(Foto: A. C. Alves)
... E DO ENXUÍ MAGRO
(Porque não sou CHARLIE HEBDO)
Apesar de não parecer tão
velho eu sou um menino das antigas, do tempo da lamparina, do pano de
coar café armado em duas varetas de marmeleiro, do ferro de engomar
à brasa e do leite mugido tomado na porteira do curral. Sou do tempo
da cueca de morim ou de algodãozinho infestado, do par de
'quinaipes', da calça de tergal, do kichute e da camisa de
volta-ao-mundo. No meu tempo se tangia gado montado à cavalo e não
nessas motocicletas possantes de hoje em dia. Havia merenda a base de
jerimum com leite e ceias de coalhada com farinha e rapadura.
Iogurte! Que diabo é isso? A velha e boa coalhada era cem vezes
melhor do que esses laticínios enlatados de hoje em dia e eu não
troco a minha tapioca pela pizza de ninguém.
No meu tempo se chupava manga
tirada do pé e não das prateleiras dos supermercados. Nada de manga
“Tommy”... era manguita, manga coité, jordão, manga rosa, manga
foice e manga espada. Sim, naquele tempo menino de verdade tinha que
ser espada... arrebentava os joelhos numa queda de jumento e não
podia chorar na hora de passar o velho merthiolate. Eu acredito que
os meninos da minha geração foram os últimos dessa estirpe. De 75
pra cá eu comecei a ver menino comendo maçã raspada de colher,
geleias acondicionadas em embalagens de luxo, além dos achocolatados
e afins. No meu tempo era o velho mingau de araruta que até servia
de rima quando se queria xingar alguém.
A primeira vez que eu vi um
picolé foi no Quixeramobim. Foi um dia especial... Fomos numa Rural
marca Willys, do meu tio Zé Adauto, vi a ponte, a matriz e o trem da
velha cidade sertaneja pela primeira vez. Nesse tempo ainda havia
trens de passageiros e eu fui brincar justo na linha do trem, para
vexame dos meus pais, que me salvaram por um tris de ser esmagado
pelas rodas de ferro da locomotiva. Me deram um picolé da Maguary,
que eu recebi muito animado e curioso, mas na hora de chupar, por não
ter a menor noção daquela temperatura, “rebolei o picolé no
mato” dizendo que o mesmo estava muito quente!
Mel em sachê? Eu nunca vi isso
no meu tempo de menino... a gente saia era armado de baladeira para
derrubar enchuís a pedradas e voltava pra casa sempre com um olho
fechado e os beiços inchados devido a ferroada das abelhas. Menino
brabo era chamado de enchuí magro. Se fosse grande demais para idade
era galalau e se fosse raquítico diziam que era “movido”. Até
hoje não entendi o significado desse termo... “movido”. Talvez,
forçando a barra, seria uma corruptela da palavra mirrado. Quem não
crescia era encruado ou batoré.
Todo menino sabia construir seus
próprios brinquedos. Nesse tempo, “blay-blade” se chamava
carrapeta e “arraia” era feita com papel seda, molambos e palitos
de coqueiro. Sem falar no cavalinho de tala de carnaúba,
pandeirinhos de lata de doce com guizos de tampa de guaraná
amassadas e na flauta de taboca. Só se andava por veredas, à noite,
dizendo essa quadrinha em voz alta:
São Bento, água benta
Jesus Cristo no altar
Quem tiver no 'mei' do caminho
Se arrede pra mim passar.
Era oração poderosa para São
nos livrar de mordida de cobra. Se caía um argueiro no olho, a avó
ou a tia mais próxima ensinava logo:
Corre, corre, cavaleiro
Vai na casa de São Pedro
Dizer a Santa Luzia
que mande o lencinho dela
Para tirar esse argueiro.
Por falar em Santa Luzia, todo
ano a vovó fazia a experiência das pedrinhas de sal, na noite de 12
para 13 de dezembro, a fim de saber se haveria chuva no ano seguinte.
