Hoje, 31 de julho, último dia das férias escolares, pus-me a pensar no que eram as férias no meu tempo de menino e o que representam para os meninos de hoje em dia. Nesse mergulho profundo num mar de lembranças, encontrei alguns folguedos que inventava para matar o tempo e divertir-me com os meus companheiros de infância...
UM MUNDO DE
NOVIDADES
(FÉRIAS
ESCOLARES)
Com
o casamento das tias Maria do Socorro e Augediva, minhas férias escolares se
revezavam entre o Alferes e o Iguaçu, comunidades rurais do município de
Canindé. Nesse tempo, o cantor cearense Messias Holanda havia emplacado um
sucesso que tocava dezenas de vezes por dia em todas as emissoras de rádio do
Ceará. Nesse tempo as chamadas músicas de duplo sentido ainda eram bem
inocentes:
“Vamos lá pra ver, o pagode vai ser
bom,
Todo mundo no (NU), casamento da
Maria...”
Na
minha mente fantasiosa de criança, a música havia sido composta, especialmente
para o casamento da minha tia, onde os convidados dançariam todos sem roupas.
Quando passei a morar em Maracanaú demorava meses para retornar de férias ao
Ouro Preto, por minha avó Alzira não queria me liberar para ir passar uns dias
na casa das minhas tias. Mas elas se armavam de toda sorte de argumentos,
inclusive um bastante curioso:
—
Mamãe, eu vou levar esse menino. Ele está dando muito trabalho. É muito danado,
muito impossível, vai passar uns quinze dias lá em casa para lhe dar descanso.
Ora,
ora, meus leitores. Que conversa mais furada... Quem é que deseja a companhia
de um menino “danado” e “arteiro”? Vovó retrucava:
—
Ora mais essa, ah, bom basta! Deixem o bichinho, ele não me dá trabalho nenhum.
Sei
que no final das contas acabavam entrando num acordo e nas férias de fim de
ano, que duravam, às vezes, mais de dois meses seguidos, eu me revezava entre o
Ouro Preto, a Cacimbinha, o Iguaçu e o Alferes, pequena comunidade agregada à
Vila Campos. É que seu antigo proprietário, José Eustaquilino de Araújo,
possuía essa patente da extinta Guarda Nacional e o lugar aonde residia passou
a ser designado desse modo. Certa feita minha tia Maria, que eu chamava Didi,
estava escrevendo uma carta para a irmã Augediva, da qual eu seria o portador,
quando o Abdísio, seu marido, passou a vista pelo papel onde se lia em letras
garrafais: Vila Campos, tanto de tanto de
mil novecentos e tanto... Ele não se conteve e protestou, sungando as
calças, como de costume:
— Campos
não! Alferes. Pode rasgar essa daí e fazer outra. Campos é da Lagoa para lá!
E
não sossegou enquanto ela não mudou o cabeçalho da missiva ferrando a patente
do seu ancestral na introdução do bilhete.
BUMBA-MEU-BOI:
CARETAS E PAPANGUS
“Essa casa está bem
feita
Por dentro, por fora
não,
Por dentro cravos e
rosas
E por fora manjericão.”
(Saudação do Reisado)
A
década de 1970 foi um tempo de grandes descobertas para a minha curiosidade
infantil. Pela primeira vez eu vi a encenação de um bumba-meu-boi ou reisado,
como se diz por ali. O grupo de “caretas” do Iguaçu (distrito de Canindé-CE) e
os Bastiões, da Serrinha (Quixeramobim-CE) eram o que havia de melhor na
região. Um boi bonito e vistoso, todo coberto de chita colorida, era o centro
da trama. E tinha também a Ema, o Babau, a Burrinha e o Jaraguá, esse último
feito da queixada de um jumento, que batia os dentes feito uma matraca. A velha
dos papangus, que em alguns lugares tem o nome de Catirina, desejava comer a
língua do pobre bovino e o marido acabava matando-o, para satisfazer-lhe o
desejo. O negócio terminava numa confusão simulada, com direito a glosas,
cantigas, “relaxos” e endechas, culminando na ressurreição do boi, que concluía
o ato dançando o “Baião Vermêi” e dando chifradas nos meninos mais afoitos. A
velha também nos perseguia, com uma enorme bunda postiça por baixo do vestido e
um chiqueirador na mão, para amedrontar-nos com mais ênfase.
Antes
disso, dera-se um fato curioso. Eu voltava da escola certo dia quando nosso
primo José Rodrigues de Sousa, o Zé Miguel, me chamou muito animado e
perguntou:
—
Arievaldo, você já viu o Papai Noel?
—
Vi não, Zé Miguel. Ano passado apareceu um brinquedo debaixo da minha rede e
disseram ter sido o Papai Noel quem botou, mas eu desconfio que foi mesmo a
vovó ou alguma de minhas tias.
