GLAUCO MATTOSO, um dos maiores poetas brasileiros da actualidade saúda os membros da ACLAME (Academia Canindeense de Letras, Artes e Memória), após receber o título de MEMBRO HONORÁRIO. Eis o teor de sua correspondência, enviada ao presidente Silvio Roberto Santos, que será publicado aqui em duas partes...
[Communicação appresentada à ACLAME em agosto/2015]
Prezados confrades,
Segue minha contribuição para a
memoria do sonnetto brazileiro, tal como Cruz Filho certamente continuaria a
preservar si vivo fosse. A própria memoria do illustre canindeense, por sua
vez, continua viva no espírito dos presentes apponctamentos, com os quaes aggradesço a inscripção do meu nome entre os
membros dessa relevante confraria litteraria.
Saudações paulistanas do
GLAUCO MATTOSO
ENGENHOSOS ENGENHEIROS DO ENGENHO
[1] Quando, em 2008, compuz o
sonnetto catalogado como #2280 e superei a marca dos 2.279 attribuidos ao
italiano Giuseppe Belli (1791-1863), alardeei que battia um recorde mundial,
como si Belli ja fosse detentor do maximo premio quantitativo. A pilheria fazia
parte duma estrategia de rehabilitação do tradicional molde tetrastrophico, a
qual architectei durante a primeira decada do novo seculo e na qual se incluia
uma anthologia virtual intitulada SONNETTARIO BRAZILEIRO (formatada pelos dedos
do poeta Elson Fróes) e um sitio pessoal intitulado THE GUINNESS BOOK OF
SONNETS. O presupposto era a provavel occorrencia de proezas semelhantes, ainda
mais volumosas, contadas aos milhares, assignadas por outros poetas que - a
exemplo dos 3.500 sonnettos eventualmente compostos pelo catharinense Luiz
Delphino (1834-1910) e que, em sua obra completa, não passavam de 1.300 - não
tivessem reunido tudo em livro e permanescessem na obscuridade, à espera da
porta internautica que os legitimaria no pantheão dos expoentes do genero.
Verbetei para o SONNETTARIO auctores vivos e mortos, fui ampliando meu proprio
sitio com mais milhares... e nada de apparescerem os prodigiosos sonnettistas inveterados
como eu! Consultei confrades de differentes gerações, dei buscas na rede
virtual (antes e depois do advento do google)... em vão!
Pensei commigo: "Esses sonnettistas millesimaes, si existirem e
forem vivos... ou não são da era digital, ou são tão caretas que só divulgam seu
trabalho entre seus collegas de dilettantismo, talvez presos a pudores formaes
e thematicos, ou temerosos das criticas e accusações de anachronismo,
provincianismo, mediocridade ou pieguice." No fundo, era um pouco de tudo
isso.
[2] Em outras etapas da estrategia, elaborei um TRACTADO DE
VERSIFICAÇÃO e digitalizei (annotada e rebaptizada) a monographia do cearense
Cruz Filho (1884-1974), HISTORIA E THEORIA DO SONNETTO, empreitadas que me fornesceram
maiores subsidios e ampliaram meu campo de pesquisa. Ainda assim, nem signal
dos millesimaes, tão discretos que estavam em sua clausura, ou tão secretos em
sua confraria.
[3] Annos antes, emquanto ainda enxergava e não dependia do computador
fallante, troquei correspondencia (manuscripta e dactylographica) com um desses
laboriosos e silenciosos poetas, o paranaense Eno Theodoro Wanke (1929-2001),
que, si não se destaccou pela quantidade, foi incansável auctor e pesquisador,
tanto da trova quanto do sonnetto. Sua obra mais curiosa é o livro intitulado
APPELLO, no qual o sonnetto homonymo, de cunho pacifista, figura em todas as
paginas, vertido para 95 idiomas.
Eis o poema
original:
APPELLO [Eno Theodoro Wanke]
Eu venho da
lição dos tempos idos
e vejo a
guerra no horizonte armada.
