oposta.
—
Depressa! Vamos! gritou o Ninico da
Totonha.
Ainda vimos
a Mimosa toda
enrolada pela sucuriju,
o pescoço torcido, os
olhos esbugalhados, a língua de
fora, berrando tragicamente. Cheguei a casa desconfiado, inquieto. Havia desobedecido
a meus pais, indo à lagoa ocultamente. Doía-me a consciência. O quadro
da sucuriju cada
vez mais se
gravava na minha memória. No dia seguinte, acordei
ardendo em febre.
1 Paixão — sofrimento,
martírio (quando se fala de santos).
2 Sucuriju — a maior
cobra do Brasil. Tam bém se chama sucuri, sucuriú, sucuruju, sucuriúba e
sucurijaba.
3 Silvo — assobio
próprio das cobras.
4 Bote - golpe
BIOGRAFIA
BIOGRAFIA
Viriato
Correia (Manuel Viriato Correia Baima do Lago Filho), jornalista, contista,
romancista, teatrólogo e autor de crônicas históricas e livros infanto-juvenis,
nasceu em 23 de janeiro de 1884, em Pirapemas, MA, e faleceu no Rio de Janeiro,
RJ, em 10 de abril de 1967.
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