— Que
nada, rapaz! Papai Noel existe! Está aqui em casa passando uns dias. Quer ver?
A
Marta, minha prima, andava comigo e também ficou curiosa para ver o “bom
velhinho”. O Chico Bastião, devidamente combinado com o Zé Miguel, começou a
cantar velhas cantigas natalinas invocando o Papai Noel, enquanto o Zé Miguel
nos preparava uma surpresa. Entrou apressadamente para o quarto, vestiu uma
velha roupa de estopa, botou uma máscara horrenda de papangu e apareceu no
alpendre de supetão, trajando essa estranha indumentária e sapateando em nossa
direção. Nem é preciso dizer o que se seguiu. Arrancamos em desabalada
carreira, botando o coração pela boca, com medo daquela aparição. Entretanto
deu-me na veneta voltar discretamente por dentro do mato e verificar a coisa de
perto, para contar de certo. Ora, não deu outra. Presenciamos o Zé Miguel às
gargalhadas, juntamente com seu cúmplice, despindo a máscara e a estranha
indumentária. Criei coragem e voltei para desmascará-lo, dizendo que já sabia
de tudo, desde o começo.
— E
por que foi que correram?
— Corremos
para ver o Papai Noel achando graça!
Eu
tinha resposta para tudo, nessas situações. Mas, voltemos aos “caretas” do
Iguaçu. Eles diziam que papangus eram os meninos da plateia. Os brincantes eram
caretas. No dia seguinte, a criançada empolgada com esse folguedo não falava
noutra coisa. Os meninos do Antônio Tobias e outros garotos da localidade
entenderam de fazer um reisado mirim. Tiramos vergônteas de mofumbo, para fazer
a armação do boi, arranjamos um velho lençol de chita para cobri-lo e a cara do
bicho foi pintada num grosso papelão. Faltava agora aprender as cantigas do
boi. Foi quando alguém nos deu a ideia de visitar o velho José João, que morava
nos arredores. O bom ancião nos atendeu prontamente e repetiu dezenas de
quadrinhas até que nós decoramos a maior parte e nos munimos de um estoque de
glosas para a encenação do folguedo. Lembro-me perfeitamente dessas duas:
“Eu
me chamo Chico Torto
Revesso,
quebra-machado,
Cavo
cacimba no seco
Depressa
dá no molhado.
Só
não quero que me mandem
Na
rua, comprar fiado,
Que
fiado me dá pena
E
pena me dá cuidado.”
Outra
que jamais saiu da minha lembrança é a cantiga do JARAGUÁ:
Lá
vem, lá vem, lá se vem o Jaraguá
O bichinho
é bonitinho, ele sabe vadiar.
Venha
cá meu Jaraguá (meu Jaraguá)
Para
o povo não mangar (meu Jaraguá)
Ai,
meia volta Jaraguá (meu Jaraguá)
Quero
ver você brincar (meu Jaraguá).
Impossível
não lembrar também desses versos da BURRINHA:
A
burrinha do meu amo
Come
tudo que lhe dão
Só
não come carne velha
Sexta-feira
da paixão.
Essa
quadra, sugestiva e licenciosa, era evitada nos terreiros de família e dita
somente em locais onde a brincadeira não corria o risco de sofrer censura:
A burrinha
do meu amo
Tem
um buraco no cu
Foi
um rato que roeu
Pensando
que era beiju.
A
apresentação do grupo mirim foi no terreiro do Toinho Tobias, cunhado de minha
tia Augediva. Sucesso total. Depois fiz uma reprise fora de época com os primos
do Ouro Preto, mesmo sujeitos a sermos crismados com a pecha infamante de
“Papangu de Quaresma”. Isso sim, é que era infância. Muito melhor que andar apalermado
no meio da rua, caçando esses tais de Pokemón, como fazem as crianças de hoje
em dia.
Nas
férias de julho, motivado pela leitura das revistas do Zorro, do Tex e de
Jerônimo, O Herói do Sertão, resolvemos que era tempo de brincar de mocinho e
bandido. Eu sempre queria ser o índio e fabricava as minhas armas da seguinte
maneira. Por trás da casa da minha tia havia uns postes abandonados com uma
antiga fiação de cobre que não tinha mais utilidade. Eu retirava pedaços desse
arame e fabricava os arcos que disparavam setas de cipó, sem ponta, para não
correr o risco de ferir alguém. Mesmo assim o brinquedo era perigoso e me
aconselharam a botar bolões de cera de abelha na ponta das setas para não
acontecer de furar o olho de um companheiro. A meninada em peso aderiu.
Passamos mais de uma semana nessa brincadeira, até que alguns mais
entusiasmados passaram a flechar as galinhas e os adultos começaram a implicar,
destruindo ou escondendo o rústico armamento.
Arievaldo Vianna
(De "O livro das crônicas - Volume II de Memórias", ainda inédito)
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