Será que os
homens bons não fazem nada?
Será que não
me prestarão ouvidos?
Eu vejo a
Humanidade manejada
em prol dos
interesses corrompidos.
É mester
accabar com esta espada
suspensa
sobre os lares opprimidos!
É preciso
ganhar maturidade
no fomento
da paz e da verdade,
na
suppressão do mal e da loucura...
Que a
estructura economica da guerra
se faça em
pó! E que reinem sobre a terra
os fructos
do trabalho e da fartura!
[4] Wanke era engenheiro de formação e sua vocação poetica foi tida
por uns e outros como hobby de apposentado, coisa de vovô fazendo versos para a
netinha. Na bitolada visão de taes criticos, uma carreira litteraria "maior"
teria que passar pelo crivo academico, teria que furar o bloqueio dos
patrulheiros ideologicos e methodologicos, esses pedantes obstaculos à
diffusão, no patamar mais intellectualizado, de toda producção superficialmente
rotulada de "maneirista" e "simploria".
Indifferente aos commentarios de que o sonnetto accyma seria "rhymaticamente
pobre, syntacticamente primario e thematicamente ingenuo", considero-o
estichologicamente correcto e litterariamente meritorio, no sentido de
reflectir o pensamento do auctor e, portanto, ser fiel a uma biographia - o
que, do poncto de vista existencialista, lhe confere a mesma authenticidade que
reivindico para a minha própria obra em relação ao dicto "eu lyrico"
ou à dicta "voz poetica". De resto, a erudição de Wanke nada deixava
a desejar, comparada à de qualquer cathedratico em lettras, o que desarma as
levianas accusações de amadorismo feitas por este ou aquelle desadvisado. Em
summa, si quero para mim o reconhescimento da pornographia como legitima
expressão da biographia e a acceitação da escatologia como legitima expressão
da mythologia pessoal, coherentemente quero para Wanke a consagração do truismo
como legitima expressão do altruismo.
[5] Si vivo fosse, Wanke seria necessariamente a fonte a quem eu recorreria
para appurar e mensurar a obra de outro engenheiro subestimado como sonnettista
mas digno da maior attenção como phenomeno creativo. Fallo de Jorge Tannuri
(1939-?), sobre quem ja postei os
paragraphos abbaixo em meu blog de annotações e sobre quem tenho
outros commentarios a adduzir mais addeante.
{Os maiores sonnettistas occidentaes (portanto mundiaes, ja que o sonnetto,
ao contrario do macarrão ou do futebol, é uma typica invenção occidental) não
são maiores pelo volume da obra, certamente, pois que a contam pelas centenas,
não pelos milhares de sonnettos, a começar dos paes da creança: Petrarcha com
trez centenas, Camões com duas. No Brazil, mesmo durante o apogeu parnasiano, a
conta não inflaciona alem do excedido milhar que se attribue a Luiz Delphino, a
julgar pelo balanço do tambem parnasiano Cruz
Filho, cuja HISTORIA E THEORIA DO SONNETTO (que assim rebaptizei apoz
annotar criticamente) credita mais de oito centenas ao arcadico José Maria do
Amaral e evita maiores comparações numericas. Como ninguem aqui está fallando
dos gols de Pelé nem de Friedenreich, a preoccupação quantitativa só faria
sentido si o sonnettista fosse candidato a uma vaga, não na Academia Brazileira
de Lettras, mas no Guinness Book. Pessoalmente, pilheriei bastante sobre um
hypothetico recorde do genero emquanto, entre 1999 e 2012, compuz alem do
quincto milhar e, mais acintosamente, quando superei os 2.279 sonnettos compostos
pelo italiano Giuseppe Belli no seculo XIX, embora sciente de que, dentro ou
fora do meu proprio paiz, haveria algum maluco que, anonymo ou não, se fixasse
nesse molde ainda mais obsessivamente do queme fixei.