O grande folclorista Sílvio Romero fala de um cientista (o
naturalista George Gardner) que esteve aqui pelo Ceará em meados do
século XIX e ao presenciar o resultado de uma dessas experiências
sertanejas, contradisse a dona da casa, baseado nas suas pesquisas
meteorológicas:
- Non, non, non chove... Luzia
mentiu!
Eu fiz até um livreto de cordel
narrando um episódio parecido, intitulado “O jumento Melindroso
desafiando a Ciência”, onde o jegue, é claro, leva vantagem sobre
as previsões desse ancestral dos homens da FUNCEME (Fundação
Cearense de Meteorologia), que segundo dizem, não dá uma dentro.
No que tange à religião todo
menino era batizado um mês depois de nascido e começava a
frequentar aulas de catecismo assim que completava os sete anos de
idade. De pequeno já acompanhava terços, novenas, procissões
missas e outras celebrações da igreja católica, à qual a grande
maioria era filiada. Na semana santa se cobria os santos da casa com
panos roxos e não se ligava o rádio para não ouvir música no dia
da Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Até as emissoras de rádio
botavam uma programação especial, com música clássica da melhor
qualidade. Algumas encenavam a paixão de Cristo com radioatores, com
direito a muito choro e efeitos especiais. Era impossível não ser
tomado por uma sensação de tristeza e respeito por toda aquela aura
de misticismo. A própria atmosfera conspirava para isso e a natureza
se calava também. Era raro se ouvir o canto de um pássaro nesses
dias. Ainda lembro da visita pastoral de Dom Rufino, bispo da Diocese
de Quixadá, que andou em Santas Missões pelo Castro, Lacrau (hoje
se chama União) e São José da Macaóca. Não perdíamos uma
sequer. De manhã cedo papai selava os cavalos e botava a meninada
miúda em caçuás, no lombo do jumento Piau. Os maiores iam na
garupa do cavalo. Os meninos de 14 anos já podiam se crismar... Era
a confirmação do batismo. A Dilma do Marçal, uma velha doida e
atoleimada, queria crismar os seus antes do tempo. Botou o Antônio
mesmo na cabeça do pelotão dos que iam se crismar. Acho até que
ele nem frequentara as reuniões da Crisma. Dom Rufino, com seu jeito
simpático e bonachão indagou:
- Que idade tem esse menino?
A Dilma era doida, mas não era
burra, então foi logo dizendo:
- Tem doze... tem treze... é
mesmo que ter catorze!!! Pode crismar logo!
O bispo sorriu, balançou a
cabeça e crismou.
Eu vi televisão pela primeira
vez aos 10 anos de idade... E era televisão pública, na praça de
Madalena, com imagem em preto e branco e som distorcido, com direito
a todo tipo de chiado. E ainda tinha mulher que suspirava quando
aparecia o Francisco Cuoco com aquele seu olhar de cabra morta e seu
jeito canastrão.
Afinal de contas, meu povo, para
encurtar essa conversa, eu sou do tempo do Scooby
Doo! É por isso que
eu não sou nem quero ser esse tal de CHARLIE HEBDO. Não sei, não
quero saber e tenho raiva de quem sabe. Os franceses que mexam o seu
angu escaldado pois quem provar desse pirão, come cinturão. Ofender a crença religiosa dos outros é mesmo que mexer com enxuí magro. E o
Scooby Doo
entrou aqui por força de rima... é o poeta querendo ocupar o lugar
do cronista.
Arievaldo Viana (14-01-2015)
Dileto Arievaldo, seu Blog é recheado de cultura, de informações, de coisas de nosso barro vermelho, como descreve o caboclo; muito proveitoso, rico, inda por cima a participação de outros poetas, repentistas, cordelistas! Isso enriquece nossa terra, preenche os lugares vazios da alma nordestina na proeza dos teus poemas, das tuas crônicas. Parabéns! Aqui esta um cabra da peste como me disse pra empestar seu Blog kkkkkk Um forte abraço poeta e amei lhe conhecer!!!
ResponderExcluirOlá Jairo Alves, bom dia. Obrigado pela visita e passe sempre por aqui, para tomar um café de rapadura torrado no caco.
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