(A voz de ouro das Capembas Rajadas)
(Do Livro das Crônicas)
(Do Livro das Crônicas)
A Difusora Dragão do Mato, ZYH 1967 operava num
estudio feito de varas de marmeleiro, coberto de sacos plásticos e galhos de
mofumbo, numa capoeira que principiava logo após o monturo da casa de meus avós.
O microfone era uma lata de sardinha ligado por fios de arame a uma velha bacia
de alumínio, colocada na extremidade de uma longa vara que servia de antena. Eu
destruía velhos cadernos escolares para retirar o arame dos espirais e
construir os equipamentos da minha emissora de brinquedo. Além de atuar como
disk-jóquei e sonoplasta, eu também era o único cantor da emissora,
intepretando desde os clássicos de Luiz Gonzaga, o nosso imortal Rei do Baião, às
cantigas safadas de Genival Lacerda, João Gonçaves e Messias Holanda:
— Ô lapa de minhoca, eita que minhocão
/ com uma minhoca dessas se pesca até tubarãããããoooo!
A construção
do estúdio da Difusora Dragão do Mato principiou meio às escondidas. Vovô não
gostava que a gente andasse pelos matos armados de foices e facões derribando
moitas de marmeleiro e cavando buracos com alavancas para instalação dos
pilares (forquilhas) que sustinham o teto da construção. Para tarefas dessa
natureza eu contava sempre com a colaboração dos primos Totonho e Oswaldo, mais
velhos do que eu, que ajudavam a pegar as ferramentas no quarto da casa velha,
quando vovô tirava uma sesta após o almoço. Com um machado conseguimos cortar
quatro forquilhas mais grossas e o restante foi feito com barbante, prego,
arame e varas de marmeleiro. Tábuas de velhos caixotes e engradados vazios
serviram para montar os móveis do estúdio, um verdadeiro luxo para os meus
olhos de criança.
Por
trás da emissora ficava o meu curral de gado. Gadinho de osso, feito com as
articulações do mocotó das reses e o osso do chambari. Mais adiante a minha
olaria, onde eu fabricava tijolos um pouco maiores que uma caixa-de-fósforo,
com a ajuda de uma pequena grade que eu mesmo havia construído. Chegamos mesmo
a fazer caieiras e botar fogo nesses pequenos tijolos, com o risco de incendiar
toda a capoeira. Um dia o Totonho chegou com um plano mirabolante:
—
Vamos fazer um açude? Nunca vi fazenda sem açude.
—
Um açude? Aonde?
—
Nessa grota que passa aqui por trás da rádio. Dá um açude que é uma beleza!
Começamos
no mesmo dia. Fizemos um barreiro que dava para nadar, quando muito, meia dúzia
de patos. Vovô às vezes se incomodava com aquela movimentação, o sumiço de
ferramentas que esquecíamos no lugar da “obra” e aquela brincadeira incessante
que lhe parecia uma coisa inútil e ociosa. Naquele tempo, menino sertanejo
tinha suas obrigações. Os meus primos, por exemplo, botavam água e lenha, cuidavam
de animais e trabalhavam no roçado. Só me ajudavam nessas brincadeiras quando não
tinham o que fazer. Eu me dedicava mais ao estudo e à leitura e às vezes
ajudava na bodega ou dava água a algum animal. Raríssimas vezes fui recrutado
para o roçado. Minha avó, principalmente, achava que meu futuro estava nos
estudos e não no cabo de uma enxada. Por isso ria embevecida quando escutava
meus programas radiofônicos na Difusora Dragão do Mato, ZYH 1967, a Voz de Ouro
das Capembas Rajadas.
* * *
Desde
menino eu sonhava em me tornar radialista. O velho rádio de casa era ligado
direto, das cinco da manhã até a hora de dormir, sintonizado nas rádios mais
populares da época: Difusora Cristal de Quixeramobim, Tupinambá de Sobral,
Uirapuru, Assunção e Dragão do Mar, de Fortaleza. Eram todas AM, com repertório
eclético e comunicadores que ficaram na história da radiofonia cearense. Aurélio
Brasil, Wilson Machado, Guajará Cialdini, Cid Carvalho, Narcélio Limaverde, José
Lisboa e Jurandi Mitoso estavam entre os mais populares.
Eu
me inspirava, principalmente, no Guajará Cialdini, forrozeiro da melhor cepa,
que gostava de intercalar a programação com anedotas, chistes e poemas matutos
como A estátua do Jorge, de Alberto
Porfírio, Confissão de Caboclo, de Zé
da Luz e Mulher super-teimosa, de
Jota Amaro. Além desses, eu sabia de cor A
chegada de Lampião no Inferno, As
proezas de João Grilo e outros cordéis que eu lera desde que me
alfabetizara. Os deuses que regem o destino da humanidade prestam muita atenção
no que faz uma criança, tanto é que me tornei radialista profissional (redator,
produtor, comunicador e radioator) algum tempo depois. Tornei-me também
publicitário, ilustrador, escritor, poeta popular e declamador, do jeitinho que
havia sonhado quando criança. Mas até hoje, nenhum microfone me deu tanto
prazer quanto a velha lata de sardinha da Difusora Dragão Mato de Ouro Preto.
Arievaldo Vianna (Memórias - Parte III - O Livro das Crônicas)
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