Ja na epocha (2008) em que eu andava pelos dois milhares, alguem me fofocou
que um certo Jorge Tannuri passava dos quattro. Quando, finalmente, me
"limpei" do vicio, em 2012, elle teria chegado aos seis milhares e, a
menos que battesse as botas, estaria hoje pelos dez. O mais inaccreditavel
nessa historia é que alguem com tamanha bagagem, si não entrasse para a ABL,
teria de ser ao menos commentadissimo na rede virtual, como eu mesmo fui, ainda
que pouquissimo lido... mas Tannuri não era encontradiço no cyberespaço. Seria
um personagem da ficção internerdica? Só recentemente as buscas deram algum
resultado, para meu allivio, pois eu temia que os boatos fossem alimentados
apenas pela lenda dum auctor quantitativamente productivo mas qualitativamente inconsistente.
Ainda bem que sua versificação se me revelou inteiriça e, o mais importante de
tudo, não era assim tão oca. Não sei por que a midia especializada, os
organizadores de anthologias ou os zineiros e blogueiros não ventilavam o nome
de Tannuri. Publicar, elle publicava, fosse no formato livro ou folheto.
Participar de encontros e debattes poeticos, que eu saiba, elle participava.
Paresce que até fundou uma Sociedade Litteraria do Sonnetto, que seria a SOLIS,
mas a sigla suggere um isolamento que não sei si chega às proporções do Gremio
Recreativo e Eschola de Samba Eu Sou Mais Eu. Espero que não, mesmo sem ter
sido convidado a me associar, pois sempre achei que o sonnetto precisava de mais
defensores, ja que detractores não lhe faltam.
Agora que me livrei do TOS (transtorno obsessivo sonnettomaniaco),
posso allegar, entre amigos, que isso de recorde é bobagem, ainda que o proprio
Tannuri, ao que me relatam, fizesse questão de superar metas. Minhas allusões
ao assumpto, alem de ironicas, serviam mais para emphatizar a compulsão
sonnettistica como alternativa (no caso do cego emputescido e puteador) ao
suicidio, ao alcoholismo, às drogas, ao jogo ou, simplesmente, à insomnia e à
masturbação. Si eu realmente estivesse obcecado pelo recorde e dependente dessa
insomne addicção, não teria parado de sonnettar em 2012 nem teria interrompido
a producção tantas vezes para escrever romance, conto, chronica, motte glosado,
pelleja ou tractados estichologicos e orthographicos. Peor, si eu de facto ambicionasse
um logar no Pantheão dos campeões de productividade sonnetifera, minha insomnia
não seria causada pela cegueira, mas pela paranoia de que, em qualquer poncto
do paiz, uma Emily Dickinson da
vida, quem sabe la em Florianopolis, em Paraisopolis ou em Petropolis,
tivesse deixado, manuscriptos em calhamaços, mais de dez ou vinte mil sonnettinhos
psychographados, fossem assucarados ou amargurados, para desbancar Amaral,
Delphino, Mattoso ou Tannuri sommados... Credo em Cruz, Filho!
Voltando ao Jorge, que felizmente não é tão aguado nem mellado quanto
o J. G. de Araujo Jorge, achei delle, si não seus livretos, alguns exemplos que
em nada desmerescem a reputação desse paulistano de 1939 que, radicado no Rio,
formou-se pela Eschola Nacional de Engenharia da Universidade do Brazil (hoje
UFRJ) em 1961, especializou-se na França em 1964 e, desde 1976, habituou-se a
compor sonnettos, timidamente a principio e, depois de apposentar-se em 1997,
capitulou à mania. Sei bem como é isso. Mas não é intrigante? Mesmo registrando
seus livros na Bibliotheca Nacional e, ja em 2008, chegando aos cinco mil
(emquanto eu ainda estava nos trez), seus sonnettos não eram divulgados siquer
a poncto de chegarem-me às mãos... O caso de Tannuri me lembra o de outro profissional
da area, Eno Theodoro Wanke, incansavel pesquisador da trova e tambem
sonnettista, que só era bem conhescido em círculos alternativos, embora tivesse
até suas connexões internacionaes.
A que se deve (perguntariam os adeptos da theoria da conspiração) tal ommissão,
ou tal indifferença, ao caso de Tannuri? Seria por causa da thematica? Mas si
até a minha, pornographica em grande parte, não permanesceu silenciada pelos
puristas e puritanos! Ou seria por algum viez politico, ideologico ou sectario,
vale dizer, as inexoráveis panellinhas e egrejinhas, que vivem a nos patrulhar?
Quanto às egrejinhas, talvez uma pista para o hypothetico boycotte ao Tannuri fosse
sua solidariedade ethnica e ethica ao povo palestino, ao qual tambem me
solidarizei, como no caso do sonnetto "Damnações Unidas" que offeresci
à anthologia POEMAS PARA A PALESTINA, organizada por Claudio Daniel e Khaled
Mahassen. Não sei. Só sei que Tannuri maneja sem pejo a grammatica, a metrica,
a rhyma e, principalmente, a thematica. Si não é desbragadamente debochado nem
despudoradamente fetichista, isso até deveria ser tido na conta de virtude, por
opposição ao vicio que me estigmatizou como pornographo. Algum mestrando ou
doutorando provavelmente theorizará a respeito, ainda que tarde.
Examinemos, entretanto, o que temos à mão, attendo-nos aos contextos palestino
e brazileiro. Intercalo sonnettos meus aos de Tannuri a fim de propiciar ao
leitor uma base de parallelismo. Depois commentamos.
A HEROICA SAPATADA [Sonnetto 4630 de
Jorge Tannuri, em 19/12/2008]
Ao fim dos
seus ruinosos dois mandatos,
Resolve o
abutre-mor inconsequente,
Chegar até
Baghdad, onde seus actos
Deixaram
morticinio deprimente...
Um
jornalista adverso dos maus tractos
Impostos
pelo biltre prepotente
No Irak,
direcciona dois sapatos
E o chama de
cachorro delinquente...
Na offensa
contra o norte-americano,
Mostrou-se
bem heroico o mussulmano,
Embora fosse
amarga a recompensa
Da sapatada,
com prisão, tortura,
Espancamento,
abuso de censura
E
desrespeito à livre acção da Imprensa.
LANÇAMENTO DE LIVRO [Sonnetto 3886 de
Glauco Mattoso, em 17/10/2010]
Sapatos
attirar no presidente,
si for
americano, é o melhor gesto
de alguem
que, revoltado, faz protesto
e, ao vivo,
está das cameras na frente.
Mas gesto
ainda mais intelligente
é aquelle do
escriptor, tão immodesto
a poncto de
esperar que o manifesto
lhe renda
fama e gloria, de repente:
Seu proprio
livro attira (e rente passa
ao rosto do
estadista), emquanto a photo
lhe flagra a
cappa e a imagem nem embaça.
Em todos os
jornaes, depois, eu noto
que ommittem
livro e auctor, ja que, de graça,
ninguem faz
propaganda nem dá voto.
GAZA [Sonnetto 4635 de Jorge Tannuri,
em 31/12/2008].
Que importa
democratica victoria
Obtida num
pragmatico escrutinio,
Si um povo é
dizimado em morticinio
Por
manu-militari peremptoria?
Que importa
Mahomé, no vaticinio
Da crença
mussulmana alcançar gloria,
Si a vida do
Hamaz é merencoria
Com Gaza no
calvario do exterminio?
Que importa
existir ONU quando as guerras
Decretam-se,
por ambições de terras
Tramadas
pelos credos assassinos?
Que importa
haver a Paz, si a humanidade
Condemna à
morte e priva a liberdade,
Na patria
dos heroicos palestinos?
SEMITA [Sonnetto 854 de Glauco Mattoso,
em 28/8/2003]
"Shalom!"
traduz "Salam!": todo opprimido
é primo do
oppressor, com quem apprende
a lingua de
quem compra e de quem vende
petroleo ou
arma, a seita ou o partido.
Mais tempo a
guerra aos bancos tem servido,
mais rende,
emquanto a morte não se rende
à vida.
Quando, emfim, alguem desvende
o enigma, já
estará tudo perdido.
Salim e
Salomão, Thorah e Corão.
Caim cahiu,
e Abel é bellicista.
Javeh
propoz, shiitas disporão.
Na areia,
cada gotta é uma conquista.
Diluvios
racionaram cada grão.
Divisa é
linha. A paz, poncto de vista.
O VERO EIXO DO MAL [Sonnetto 4638 de
Jorge Tannuri, em 2/1/2009]
Um eixo,
para o mal, antes citado
Por Bush, o
criminoso costumeiro,
No seu papel
de estupido guerreiro,
Não teve seu
perjurio comprovado...
Um vinculo
deveras destinado
À morte, se
appresenta sorrateiro,
Com Tel-aviv
e Washington, certeiro
Em dizimar
quem seja de outro lado...
Na ONU com o
seu poder de veto,
Os
norte-americanos dão concreto
Appoio
contra a causa palestina
E as armas
de Israel vão destroçando
Escholas,
hospitaes, gente... em nefando
Terror que
desaccapta a lei divina.
DAMNAÇÕES UNIDAS [Sonnetto 4713 de
Glauco Mattoso, em 25/9/2011]
Questão
controvertida! A Palestina
estado quer
tornar-se. Tem direito,
é claro. Um
bom accordo estava acceito
entre arabe
e judeu, não fosse a mina.
A mina,
subterranea, sibyllina,
symbolica,
que impede esse perfeito
accordo, é o
interesse do subjeito
que está,
não la, nem perto, nem na China.
Quem mella
qualquer chance de fronteira
commum haver
alli, tem seu quartel
num banco
americano, é o que me cheira.
Não só:
tambem está botando fel
nas aguas,
no petroleo, e vae à feira
vender
metralhadora ao coronel.
HA... [Sonnetto 3850 de Jorge Tannuri,
em 24/5/2006]
Ha récordes
de imposto arrecadado
E o povo
sobrevive na inquietude...
Ha nullo
attendimento na Saude
E o pão de
cada dia está minguado...
Ha tempos, o
governo nos illude,
Mentindo ser
precioso o resultado,
Mas só num
raciocinio retardado
Cae bem esta
banal similitude...
Ha pantanos
nos leitos das estradas,
Ha escholas
que estão sendo abandonadas
E o ensigno
se degrada por inteiro...
Ha crime
organizado e insegurança...
E deante
desta homerica lambança,
Pergunta-se
onde vae tanto dinheiro.
REDUNDANTE [Sonnetto 190 de Glauco
Mattoso, em 1999]
Pediram-me
um escandalo, e é p'ra ja.
Malversação
de fundos? Nada disso.
O seio da
modello, que é postiço,
tambem ja
não excita a lingua má.
A droga nas
escholas? Ninguem dá
a minima
importancia ao desserviço.
Sequestro de
empresario? Algum sumiço?
Remedio
adulterado? Qua! Qua! Qua!
A fraude
eleitoral virou roptina.
As contas no
exterior não causam pasmo.
Ninguem
extranha o cheiro da latrina.
Até
Mathusalem ja tem orgasmo!
Só resta a
commentar, em cada esquina,
que o cego é
chupa-rola... Um pleonasmo!
Dirão os adeptos do rigor estichologico que, à primeira e superficial leitura,
tudo paresce fluir bem nos versos tannurianos. Os decasyllabos, quasi todos
heroicos, estão regularmente metrificados, rhymados e rhythmados. Mais
attentamente observando, comtudo, verificarão que as rhymas são, por vezes,
pauperrimas: no sonnetto 4630 de Tannuri, quattro substantivos dão versos
graves em "atos", quattro adjectivos em "ente", mais dois
adjectivos em "ano", dois substantivos em "ura" e dois em "ensa".
A syntaxe delle, telegraphica, caresceria de artigos e
conjuncções que alliviassem a juxtaposição de tantos substantivos e adjectivos.
Emfim, o effeito essencialmente poetico, que deveria ser obtido por meio das
figurações metaphoricas ou anastrophicas mais typicas do discurso
sonnettistico, deixa, diriam, a desejar, ficando apenas a impressão de
obviedade simploria, aggravada pela ordem directa, fria e secca. Isso para não
fallarem na sisudez casmurra, na ausência total de ironia, sarcasmo, emfim,
senso de humor. Quanto a mim, que nunca estou livre de criticas, dirão que
tambem no sonnetto 190 as
rhymas dos
tercettos são pobres, que tambem commetto ellipses asyndeticas, e tal. Mas são
os leitores que vão dizer si meus versos teem a cara do Mattoso e si os de
Tannuri teem cara só delle.
Technicamente considerando, segundo os mais zelosos, os sonnettos de Tannuri
seriam correctos. Poeticamente, porem, nem tanto. Ahi alguém poderá dizer que
quaesquer sonnettos, de todos os auctores (inclusive os meus) incorreriam nos
mesmos lapsos, uns mais, outros menos relapsos. De certo modo, sim. Em milhares
de versos, por exemplo, fatalmente algumas rhymas mais recorrentes accabam por
banalizar-se. Uns tantos logares communs, à força de reiteradamente empregados,
desgastam o estylo e causam aquella monotona e tediosa impressão de autoplagio
ao fim da leitura de poucas centenas de estrophes. Até Camões padesce de taes vicios
durante a extensa jornada dos LUSIADAS. Mas cada poeta acha seu trunfo num
estylema especial, numa "assignatura" discursiva pessoal, numa
"tara" verbal particular, propria ou figuradamente fallando, que lhe
"salva" a originalidade da composição, e Tannuri paresce resentir-se da
falta dessa marca registrada. Um sonnetto seu poderia ser impessoalmente
attribuido a qualquer outro auctor do genero, desses que pullulam obscuramente
pelas anthologias, sem que ninguem desse pela coisa. Por essas e outras é que,
alem do meu linguajar promiscuamente chulo e prophanamente castiço, faço
questão de orthographar meus versos, tal como reorthographei os de Tannuri aqui
exemplificados. E você,
leitor, seria capaz de confundir um deca delle com um meu? Peor que
sim, alguem dirá que confundiu. E agora, Pedro José?
Si serve de consolo, não morri da sonnettomania que accompanharia ao sepulchro
a mediunica senhorinha de Petropolis ou o hyperactivo engenheiro apposentado,
pois o cego puto, debattendo-se entre a insomnia, o pesadelo e a phantasia
masturbatoria, appegar-se-a desesperadamente ao motte glosado, ao madrigal, ao
conto, ao romance ou ao ensaio, quando não ao buddhismo, ao fakirismo ou à
automassagem linguopedal contorcionistica, a fim de preencher seus ultimos
estertores antes do derradeiro suspiro... Ufa!}
(...)
Glauco Mattoso, pseudônimo de Pedro José Ferreira
da Silva, (São Paulo, 29 de junho de 1951)
é um escritor brasileiro.Seu nome artístico
é um trocadilho com glaucomatoso, termo usado para
os que sofrem de glaucoma, doença que o fez perder progressivamente a visão,
até a cegueira total em 1995. É também uma alusão a Gregório de Matos, de quem
se considera herdeiro na sátira política e na crítica de costumes [1] . (Fonte: Wikipedia)
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